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Dicionário dos Craques

ADO, DO BANGU: ‘UM PÊNALTI EM MINHA VIDA’

por André Felipe de Lima


(Foto: Reprodução)

Toda a família do paraibano Miraldo Câmara de Souza, o ponta-esquerda Ado, estava no estádio do Maracanã naquela noite de 31 de julho de 1985. Menos dona Doralice Câmara, mãe de Ado, uma das personagens mais emblemáticas daquela jornada futebolística. Foram todos torcer pelo rapaz, que defendia as cores do Bangu na final da antiga Taça de Ouro — a polêmica taça das bolinhas, que representava o campeonato nacional da época — contra o Coritiba. No cômodo escuro da casa em obras, dona Doralice torcia pelo filho com o ouvido colado no rádio. Relutava assistir ao jogo pela TV. Optara pelo que menos lhe faria sofrer, mas o que apenas o áudio lhe reservara foi suficiente para desenhar em sua mente a cena da dor que acometera o filho.

Ado entrou para a história do Bangu como um dos melhores jogadores que pisaram no gramado do estádio de Moça Bonita. Fato do qual nenhum conhecedor da recente trajetória do futebol carioca discorda. Alguns o elevam ao patamar de herói banguense, o que acredito ser a melhor tese, outros, em menor número, definem Ado como um craque, porém “azarado”, que, após cobrar um pênalti de forma displicente, tirou do Bangu aquele que seria o maior título da história do clube, o de campeão brasileiro de 1985.

Quase cem mil pessoas lotaram o Maracanã naquela fatídica noite para verem o Bangu disputar a final da Taça de Ouro. O time de Moça Bonita dirigido pelo técnico Moisés, ex-zagueiro do próprio Bangu, era sensacional. Do goleiro Gilmar ao ponta-esquerda… Ado.

O tempo normal terminou 1 a 1, com o Bangu dominando o tempo inteiro. Na prorrogação não foi diferente. Só dava Bangu. Mas o ataque foi ineficiente [ou a defesa do Coritiba, vá lá, com inteira justiça, muito boa]. A verdade é que a decisão foi mesmo para os penais. Na primeira série, todos os cinco cobradores de cada lado converteram seus pênaltis. Seria a vez das cobranças alternadas. Um a um, de cada time. Quem assinalasse o gol e o adversário perdesse o seu penal, levaria a taça. Gomes marcou para o Coritiba, mas Ado, o escolhido pelo técnico Moisés, chutou para fora.

O ponta-esquerda escolheu o canto certo, com o goleiro Rafael, pulando para um lado e a bola indo para o outro. Indo para fora sem resvalar a trave direita do arqueiro. Ado perdera a chance de pelo menos dormir em paz. E feliz. Talvez sob a maior felicidade que teria em toda a sua brilhante carreira vestindo a camisa do Bangu. “Me vendam, me vendam, por favor. Eu não posso mais enfrentar a torcida do Bangu. Estou arrasado, o destino não pode ser tão cruel assim comigo. Como posso voltar a encarar as crianças de Bangu, sendo o culpado pela derrota? E a minha família. Minha mãe, meu pai, a todos eu peço perdão, sei que eles vão me consolar quando eu chegar em casa, mas, na minha carreira, vai ficar para sempre esta marca. Nunca mais vai me abandonar. É terrível, não posso acreditar que esteja sendo protagonista desta tragédia.”

Tentando consolá-lo, o meia Mário, que também chorava copiosamente, abraçou-o. “Ado, vamos em frente, a nossa jornada ainda não terminou. O Bangu vai voltar a ser novamente grande no Campeonato Estadual. E nem este juiz poderá nos prejudicar desta vez. Foi ele e não você quem perdeu o jogo.”

Mário estava certo. Aquele grande time do Bangu ainda brilharia naquele inesquecível ano… e o maioral do Bangu, o banqueiro do jogo do bicho Castor de Andrade, decidira que Ado permaneceria no clube. Seria loucura negociar o passe de um jogador como ele. Castor estava coberto de razão.


(Foto: Reprodução)

Muitos anos depois, Ado, em entrevista ao canal SporTV, declarou: “Quando acabou o jogo eu tirei a meia, a chuteira e falei com o Moisés [técnico do Bangu] que não queria bater, pois estava sentindo uma dor no tornozelo e isso estava me incomodando um pouco. Eles escolheram o Israel para bater. Naquele momento eu pensava que eu seria o cara mais certo para bater o pênalti, pois eu estava muito confiante também. Quando eu estava chegando na bola, que eu olho pro goleiro, ele já estava caindo onde eu ia bater mesmo. “Vou virar o pé um pouquinho que ele não vai nem chegar na bola”, pensei. Só que eu virei demais. Eu tenho esse sentimento de que não dei o que as pessoas queriam de mim”. Ironia do destino foi ter sido Ado escolhido como o melhor em campo daquela decisão antológica. Mas nada atenuava a dor pela derrota.

Como descreveu o repórter Jorge Perri, o Monza de Ado dobrou a esquina da casa de dona Doralice, às três da madrugada, após a final no Maracanã. Lá o esperavam mais de 50 pessoas, que cantavam o hino do Bangu e o abraçavam. Uma cena emocionante, que levou Ado às lágrimas. Da boca da mãe campinense, que foi quem o autorizou a ir ao Madureira, quando tinha 10 anos, para dar os primeiros passos no futebol, ouviu a força de que precisava. “Meu filho, você não fez nada de que possa se envergonhar. Os seus amigos estão aí fora para mostrar que respeitam a dor. Eu sei que o destino foi cruel, mas tem sido tão bom que às vezes pode até pregar uma peça que ainda temos saldo. O que vale é a compreensão, e a amizade. Levante a cabeça e vá ao Bangu certo de que tudo que aconteceu é coisa que não se pode remediar. Eu nunca entrei num campo de futebol, mas se você quiser, eu vou até Moça Bonita para mostrar que nós sabemos encarar de frente as horas amargas.”

Apesar de todo o carinho e conforto que recebera, Ado, desgostoso, pensara em abandonar o futebol. Temia pela situação da família. Afinal, como contara à repórter Marcia Vieira, gastara por conta na reforma da humilde casa dos pais, que ficava na rua Sá Freire, 28, na zona norte da cidade, confiando piamente no gordo “bicho” que receberia caso o Bangu levantasse a taça nacional. “Tínhamos uma casa muito ruim e pensando no prêmio que o Castor prometeu, reformei-a. Quando chegou a conta não tinha como pagar. Mas pedi ajuda ao Castor [de Andrade], que foi mais que um pai e me ajudou”.

Na manhã do dia seguinte ao jogo contra o Coritiba, Ado tomou café com a mãe e a sobrinha Priscila, então com três anos, que esteve no Maracanã. Recebeu o carinho de amigos e de familiares. Em seguida, rumou para o escritório de Carlinhos Maracanã, seu padrinho. Vários telegramas chegaram a Ado. Um deles, o comoveu mais: “Um homem não se deixa vencer por um pênalti perdido. Vá em frente. Você é grande. Assinado, Pedro, seu ex-preparador físico no Madureira”.


(Foto: Reprodução)

A vida seguiu para o Bangu e para Ado. Com o Campeonato Carioca de 1985, iniciado logo após a final da Taça de Ouro, o Alvirrubro esperava retomar o caminho das vitórias. E o fez com sucesso. Embora não tenha conquistado nenhum dos dois turnos da competição, foi o time que mais somou pontos ao longo do campeonato, feito que o garantiu na decisão contra Flamengo e Fluminense. O primeiro tombou diante do forte time banguense. Com um inapelável placar de 2 a 1, o time de Moça Bonita garantira a vaga para decisão contra o Tricolor das Laranjeiras.

