O silêncio pelo fracasso na Copa de 1990, na Itália, produziu ecos em Dunga e o fez se afugentar ainda lagarta numa crisálida. Por lá, ficou sendo fustigado até a final da Copa do Mundo de 1994 depois de fazer uma bela Eliminatórias e a própria Copa da Terra do Tio Sam. Nestes 1.483 dias, virou uma bela borboleta numa metamorfose poucas vezes vistas na carreira de um jogador de futebol.
O jornalista Marcos Vinicius Cabral conta a trajetória de Carlos Caetano Bledorn Verri, marcado com a ‘Era Dunga’, denominação de um futebol defensivo, cauteloso, feio e de poucos gols, que o consagrou como capitão do título mundial quatro anos depois, em solo americano.
Reverso, controverso e verso
Por Marcos Vinicius Cabral
Edição: Fabio Lacerda
Estádio Delle Alpi, em Turim, na Itália. Maradona recebe a bola no círculo central do seu campo, em seguida dá uma finta em Alemão, sai da falta de Dunga e antes de receber o combate de Ricardo Rocha, toca na entrada da área por debaixo das pernas de Mauro Galvão, que tromba com Ricardo Gomes. Caniggia recebe o passe, dribla Taffarel e marca aos 35 minutos do segundo tempo o gol da vitória. Era terça-feira, 24 de junho de 1990, oitavas de final da Copa do Mundo da Itália.
Os jornais, a imprensa, os comentaristas e o mundo esportivo em geral, carregados de críticas sobre os 90 minutos daquele jogo, colocaram a culpa pela eliminação às costas de Dunga, camisa 4 da Seleção Brasileira. O insucesso tinha seu bode expiatório injustamente escolhido.
Estádio Rose Bowl, na Califórnia, nos Estados Unidos: ao receber a taça do tetracampeonato mundial, Dunga levantou-a acima da cabeça e bradou em direção aos fotógrafos brasileiros: “Esta é para vocês, traíras, filhos da p…!”.
A ira incontida do volante de 90 e 94 despertaria no jornalista Marcelo Barreto, dos canais SporTV, uma tragicômica definição daquela cena: “Se Bellini inventou o gesto de levantar a taça, Carlos Alberto Torres inventou o gesto de beijar a taça, Dunga inventou o gesto de xingar a taça”.
Era domingo, 17 de julho de 1994, final da Copa do Mundo dos Estados Unidos. Dunga era o mesmo. Era o mesmo jogador que – injustamente – havia sido ‘responsabilizado’ pelo fiasco em 90, e agora em 94, não receberia elogios vindos da imprensa e dos comentaristas esportivos. Desde o revés de 1990 até a consagração, em 1994, foram 1.483 dias no mais absoluto silêncio que Carlos Caetano Bledorn Verri guardou sua dor. Dor esta que o fez extravasar naquele momento de fúria, buscando como alvo jornalistas, comentaristas, colunistas e alguns ex-jogadores de futebol com quem Dunga nunca teve bom relacionamento. Estava caracterizada a volta por cima de uma liderança nas quatro linhas.
A cena que percorreu o mundo, chocou a todos que viviam a autoflagelação da morte brutal de Ayrton Senna, 47 dias antes, no GP de Ímola, em San Marino. O gesto, em si, foi feio, mas compreensível. Coloque-se no lugar de Carlos Caetano Bledorn Verri, que em outubro, soprará velinhas em comemoração ao seu 58° aniversário. Reflita de forma correta e sem pressa sobre o fracasso da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1990, que ganhou um selo, uma marca, uma alcunha, um apelido ou uma era com seu nome: ‘Era Dunga’.
Com um 3-5-2 ainda pouco disseminado na época e vários jogadores que só chegariam ao auge na Copa seguinte, a seleção teve uma primeira fase com vitórias sofríveis sobre Suécia, Costa Rica e Escócia e foi eliminada já na estreia dos mata-matas. Fato este que corrobora para afirmar que a pior campanha ‘canarinho’ desde o mundial de 1966, disputado na Inglaterra, ficou rotulada com o seu nome.
Mas 1990, já começara mal quando os jogadores e comissão técnica se indispuseram sobre o valor pago pela patrocinadora Pepsi à CBF, que teria vendido por US$ 3 milhões o direito do patrocinador colocar sua marca nos agasalhos e camisetas de treino do grupo convocado pelo técnico Sebastião Lazaroni.