No dia 18 de dezembro, os dois times entraram em campo no Maracanã, com cerca de 90 mil presentes, para disputarem um jogo tumultuado. Logo aos quatro minutos do primeiro tempo, Marinho abriu o placar para o Bangu, nitidamente superior ao Fluminense. Uma a zero seria pouco. Era preciso alargar o placar para o Bangu tocar a bola, gastar o tempo, e, enfim, levar para Moça Bonita, o tão almejado troféu carioca.

Após um ataque avassalador de Marinho e companhia, Ado perdeu aquele que costumamos chamar de “gol feito” após cabecear a bola para fora do arco do goleiro Paulo Victor. Talvez Ado fizesse aquele gol e a história seria outra. Nem mesmo o clamoroso pênalti do zagueiro Vica em Cláudio Adão, não marcado pelo juiz José Roberto Wright, no final da peleja, influenciasse o resultado final do jogo. O Tricolor virara o placar para 2 a 1 e, mais uma vez naquele fatídico ano de 1985, o Bangu de Ado deixara escapar um importante título. Daquele ano, Ado guardara um único momento de prazer ao ser escolhido pela premiação “Bola de Prata”, organizada pela revista Placar, como o melhor ponta-esquerda do Campeonato Brasileiro. Além dele, os companheiros Baby [volante] e Marinho [ponta-direita] também receberam o prêmio, sendo o segundo o vencedor da “Bola de Ouro”, de melhor jogador da competição.


(Foto: Reprodução)

A história de Ado no Bangu não pode ser apenas medida pelas perdas dos dois campeonatos de 1985. Ele foi, indiscutivelmente, um dos melhores jogadores que o Bangu já teve em suas fileiras. Zizinho, por exemplo, um dos maiores craques de todos os tempos do Flamengo e também do Bangu, jamais levantou um troféu de expressão pelo clube de Moça Bonita. Mesmos assim é ídolo dos dois clubes. Ou seja, como reza o dito popular, “pau que dá em Chico, dá em Francisco”. Levando em consideração as devidas proporções do futebol de um para o outro, Ado fez tanto pelo Bangu quanto Zizinho, que — justiça seja feita — foi infinitamente melhor jogador que o ex-ponteiro. Mas Ado foi um jogador singular naquele ano. “Meu jogo inesquecível foi Bangu x Brasil de Pelotas, no Maracanã, quando fiz um gol que garantiu o time na final [da Taça de Ouro]”. Ele se esforçou [e muito!] para elevar o Bangu e colocá-lo entre os melhores times do Brasil daquela época, sendo fundamental nas conquistas da President´s Cup [1984], na Coréia do Sul, e da Taça Rio [1987], segundo turno do Campeonato Carioca.

Ado, que nasceu em Campina Grande, no dia 25 de abril de 1963, chegou ao Bangu após uma negociação com o Madureira. Em janeiro de 1984, na arquibancada do estádio Proletário, em Bangu, o patrono do clube, Castor de Andrade, durante um treino monótono do time, conversava com o técnico Moisés quando chegou Carlinhos Maracanã, então diretor de futebol. “Toma Castor, é um presente para o Bangu. Custou só Cr$ 10 milhões. No futuro, não vai ter preço.”

Castor indagou: “Afinal, Carlinhos, o que é isso?”. Como resposta, ouviu: “É o passe do ponta-esquerda do Madureira, o Ado. Já pedi a você para comprar o garoto várias vezes. Como nunca tive resposta, resolvi eu mesmo fazer esta oferta ao nosso clube.”

Castor, no começo, não levou muita fé no “presente” de Carlinhos Maracanã. O rapaz tinha 1,65 metros de altura e pesava cerca de 56 quilos. Do infantil ao profissional, os adversários de Ado debochavam do porte físico dele. Alguns o chamavam até de “caveira”. Ado respondia com um festival de dribles desconcertantes [e humilhantes]. Era esse o seu estilo.

A estreia no Bangu, segundo dados do pesquisador Carlos Molinari, aconteceu no dia 15 de janeiro de 1983, contra o Bonsucesso. O placar foi 3 a 0 para o Alvirrubro.

Entre 1983 e 1997, Ado vestiu a camisa do Bangu em 258 jogos, obtendo 123 vitórias e 85 empates e assinalando 32 gols. No jogo do Bangu contra o Americano, de Campos, disputado no dia 31 de maio de 1997, Ado encerraria sua jornada em Moça Bonita.

No período em que defendeu o Bangu, o ídolo alvirrubro também atuou no Internacional, de Porto Alegre, em 1988, e no Sporting Clube de Espinho, de Portugal, de 1987 a 1994. “O Castor tentou me trazer para a final do Carioca, mas não conseguiu. Ele se arrependeu da venda. Mas para mim foi muito bom financeiramente. Minha mulher gostava e os torcedores tinham muito carinho por mim. Fui muito feliz lá”.


Depois do Bangu, em 1997, Ado persistiu nos gramados ao jogar pelo Ceres, pela Portuguesa [RJ], no Peru, na Indonésia e pelo Campo Grande, onde, enfim, com mais de quarenta anos, encerrou sua carreira. Mas o “fantasma” do pênalti de 1985 nunca mais o abandonou, mesmo quando decidiu assumir a carreira de técnico, com passagens, inclusive, pelo futebol árabe: “Quando alguém perde um pênalti sempre tem um amigo que diz, tá vendo, é normal, os jogadores perdem… mas não é a mesma coisa. Eu não me perdoo até hoje”, declarou, com olhar marejado e voz embargada, à Marcia Vieira.

Tal como os ídolos Barbosa, Bigode, Danilo, Juvenal Amarijo, Zizinho e Ademir de Menezes, que sofreram até o último suspiro a dor pela derrota na final da Copa de 1950, Ado nunca mais conseguiu rever a cobrança daquele pênalti. Rever o seu ocaso. “Não passa… é difícil virar essa página […] Foi um dos castigos mais doídos da minha vida”.

 

 

ENTRE O AMOR E O ÓDIO, BARBOSA FOI UM GIGANTE. UM ÍDOLO!


A despeito do Maracanazo na Copa de 50, Barbosa, que faria anos hoje, foi um goleiro seguro, um grande defensor de pênaltis, como aquele da final do primeiro Campeonato Sul-Americano de clubes campeões, em 1948, no Chile, contra o River Plate, que consagrou o Vasco como o primeiro campeão continental da história. “Ele aumentou nosso moral e demoliu o dos argentinos”, recordou o amigo e artilheiro Ademir de Menezes. A biografia abaixo integra a enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, que um dia (quem sabe…) pretendemos lançá-la. Boa leitura!

por André Felipe de Lima

Jogadores uruguaios e brasileiros perfilados ouvem os hinos de seus países. No mastro, hasteadas as bandeiras nacionais. A do Brasil, de cabeça para baixo. Somente uma pessoa, em meio a 200 mil pessoas que lotavam o estádio do Maracanã, reparou o descaso com o pavilhão verde e amarelo. Era Barbosa. O grande goleiro da Seleção. Foi ali, naquele instante, que ele pressentiu o pior.

O jogo começa mordido. O Brasil tem a vantagem do empate. Friaça marca aos 47 minutos da primeira etapa. Tudo indicava o que era óbvio à miopia brasileira. Seríamos campeões. No segundo tempo, Schiaffino, o meia deles, de família abastada e que esnobava os companheiros fora dos gramados, empatou para a Celeste Olímpica. O título ainda estava conosco. Era o que imaginávamos até Bigode e Juvenal falharem na marcação.


O ponta-direita uruguaio Alcides Ghiggia avança na área do Brasil e chuta a bola em diagonal, que passa entre a trave e o goleiro Barbosa. Gol do Uruguai. Fim de um sonho que se transformou no maior pesadelo das vidas de 22 jogadores e de um técnico, Flávio Costa [1906–1999]. Um dia, 16 de julho de 1950, que nunca será apagado do inconsciente da Nação Brasileira: a perda da Copa do Mundo, dentro de casa, no Estádio do Maracanã. E o goleiro Barbosa foi, por muitos anos, injustamente acusado de responsável pela maior tragédia da história do futebol no País. Afinal, o arqueiro vascaíno é considerado, de forma indelével, um dos maiores jogadores de todos os tempos que surgiram nestas paragens. Mesmo assim, sempre foi lembrado pela maldição daquele 2 a 1 da Celeste sobre o Brasil. Mas há quem o defenda com o ardor de um advogado diante das causas mais complexas de um tribunal. “E quanto mais vejo o lance, mais o absolvo. Aquele jogo o Brasil perdeu na véspera”, assim escreveu o cronista Armando Nogueira [1927–2010] a respeito da euforia exacerbada que tomou conta da Seleção e da imprensa e, sobretudo, de Barbosa, o maior goleiro que o Vasco da Gama já teve em sua história e um dos maiores que já vestiram a camisa número um da Seleção Brasileira. O arqueiro, entretanto, nunca se absolveu diante do tribunal da torcida verde-amarela: “Quando um homem cumpre 30 anos de prisão, sai livre. Eu, quase 50 anos depois, ainda pago a minha pena”. Um fantasma que o assombrou para o resto da vida, como o próprio Barbosa descreveu ao jornalista Roberto Muylaert [autor de “Barbosa – um gol silencia o Brasil”] – que, então com apenas 15 anos, esteva no Maracanã entre os cerca de 200 mil espectadores, naquela tarde deplorável. O cálculo do goleiro sobre a jogada de Ghiggia foi rápido, mas errado.

“Quando eles fizeram 2 a 1… aquele silêncio pesou… o Ghiggia avançou, vislumbrei o centro da área e ali havia três carrascos babando, à espera da bola… o Bigode vem atrás do Ghiggia, Juvenal tenta fazer a cobertura, indo ao encontro de Ghiggia. Mas na entrada da área só têm eles, ninguém da defesa, se ele centra não tem como pegar, é gol na certa. Fico esperando Ghiggia centrar, dou um passo à frente, porque com certeza ele vai fazer a mesma jogada do primeiro gol. Ele sente que estou fora, embora viesse de cabeça baixa como um touro miúra, mete o peito do pé na bola e eu ainda toco nela, crente e que foi para escanteio, afinal foi um chute mascado, bateu no gramado, subiu e desceu. Nesse átimo de segundo, dou um passo lateral e salto para a esquerda com todo o impulso… Quando senti o estádio em silêncio total, tomei coragem, olhei para trás e vi a bola de couro marrom lá dentro.”

Houve quem o absolvesse depois daquele match: Máspoli, o goleiro do Uruguai: “… o goleiro Máspoli também me defendeu, disse que eu levei o gol Ghiggia porque conheço futebol demais, por isso me coloquei na posição melhor para a jogada mais provável, que não saiu, sabem que eu poderia ter visto que o ângulo em que o Ghiggia veio no segundo gol era bem mais fechado que o do primeiro, embora todo mundo diga que as duas jogadas foram iguaizinhas, não foram não, o Nélson Rodrigues também inventou, criou a história do frango eterno do Barbosa”.

PERTUBADORA POLITICAGEM

A manhã na concentração da Seleção, no estádio de São Januário, já dava sinais de que algo estava errado. Barbosa acordou às 8h e, enquanto tomava café, assustara-se com a infinidade de ônibus em volta do estádio do Vasco da Gama, com faixas cujos dizerem era um só: “Viva os campeões mundiais”. Incomodado com todo aquele prematuro alvoroço, voltou para o quarto e pensou no que viria pela frente, contra o Uruguai. “Comecei a pensar em tudo. Por exemplo: por que a troca de concentração, já que estávamos muito bem instalados na Casa das Pedras, no Joá, onde ninguém nos perturbava? Ficamos 40 dias no Joá e, na véspera da decisão contra o Uruguai, resolveram nos levar para São Januário, onde os políticos em campanha presidencial podiam circular mais facilmente […]. Foi uma loucura tudo aquilo”.

Antes do jogo, Barbosa queria fazer uma pequena refeição na concentração, mas o assédio de cartolas, políticos e jornalistas no vestiário o impediram. “Lembro que comi apenas um pouco de salada e um pedaço de bife, já que os políticos entre eles o Ademar de Barros e o Cristiano Machado, nos interromperam para fazer discursos”.

Flávio Costa queria privacidade e, sendo assim, rumou ao Maracanã antes da hora prevista. Não era o dia da Seleção e tampouco de Barbosa. No caminho ao estádio, o ônibus que conduzia a delegação brasileira enguiçou. Todos desceram para empurrá-lo.

De que valeu, contudo, o título de melhor goleiro da Copa do Mundo de 1950? Antes, fosse o pior; e o Brasil, campeão. Seu fardo seria mais leve. Infinitamente mais leve. Sofreu preconceitos de todos os matizes. Era negro. Racismo que somente um bravo como Barbosa suportaria.

Meses após a final da Copa. Barbosa foi acusado de comunista por ter assinado um manifesto do Partido Comunista Brasileiro, na época, ilegal perante o Governo Federal. Chegou a depor no Departamento de Ordem Política e Social [DOPS]. Logo Barbosa, o goleiro favorito de Getúlio Vargas. “Apareceu na concentração [da Seleção de 1950] do Joá um grupo de rapazes e moças com um abaixo-assinado que deveríamos assinar porque era a favor da paz, pelo bem da coletividade. Assinamos o documento. E sabe o que era? Um manifesto comunista! Quatro ou cinco meses depois da Copa, fomos chamados ao DOPS: tínhamos de dizer se éramos comunistas ou não. A que ponto chegamos! Nós entramos nessa sem saber; assim como entramos na propaganda de candidatos nem sei por quê”.

Fim de jogo, Barbosa cumprimentou os vencedores, deixou o estádio e seguiu para São Januário, onde foi recebido pela esposa Clotilde, em prantos. Estava faminto. Não conseguiu comer na concentração horas antes do jogo. “Tudo estava deserto. Não tinha ninguém na rua […]; não chorei, mas senti […], eu senti, mas não extravasei. Tive que conter minha mulher e meu compadre, porque os dois é que choravam muito”.

No estádio do Vasco da Gama, em seu carro De Soto Luxo, sua esposa e o compadre seguiram para Ramos, onde Barbosa morava. Deixaram o veículo na casa do goleiro e seguiram para uma praça próxima, na qual o aguardaria uma grande boca-livre que preparara com a ajuda dos vizinhos. Quando chegou ao local, não havia ninguém, apenas cadeiras, mesas e a comida. Um cachorro era o único a espreitá-lo.

Na manhã seguinte, a comida da festa que não houve ainda estava lá, em cima das mesas, quando o dono dos pratos foi recolhê-los. A comida foi para o lixo sob um pesaroso olhar de Barbosa, que se virou para Clotilde e pediu: “Se veste que nós vamos sair”. Ela ainda tentou alertá-lo: “Você ficou maluco, Barbosa?”. O marido insistiu: “Você não disse que queria um faqueiro?”.