Além disso, foram instaladas placas ao redor dos campos da Granja Comary, em Teresópolis, onde fica o Centro de Treinamento da Confederação Brasileira de Futebol. A quantia estava no contrato que, no inicio da preparação, não foi mostrado aos atletas.
Como represália, o plantel boicotou a marca de refrigerante na hora da foto oficial da delegação que seguiria para a Itália. Tanto que foi tirada perto dos alojamentos, no alto de um morro, apenas com a presença de fotógrafos e cinegrafistas. Depois de todos ficarem nos seus lugares, dois atletas gritaram: ”Agora vamos fazer a foto para que saibam que a gente não tolera sacanagem”. Todos colocaram a mão direita no lado esquerdo do peito tapando a marca na camisa.
Mas se fora de campo a situação era insustentável, como familiares dos jogadores tendo livre acesso à concentração da seleção e transformando o hotel em uma passarela de parentes, convidados, empresários e dirigentes, dentro dele, o Brasil estreou no dia 10 de junho vencendo por 2 a 1 a Suécia, no Estádio Delle Alpi, em Turim. No entanto, seis dias depois passou pela Costa Rica, por 1 a 0 e repetiu o futebol pobre das duas partidas anteriores no dia 24 ao vencer a Escócia.
Alvo de críticas e pressionado, Lazaroni – que definia sua ida para a Fiorentina com empresários em plena disputa do Mundial – viu alguns de seus reservas, como Renato Gaúcho e Aldair, se rebelarem, exigindo um lugar na equipe titular. O cenário fora de campo era assustador, ainda mais tendo pela frente, nas oitavas de final, a Argentina, atual campeã e com um Maradona voando.
A derrota merecida por 1 a 0, gol de Cannigia, mostrou ao Brasil que era preciso mais do que tradição e bons jogadores para conquistar o título. O tempo provaria, quatro anos mais tarde, que a seleção de 1990, tinha um elenco talentoso, mas mal preparado, sem organização e dominado por vaidades pessoais. Coube a Dunga carregar o peso de ter sido responsável pelo vexame e receber o batismo de “Era Dunga”. Uma injustiça. Algo semelhante ao ocorrido com Barbosa na Copa do Mundo de 1950, mas aliviada pela imprensa as derrocadas em 1982 e 1986.
Mas o volante reconstruiu positivamente sua biografia e colocou uma pá de cal naquilo que o taxaram como responsável pela eliminação na Itália. Em compensação, foi indispensável na difícil Eliminatórias e fundamental para fazer a Seleção Brasileira terminar com um jejum de 24 anos sem ser campeã mundial.
Nos Estados Unidos, o futebol de Dunga foi crescendo durante a competição. Jogando ao lado de Mauro Silva, na proteção à zaga – o Brasil sofreu apenas três gols durante todo o torneio – foi um guerreiro, campeão de desarmes e roubadas de bola, o que não chegou a ser uma surpresa. E até mesmo lançamentos como o realizado para Romário fazer um dos gols do Brasil na vitória contra Camarões. Dunga e Mauro Silva se completaram. Parecia que um havia nascido para o outro na volância da seleção brasileira. Uma barreira intransponível e jogando com lisura, sem dar pontapé ou apelar para outras artimanhas do futebol.
Surpresa para a imprensa é que Dunga mostrou muito mais do que isso, e no jogo decisivo contra a Itália, isso ficou marcado de forma inquestionável.
O camisa 8 e capitão da equipe não se limitou a tomar a bola dos italianos apenas. Ele armou jogadas, distribuiu o jogo com lançamentos longos e precisos que por vezes deixaram Romário e Bebeto, com boas chances de marcar. De seus pés saíram alguns dos mais perigosos ataques do time comandado por Carlos Alberto Parreira que, somente por vaidade, os deuses do futebol impediram que se convertessem em gol durante os 90 minutos e mais os 30 da prorrogação.
Sua cobrança de pênalti mostrava o quanto segura era aquela seleção. E a coroação veio com um craque italiano a cobrar o pênalti sobre o travessão de Taffarel.
Enfim, Brasil tetracampeão do mundo, e Carlos Caetano Bledorn Verri mostrou à população do país, aos jornalistas e a imprensa, de modo geral, que um pedido de desculpas seria muito bem-vindo.
Afinal de contas, nesta quinta-feira, 24, 31 anos depois de ter sido condenado por aquele Argentina 1 x 0 Brasil, crime este que não cometeu na esfera futebolística, o Magistrado – representado por cada um dos 211.755.692 brasileiros – pode rasgar esta sentença e conceder o indulto.
Ainda há tempo.