Entraram no carro e foram ao Largo da Carioca. Barbosa estacionou o veículo e seguiram a pé à Praça Tiradentes, onde ficava a loja. Bastou Barbosa entrar, que o estabelecimento ficou apinhado. Ninguém o abordou. Era um silêncio sepulcral. Ao saírem da loja, decidiram espairecer no cinema. Na fila, dois rapazes comentaram algo que Barbosa não ouviu. Mas três senhores escutaram direitinho e repreenderam os jovens incautos: “Vocês não têm vergonha na cara, não?”. Fora o primeiro de uma eternidade de constrangimentos.

Estava difícil. Barbosa decidiu desligar o telefone para não ser importunado. A única forma de o comendador Vieira de Castro, amigo do casal, falar com Barbosa foi enviar um emissário à casa do goleiro, na Leopoldina. O rapaz bateu à porta e foi recebido por Clotilde a vassouradas. Ela imaginava ser mais um inconveniente querendo azucrinar Barbosa. Nada disso. O jovem queria apenas entregar um bilhete do comendador no qual ele oferecera sua casa em Itacuruçá, no Sul do Estado do Rio de Janeiro para que Barbosa e Ademir [Marques de Menezes] esfriassem a cabeça.

Os dois aceitaram a generosa oferta e embarcaram em um trem. Por precaução, compraram o “Jornal dos Sports” para esconder o rosto. Na poltrona em frente, dois camaradas espinafravam a Seleção, especialmente Bigode. Barbosa estava se contendo até ouvir seu nome na conversa. “Sabe de uma coisa, cara, se eu encontro aquele crioulo pela frente nem sei o que faço com ele”. Barbosa ficou possesso, levantou-se e disse: “Por acaso, o senhor está me procurando?”. O outro empalideceu. Esperava ver naquele dia até o Papa, nunca Barbosa. Todos no vagão começaram a cochichar. Barbosa distraiu-se e percebeu que o cara havia descido. Mas o passeio valeria a pena. Na casa de Vieira de Castro, Ademir e Barbosa jogaram vôlei, cartas e curtiram doses de uísque diante de uma fogueira noturna. Nada de jornais, rádio e, muito menos, futebol.

Barbosa foi – parafraseando Jung – transformado em réu eterno pelo inconsciente coletivo. Culpá-lo pela derrota de 1950 configurou-se, ao longo dos anos, em lastimável fenômeno cultural. Se há heróis, há vilões. Barbosa, para as gerações que nasceram após aquela final no Maracanã, foi o antagonista, o bandido da história. Em setembro de 1993, o jornal “O Globo” publicou uma reportagem sobre o jogo entre Brasil e Uruguai que valeria o passaporte para a Copa do Mundo de 1994, nos Estados Unidos. Seria chover no molhado discorrer sobre o que aconteceu naquele jogo e o que se definiu naquele Mundial. Pode-se resumir, porém, toda aquela trajetória em único nome: Romário. Mas a reportagem, além de citar os preparativos de Romário & Cia., denunciava que Barbosa, às vésperas do embate entre as duas seleções, teria sido impedido pelo então técnico Carlos Alberto Parreira e pelo auxiliar Zagallo de visitar os jogadores na concentração. Os motivos especulados pela imprensa é que Parreira e Zagallo, movidos por uma infundada superstição, barraram o ex-goleiro.

A despeito do Maracanazo, Barbosa era um goleiro seguro, um grande defensor de pênaltis, como aquele da final do primeiro Campeonato Sul-Americano de clubes campeões, em 1948, no Chile, contra o River Plate. “Ele aumentou nosso moral e demoliu o dos argentinos”, recordou Ademir de Menezes.

O craque argentino Ángel Labruna chutou, mas Barbosa estava lá, firme e elástico, para impedir o gol e garantir o placar de 0 a 0 que consagrou o “Expresso da Vitória” do Vasco da Gama como o primeiro time campeão da América do Sul. “O Labruna bateu forte e rasteiro, mas fui certinho na bola. Conhecia sua fama e sabia que ele preferia bater no canto esquerdo”.

Em março de 1950, três meses antes da fatídica Copa do Mundo, o ídolo confessou à revista “Mundo Esportivo” que “a maior tristeza, até então, em sua carreira foi ter perdido o primeiro jogo da final da Copa Roca para os argentinos, quando Flávio Costa o escalou no lugar de Oberdan Cattani [Palmeiras] e Ary [Botafogo], que estavam machucados”. Antes fosse, Barbosa, antes fosse…

TUDO COMEÇOU NA PONTA-DIREITA

Filho de Emídio Barbosa e Isaura Ferreira Barbosa, o ídolo Moacyr Barbosa Nascimento nasceu no dia 27 de março de 1921, na Rua Major Sólon, nº. 27, em Campinas [SP]. Teve dez irmãos. Ainda criança, ingressou na escola primária com a ajuda de Adeliza, sua irmã mais velha, com quem morou na capital paulista a partir dos 14 anos. Sempre fora ótimo aluno, fosse no curso primário em Campinas, fosse no Colégio Arquidiocesano, onde cursou até o terceiro ano secundário. O pai pensara matriculá-lo no Colégio Bento Quirino, onde o filho aprimoraria seu talento para o ofício de marceneiro. Afinal, o garoto Moacyr já produzia pequenas peças em madeira.

Quando ainda era rapaz, Barbosa sofreu pela morte de dois irmãos. Mário, o mais velho depois de Adeliza, era um extraordinário ponta-esquerda que morreu em consequência de um acidente durante um jogo de futebol. Tinha apenas 20 anos. Honorato, também morreu com apenas 14 anos. Mas o baque maior na vida de Barbosa foi a perda do pai, em 1935, depois dele levar um coice de um cavalo e fraturar a espinha dorsal. Emídio, que era administrador da Fazenda Santa Gertrudes, nas proximidades de Campinas, não resistiu ao gravíssimo ferimento. Era o maior incentivador dos estudos de Moacyr. Orgulhava-se de ter um filho tão inteligente. Com a morte do pai, Moacyr mudou-se para São Paulo. Tinha de arrumar trabalho para ajudar a família. O que não imaginava é que a bola seria o seu destino.

Ao se mudar para a cidade de São Paulo, mais precisamente para a Rua Siqueira Campos, 131, na Liberdade, o grande goleiro que seria começou – por ironia do destino ou, quem sabe, presságio – como ponta-direita. Ghiggia, que viria a ser o seu algoz, atuava ali, naquela faixa do campo.

Barbosa era ponta do Almirante Tamandaré, um time de várzea, do bairro onde morava. Mas o “ponta” já esboçava talento no gol durante peladas contra outro time da Vila Maria. Queria ser o goleiro, mas insistiam com ele no ataque: “A turma não deixava, pois eu tinha um chute muito forte e era preciso alguém assim lá na frente para decidir”.

Como era pobre e precisava ajudar a família, órfã de seu Emídio, tinha de trabalhar muito. Arrumou um emprego no Laboratório Paulista de Biologia, em 1940. Foi um ano especial para Barbosa, que casou com a paulista Clotilde Melônio e começou a estudar Química Farmacêutica. O goleiro dividia os estudos e o trabalho, com a bola. Era o titular do time do laboratório. As peladas chamaram a atenção de olheiros do Clube Atlético Ypiranga, que o convidaram, em 1942, para o profissional, onde atuaria ao lado do ponta-esquerda Rodrigues Tatu, que fez história no Palmeiras. O patrão deu força para que aceitasse o convite do Ypiranga. Barbosa ouviu o conselho.

Em um dos jogos no Campeonato Paulista, em 1943, Domingos da Guia [1312–2000], o maior zagueiro de todos os tempos do futebol brasileiro, encantou-se pelas defesas de Barbosa. E sinalizou ao Vasco da Gama que ali, no Ypiranga, estava o maior goleiro do Brasil. Em 1944, iniciou sua trajetória – uma das mais ricas – no clube carioca.

Em São Januário, estádio que o projetou internacionalmente por ser o arqueiro do inigualável “Expresso da Vitória”, Barbosa jogou de 1945 a 1955 e de 1958 a 1960. Foram duas décadas de muitos – mas muitos mesmo! – títulos com o time da cruz-de-malta. O goleiro foi, ao lado de craques como Ademir [Marques de Menezes], Ipojucan, Chico [Francisco Aramburu], Rafanelli, Friaça, Augusto, Jorge, Ely do Amparo, Danilo Alvim, Tesourinha [Osmar Fortes Barcellos], Jair Rosa Pinto e Maneca [Manuel Marinho Alves], protagonista dos períodos em que o Vasco da Gama conquistou mais campeonatos ao longo de sua centenária história. Se contar o total de troféus do Campeonato Carioca, foram seis [1945, 1947, 1949, 1950, 1952 e 1958]. Podemos escrever também na lista o Torneio Rio–São Paulo de 1958. Foram 448 partidas pelo Vasco da Gama e 490 gols sofridos. Defendeu quatro pênaltis e jamais foi expulso com o Vasco, como ressalta o pesquisador Alexandre Mesquita. Foi um dos goleiros que por mais tempo foi titular da Seleção Brasileira.

Em 1945, foi convocado para o Escrete nacional. A estreia foi contra os argentinos, em São Paulo, onde Barbosa dividiu até 1943 os holofotes com Oberdan Cattani, goleiro palmeirense. Defendeu o gol do Brasil em 35 jogos. Foi campeão sul-americano em 1949 e das Copas Roca [1945] e Rio Branco [1947 e 1950].


Barbosa nunca foi expulso do gramado, performance que propiciou a ele o Troféu Belfort Duarte, em compensação, as divididas com os atacantes custaram-lhe muitas contusões: seis fraturas na mão esquerda e cinco na direita; mais tíbia, perônio e três costelas quebradas. A mais grave de todas foi em 1953, durante um jogo contra o Botafogo. O atacante Zezinho quebrou-lhe a perna. Seria o titular do gol na Copa da Suíça, em 1954. Surpreendeu-se, porém, com um gesto carinhoso dos fãs. Um grupo de meninos de um colégio do Rio de Janeiro foi visitá-lo no hospital. A garotada fez uma vaquinha para comprar biscoitos para Barbosa.

Muito tempo com a perna engessada fez o então técnico do Brasil, Zezé Moreira [Alfredo Moreira Júnior – 1907–1998], esquecê-lo. A mesma postura se fez notar nos dirigentes vascaínos. Recuperado, Barbosa foi transformado em reserva de luxo em São Januário. Sem espaço no Vasco da Gama, tentou a sorte em Recife, no Santa Cruz, em 1955, mas por pouco tempo. No dia 3 de junho de 56, o corpo de Barbosa estava em campo, mas o pensamento no Rio de Janeiro, preocupado com o estado de saúde da esposa Clotilde. A atuação do goleiro foi um desastre, com a defesa do Santa Cruz levando um gol atrás do outro do ataque do América local. No final, a torcida, estupefata com o placar de 6 a 3 para o adversário, gritava em uníssono: “Gaveteiro! Gaveteiro!”. Barbosa ficou horas preso no vestiário, protegido dos vândalos que o ameaçavam: “Ele não sai vivo daqui! Morte ao vendido!”. À noite, o presidente do Santa Cruz o levou para um lugar seguro, longe da ensandecida torcida. Hora de voltar definitivamente para o Rio de Janeiro.

No segundo semestre de 1956, Barbosa regressou ao Vasco da Gama, onde permaneceu, de forma intercalada, até 1962. Quando retornou de Recife, por pouco não se tornou técnico do Olaria. Ousou desafiar os seus 36 anos no gol do Bonsucesso, em 1957. Voltou ao Vasco da Gama, mas seus reflexos não eram mais os mesmos.

O dinheiro do futebol já não lhe bastava para as contas, embora mantivesse um pequeno patrimônio constituído por uma casa, um carro e alguns pequenos terrenos. No começo dos anos de 1950, chegou a manter uma casa em Olaria, bairro da Zona Norte do Rio de Janeiro, dois imóveis no bairro do Ipiranga [São Paulo] e muitos terrenos em terras paulistas. A “fortuna” foi se esvaindo. Não se desfazia, contudo, de sua monumental coleção de discos de vinil: cerca de 1 mil 500. Era fã da boa música.

Em 1959, a imprensa especulava que, nas horas cada vez maiores de folga dos treinos e jogos, Barbosa trabalhava na loja de materiais de construções do seu “padrinho” Adriano Rodrigues, antigo cartola vascaíno.

Ainda houve tempo para defender o Campo Grande, em 1962. E foi no time da zona rural do Rio de Janeiro que Barbosa pôs um ponto final em sua história de goleiro, no dia 8 de julho daquele ano, em jogo com o Madureira. Saiu de campo contundido, carregado, deitado na maca. Sentiu uma forte dor na virilha, o mesmo problema que tirou Pelé da Copa do Chile, coincidentemente no mesmo ano. Cerca de 600 pessoas aplaudiram o ídolo, numa reverência merecida, mas que durante muitos anos resumiu-se àquele clássico suburbano. Barbosa merecia mais… muito mais.

Como acontece a todos os grandes jogadores, o momento de parar é a faceta mais difícil de se enfrentar na vida de um futebolista. Em 1963, Barbosa estava sem rumo e um completo desconhecido do mundo do futebol, sobretudo da imprensa. Na mente, ainda viva a imagem de Ghiggia e da bola marrom que teve de pegar no fundo das redes. Soube que a administração do Maracanã ia se desfazer das antigas traves de madeira. As mesmas que viram impassíveis a derrocada de Barbosa no dia 16 de julho de 1950. O ex-goleiro do Vasco da Gama e da Seleção recebeu a doação das balizas. Comprou carne, bebidas, e convidou os amigos para um churrasco em sua casa, na Rua João Romariz, 56, na Leopoldina, cuja finalidade era exorcizar definitivamente o Maracanazo. As antigas traves serviram de lenha para assar a carne. A ideia de queimá-las foi de Abelardo França, diretor da Administração dos Estádios do Estado da Guanabara [Adeg], órgão responsável pelos estádios do Estado entre 1960 e 1975. Mesmo assim não havia ontologia que explicasse os fantasmas que afligiam Barbosa.


Há quem conteste a história. O jornalista Luiz Fernando Bindi [1973–2008] afirmou que as tais madeiras da baliza da final de 1950 estariam na Casa de Cultura de Muzambinho, em Minas Gerais, levadas para lá por Pedro Viola, rico empresário local.

Qual das duas versões seria, portanto, mito? Nenhuma delas. Ambas são verdadeiras. Enquanto Pedro Viola levou para casa a baliza do “gol de Ghiggia”, Barbosa recebeu a do “gol do Friaça”.

O tempo passou e a vida do craque nunca mais foi tranquila. Chegou a reencontrar Ghiggia, em 1970, na festa de 20 anos do Maracanã, em 1970. Os dois se abraçaram respeitosamente, visivelmente comovidos pela lembrança do dia 16 de junho de 1950. Ghiggia, vestido com terno e gravata, Barbosa com uma camisa da Adeg.

Muitos anos depois, um garoto, que sequer nascera em 1950, encheu-o de perguntas sobre a Copa. Todas impertinentes. Barbosa, então calado, interrompeu-o: “Escuta aqui rapaz, por que a vaca defeca um montão e o cabrito faz uma azeitoninha?”. O garoto disse ignorar o motivo. Foi o sinal para a resposta de Barbosa. “Se você não entende nem de merda, como vai discutir Copa do Mundo comigo?”.

Barbosa garantiu ter sido vítima de racismo apenas uma vez ao longo da carreira, quando estava em Porto Alegre, em 1948: “Eu tive, sim, uma experiência pesada de racismo uma vez que eu fui jogar em Porto Alegre e precisei cortar o cabelo, não quis ir a um lugar chique, sabendo que lá têm muitos estrangeiros e descendentes de alemão, que poderiam estranhar alguma coisa, então entrei numa rua secundária, mas discreta, e fui; era um prédio que tinha salão de barbeiro no porão, achei que ali era o lugar ideal para mim, quando entrei vi umas oito cadeiras, sentei na primeira que estava vazia, e veio um senhor louro lá do final da última cadeira, chegou e disse para mim: ‘aqui nós não atendemos preto’. Na hora me deu vontade de quebrar tudo, aí pensei que se quebrasse tudo o prejuízo iria ser meu, ele chamaria a Polícia, dizer que eu era preto arruaceiro. Saí dali tão transtornado que dei uma violenta trombada no meu próprio treinador, que passava na calçada; era o Ondino Vieira [Ondino Leonel Viera Palaserez – 1901–1997], que vira pra mim, assustado, e diz ‘O que há, Barbosa?’; respondo ‘nada’”.

Ao chegar ao hotel, o goleiro decide contar a verdade a Ondino, que fica indignado com o que ouve: “O quê? Aqui no Brasil, sua terra, o cara dizer uma coisa dessas a você?”. A história chegou aos ouvidos de Viriato Aranha, irmão do presidente do Vasco da Gama e homem influente no Rio Grande do Sul. Ele chamou um delegado e um escrivão e foi com Barbosa à barbearia. O delegado entrou no estabelecimento e disse: “Quem falou que não atende preto aqui?”. Barbosa apontou para o homem que o havia ofendido. O barbeiro ouviu um sermão tão forte na frente de todos, que até Barbosa ficou constrangido. “Se fosse eu preferia ter tomado porrada, pela vergonha que ele passou”. Como punição, branda por sinal, a tal barbearia ficou fechada durante trinta dias.

UM EMPREGO DE BILHETEIRO

Restou ao outrora grande goleiro Barbosa não mais os louros. Do futebol, nada sobrou. Dinheiro escasso, precisava fazer outra coisa para sobreviver. Arrumaram-lhe um emprego. Mas longe dos gramados. Quem chegasse à bilheteria do estádio do Maracanã, nos primeiros anos da década de 1970, sentir-se-ia traído pelos olhos. Ou, melhor, ouvidos. Afinal, era impossível ver o dono da mão que entregava os bilhetes para os jogos. Mas um ouvido atento reconheceria a voz do bilheteiro. Era Barbosa. Vinte anos antes, pagavam para vê-lo em campo. Agora, as mãos que tanto alegraram o futebol, estendiam ingressos para o torcedor.

Viver no Rio de Janeiro estava cada vez mais difícil. Mesmo assim, o grande Barbosa foi levando. “Joguei futebol na época do tostão. Boa parte dos jogadores que não tem metade do meu talento, ganha fortunas nessa época do milhão”, declarou o craque, em maio de 1980, já não mais como bilheteiro do estádio, mas como coordenador de ginástica para a terceira idade. Para compor a renda, restava-lhe um emprego de professor de futebol em uma clínica para deficientes mentais. O pouco que ganhava mantinha a casa em que morava, no bairro de Ramos.

O fotógrafo Orlando Brito o encontrou em 1991. Queria clicá-lo para a edição de um livro sobre personagens históricos do País. Mas se deparou com um Barbosa oscilante entre as gratas lembranças do Vasco da Gama e a amargurada memória da Seleção: “Em 1991, mesmo passados 41 anos da malfadada derrota para a equipe uruguaia, ele ainda carregava muito sofrimento. Fui fotografá-lo para ‘Senhoras e Senhores’, livro com homens e mulheres notáveis da História Brasileira. Barbosa me contou que, por volta de 1965, um antigo dirigente do Vasco da Gama, Agathyrno da Silva Gomes, lhe conseguiu um emprego na Suderj, órgão que administra os estádios do Rio de Janeiro. Entretanto, por capricho de sua sina, foi designado para trabalhar no Maracanã, o lugar que mais lhe trazia tristeza e desgosto. Não reclamava. Afinal, precisava do salário. Ficava no Maracanã no turno da manhã, mas não saía do escritório, jamais entrava no gramado ou passava pelas arquibancadas. Sentia-se amargurado quando olhava as traves em que Ghiggia marcou o gol que fez chorar milhões de torcedores. Fui encontrar o ex-goleiro do Vasco da Gama e da Seleção em um dos bairros cortados pela Avenida Suburbana, perto de Del Castilho. Era balconista em uma pequena loja de artigos de pesca. O “bico”, como ele dizia, era para complementar o orçamento. Mas, principalmente, para diminuir a dor do isolamento. Ali, as pessoas não tocavam no assunto e o chamavam de seu Moacyr e não de Barbosa. Impressionei-me com sua figura serena, mas também com a visível carga de angústia. Adorava falar do Vasco da Gama, detestava lembrar a Seleção. Tinha guardada uma camisa do clube do seu coração, com autógrafos dos principais ídolos do time de São Januário em várias épocas. Roberto Dinamite, Bellini, Ademir Menezes, Vavá, Pinga, Romário, Coronel, Andrada, Dunga, Bebeto, Brito, Tostão, Alcir, Abel, Moisés, Sabará, Orlando Peçanha, tantos… Disse-lhe que eu era vascaíno por causa dele. Quando eu tinha sete anos, ouvia no rádio os grandes nomes do futebol. E um desses craques era ele, Barbosa, o grande número um do Vasco da Gama. Portanto, ele estava diante de um fã. Estendeu-me as duas mãos com todos os dedos deformados e agradeceu a gentileza das palavras. E declarou-se um homem definitivamente amargurado: – O futebol me propiciou as melhores e as piores emoções de minha vida. Nos meus 26 anos de carreira, fui campeão 14 vezes. Viajei pelo mundo, fiz alguns amigos. Mas ao perdermos para o Uruguai passei a ser o brasileiro mais criticado da história. – Nunca consegui me livrar da sensação de fracasso”.

Desgostoso, deixou o Rio de Janeiro e mudou-se para um pequeno apartamento em Ocian, na Praia Grande, no litoral paulista. Em maio de 1997, Barbosa perdeu sua esposa, vítima de câncer na medula. O ex-goleiro desembolsou o pouco que lhe restou dos tempos de glória para tentar salvá-la. O baque foi muito forte. O apartamento em que morava com ela e uma cunhada foi vendido por um parente, e Barbosa passou a morar nos fundos da casa de um amigo.

Os amigos mais próximos ajudavam-o a comprar pão, leite ou os remédios que tomava para anemia e disritmia cardíaca. Vivia com R$86 mensais, que recebia como aposentadoria dos tempos em que foi administrador do Parque Aquático Júlio Delamare, no Maracanã, e funcionário da Suderj.

Tereza Borba, amiga que conheceu em Ocian, e dona do ombro no qual muitas vezes chorou, fazia a ponte entre ele e o Vasco da Gama para que o ex-clube não o abandonasse. A partir de 1998, a diretoria do clube carioca passou a enviar para Barbosa cerca de R$2.000 mensais, quantia que o ajudava a pagar o aluguel do imóvel em que vivia.

O jornalista Armando Nogueira assim escreveu sobre o mais injustiçado dos grandes ídolos do futebol brasileiro: “Barbosa tinha uma aura de nobreza que lhe vinha da alma. Conheci-o pessoalmente. Tinha um humor refinado. Era esgalgo [alto e magro] e bonito. Os goleiros de então procuravam imitá-lo, no uniforme, sempre escuro, e nos gestos de puro balé. O Maracanã guardará, com saudade, a imagem dele, um perfil de príncipe emoldurado pelas traves do estádio mítico. Mãos curiosas que decifravam as bolas mais difíceis do jogo. Sempre vi o goleiro como a última esperança da equipe. Me lembro de Barbosa, ainda mocinho. Contemplava-o como uma espécie de anjo da guarda. Foi um arqueiro que seduzia pelo arrojo e coragem, o que lhe custou fraturas que motivaram o corte de seu nome da lista da Copa de 1954. No hospital, recebeu visita de um secretário de Getúlio Vargas, admirador inconteste de Barbosa. Cheguei a uma conclusão depois daquela Copa: a humildade é uma das coisas mais sublimes. Minha vida mudou depois de 1950. Eu me julgava um sujeito prepotente. Depois, cheguei à realidade, vi que nós somos o que somos – nada mais! Ninguém é mais nem menos do que ninguém”.

No dia em que o Brasil enfrentaria o Uruguai para se classificar para a Copa do Mundo de 1994, jornalistas da BBC de Londres, que produziam um documentário, levaram Barbosa para visitar, na Granja Comary, a concentração da Seleção dirigida por Parreira e Zagallo. Foi barrado. Ficou extremamente magoado e constrangido.

Barbosa viu, com melancolia, a Seleção se classificar e ser campeã mundial em 1994, mas não viu a virada do milênio. Morreria no dia 7 de abril de 2000, na Santa Casa da Praia Grande, em decorrência de problemas após um derrame sofrido dias antes. No velório, em uma capela local, os poucos que se despediram dele ignoravam que ali, naquele caixão, jazia o maior goleiro que o Brasil já conheceu.

A amiga [quase filha] Tereza pediu ao escritor Carlos Heitor Cony uma frase para a lápide de Barbosa. “Tenho uma foto dele, segurando minha filha que ainda não tinha um ano de idade. O Vasco da Gama mantinha uma concentração na Ilha do Governador, perto da casa de veraneio de meu ex-sogro. Barbosa viu a garota no carrinho. Perguntou se podia pegá-la. Tenho a foto até hoje. Naquele ano, Barbosa deu o título de campeão para o Vasco da Gama. Eu torcia pelo Fluminense, com exasperação, achava que meu time podia ser bicampeão, repetindo o título do ano anterior. Barbosa tirou o pão da minha boca. Nunca mais vi um time ser campeão por causa de um só homem. O Fluminense tinha a fama de ter os melhores goleiros: Batatais, Castilho e Veludo. Mas foi Barbosa o melhor de todos que vi jogar […] Homem admirável, sempre sorrindo, homem bom que só o povo produz em seus melhores momentos, Barbosa sempre me encheu de assombro. Não saberei fazer uma frase para sua lápide. Como disse, admirei-o de longe, em silêncio, mas sempre tive orgulho daquelas mãos que seguraram minha filha. Ele, na certa, nunca se lembraria dessa foto circunstancial em que segurou uma menina. E nunca entenderia aquele pai que passou por ele e, sem nada dizer, deixou que a sua filha ficasse no colo de um homem bom. Repito: um homem bom, que só o povo produz em seus melhores momentos de povo”.

O anjo se foi e, do samba “Quando eu me chamar saudade”, de Nelson Cavaquinho e Guilherme de Brito, fica a lição para os que caluniaram Barbosa:
Depois que eu me chamar saudade
Não preciso de vaidades
Quero preces e nada mais

No dia seguinte ao adeus de Barbosa, no cemitério Morada da Grande Planície, na Praia Grande, nada definiu melhor, em uma única frase, a dramática vida do ídolo. No alto da página do jornal “Folha de S.Paulo”, lia-se, com profunda tristeza e conformação: “Brasil assiste a 2º enterro de Barbosa”.


Personagens como Barbosa são considerados deuses do futebol. São inesquecíveis. Podem até morrer ou viver quando bem quiserem, que sequer a pecadora e desidiosa memória dos mortais lhes incomodará.

Nada como outro deus, de outro panteão, para louvar Barbosa. Assim, escrevera Nélson Rodrigues, em artigo publicado na revista “Manchete Esportiva”, de 30 de maio de 1959: “Ora, eu comecei a desconfiar da eternidade de Barbosa quando ele sobreviveu a 1950. Então, concluí de mim para mim: esse camarada não morre mais! Não morreu, e, pelo contrário: está cada vez mais vivo”.

Viva, Barbosa…

DIDA, O HERÓI DOS SONHOS DO MENINO ZICO

por André Felipe de Lima


“Dilema de criança: quem escalar como craque do time de botão? O homem de hoje foi técnico de time de botão no passado. E ai daquele que negar isso. Diversão das mais sadias que enterramos no limbo de nossas memórias. Nossos filhos já não brincam mais debruçados sobre uma tábua de futebol de mesa, imitando um Jorge Curi ou um Waldir Amaral. Preferem aqueles inexpressivos joguinhos de computador, que não os permitem sonhar. Jogar botão é diferente. Sonhamos vendo — com brilho nos olhos — o time que sempre queríamos ter em nossos clubes de verdade, mas que ficará ali, guardadinho em nossa enferrujada latinha de achocolatado ou na gaveta misturado com nossas roupas. Se Pelé era do Santos, eu o tinha no meu time de botão. Se Garrincha era do Botafogo, também estava lá, firme na ‘ponta-direita’. Os dois jogavam até com Domingos da Guia, Fausto e Ademir de Menezes, craques que pesquei num passado ainda mais longínquo que o deles para montar meu esquadrão. Mas todos estavam no meu escrete. Para o meu time não havia relógio, calendário que fosse… meus craques eram ‘contemporâneos’.

“Nos idos de 50, deve ter acontecido algo parecido com um menino cujo nome é Arthur, que ouvia do pai, José Antunes, que o Flamengo tinha um jogador fora de série. E o pai emoldurava os comentários como se estivesse irradiando uma jogada in loco: ‘Bola com fulano, que passa a cicrano e… gol! Gol lindo, senhores…’. O filho o ouvia encantado e desenhava em sua mente como não teria sido aquele lance, ao vivo, em pleno Maracanã. O garotinho não teve mais dúvidas. Era preciso trocar a estrela do seu time de botão. O novo ‘camisa dez’ deveria se chamar Dida, o craque do Flamengo do pai e também do seu coração.


(Foto: Arquivo Museu dos Esportes)

“Os anos passaram, Arthur cresceu e se consagrou no Flamengo como o Zico, um mito igual ao seu ídolo do passado, Dida, o camisa dez de milhares de escretes de botão Brasil a fora.

“Mas — para o já mitificado Zico — Dida era o maior. Cresceu idolatrando-o. Se estava no Maracanã com o pai, ia ao estádio mais por Dida que pelo Flamengo. Seu Antunes costumava contar a todos que Zico, ainda no berço, não disse nem “papai” nem “mamãe”. A primeira palavra que pronunciou foi, sílaba a sílaba, ‘Di-da’. Quando o craque decidiu o tricampeonato carioca de 1955, após liderar o Flamengo na vitória de 4 a 1 sobre América, na noite do dia 4 de abril de 1956, Zico tinha pouco mais de um ano. A paixão veio, portanto, do berço.”

Este texto abre a biografia do craque Dida que estará no volume da letra “D” da enciclopédia Ídolos-Dicionário dos craques do futebol brasileiro. O inesquecível ídolo do Zico e de todo rubro-negro que se preze completaria hoje 84 anos.

Dida foi um jogador magistral. Um dos maiores que o Flamengo já teve. Para muitos, antes de Zico, somente Zizinho e Domingos da Guia estavam no mesmo patamar de idolatria. Nem mesmo Leônidas da Silva, tão badalado após a Copa de 1938, foi tão cultuado quanto Dida, que seria o camisa dez da Seleção Brasileira na Copa do Mundo de 1958 se no meio do caminho não aparecesse um moleque extraordinário chamado Pelé.

Dida foi muito criticado por não ter jogado tudo o que sabia nos primeiros momentos daquela Copa. O próprio Leônidas da Silva o criticou ferozmente a ponto de Nelson Rodrigues sair em defesa do craque do Flamengo, sobretudo após ele marcar seis gols na goleada de 8 a 0 do Flamengo sobre o Olaria, no campo da Gávea, no dia 22 de agosto de 1958.

No dia 30 de agosto de 1958, assim Nelson Rodrigues escreveu sobre Dida e respondeu, sem eufemismos, ao despeitado Leônidas da Silva:


“O placar do Flamengo é de assustar: — 8 x 0! Essa abundância numérica significa que o rubro-negro submeteu o Olaria a um metódico, a um meticuloso, a um hediondo massacre. E o patético é que não foi um time, uma equipe, que construiu o escandaloso placar. Foi um homem, um único e solitário homem que desandou a fabricar gols a torto e a direito. Esse homem chama-se Dida e eu o apresento aqui como o meu personagem da semana. Na véspera, ou seja, sábado, um outro craque enfiara quatro.

“Refiro-me a Didi que, funcionando na frente, na área, acabou com a Portuguesa. Conquistou quatro tentos de antologia. Dida, porém, fez mais: — meia dúzia e, ontem, nenhuma força humana ou divina conseguiria destruí-lo. Muita gente há de pensar que Dida abusou, que não devia ter feito tanto, que podia ter-se limitado aos dois, aos três, ou, como Didi, aos quatro. Mas a verdade é que o aparente exagero tem sua íntima lógica irredutível. De fato, Dida andou passando mal na Copa do Mundo. Na Suécia, o locutor Leônidas apanhou o microfone para dizer horrores a seu respeito. E vamos e venhamos: — fora da pátria, o sujeito é mais sensível, mais vulnerável. Qualquer restrição que se lhe faça soa como uma bofetada.


(Foto: Arquivo Museu dos Esportes)

“E, além disso, nada enfurece tanto como a injustiça. Qualquer paralelepípedo sabe que Dida é um jogador de alta qualidade. Perguntem a uma zebra do jardim zoológico: — ‘Dida é um perna-de-pau?’. E a zebra responderá, com uma ênfase tremenda: — ‘Absolutamente! Absolutamente!’. Pois bem: — só Leônidas achou de arrasar Dida como se este fosse um bonde. Disse, entre outras barbaridades, que ele não podia nem jogar num time de primeira divisão. Falei em injustiça e repito: — deslavada injustiça! Só hoje, passado o impacto da Copa do Mundo, é que se compreende a ferocidade de Leônidas. Craque do passado, ele quer ser ainda ‘o maior’. Sofre com os ‘diamantes negros’ ou ‘brancos’, ou ‘morenos’ da atualidade. A glória alheia, em futebol, o ofende e humilha. E, por isso, meteu o pau em Dida. Era como se dissesse: — ‘Ah, meus tempos, meus tempos!’.

“E o fato é que Dida jogou apenas uma vez na Suécia e voltou de lá amargurado. E, aqui, havia quem perguntasse: — ‘Será que Dida acabou?’. Muitos julgavam sentir, nas suas últimas atuações, um certo desgaste. Suas velhas características pareciam diluídas. E eis que, ontem, contra o Olaria, o homem voltou a ser ele mesmo.

“Viu-se na Gávea um Dida em plenitude, comendo a bola como nos seus instantes mais puros e triunfais. Dirá alguém que o Olaria não é grande adversário. De acordo. Longe de mim considerar o Olaria um escrete. Mas uma goleada impõe-se por si mesma, torrencial e irrefutável. Como raciocinar, como argumentar contra a histeria numérica dos 8 x 0? E se atentarmos em que foi Dida, unicamente Dida, o autor de seis dos oito gols, então compreenderemos que estamos em face não de um ex-Dida, mas do próprio. Não há dúvida, amigos. Despontou com a sua furiosa velocidade, e mais: — com a capacidade de invadir, de penetrar, de cortar, de envolver e de fuzilar. Mas creiam: — o que o inspirava não era apenas o sadismo de um gol atrás do outro. Ele enfiava um gol, e depois outro, e mais outro, como se quisesse fazer uma afirmação para si mesmo. Queria sentir-se um Dida integral e não tenhamos ilusões: — foi cem por cento Dida.

“Qualquer jogador de futebol, do virtuose ao perna-de-pau, tem suas panes, suas depressões. Dida estaria numa dessas angústias. Mas quem, depois de meter seis gols, não há de sentir-se um triunfador, com um certo charme cesariano, uma certa aura napoleônica? Sim, depois de ontem, Dida baniu de si mesmo, até o último vestígio, o drama da Suécia.

“Quando soou o apito final, o aspecto do grande jogador era algo patético. Tinha o olho rútilo e o lábio trêmulo. Que os outros times tratem de pôr as barbas de molho! Dida voltou a ser Dida e para sempre Dida.”

Reforçando o que escreveu Nelson Rodrigues, Dida será para sempre um dos mais carismáticos ídolos da genealogia rubro-negra. Zico, na manhã deste domingo, certamente acordou mais feliz. É aniversário do seu eterno herói, o grande Dida.

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ALCINO, VERDADEIRA MALUQUICE DE CRAQUE

por André Felipe de Lima


Para a maioria dos torcedores do Remo, de Belém do Pará, não há dúvida: o centroavante Alcino é o maior ídolo da história do clube. Polêmico ao extremo, conquistou a torcida dentro de campo. Fora dele, ia do céu ao inferno com uma facilidade assustadora.

Hoje, dia 24, o craque, que morreu prematuramente, em 2006, completaria 65 anos. Fica aqui, a homenagem deste jornalista e pesquisador a um jogador cuja história se mistura com as glórias do Remo.

Alcino Neves dos Santos Filho. Esse nome está na memória de todos os torcedores paraenses, especialmente os do Remo. Dentro de campo, gols à vontade e alguns gestos pouco ortodoxos, fora dele, muitas polêmicas. Muitas mesmo.

Ganhou um apelido: “Negão Motora”. Alguns dizem que em função de sua “paixão” por automóveis. Outros garantem, porém, que o apelido veio após uma situação para lá de constrangedora.

Na tarde do dia 26 de maio de 1984, Alcino, em franca decadência, defendendo o Rio Negro, de Manaus, achava ser o ator Jack Nicholson, quando este protagonizou o filme Um estranho no ninho, sucesso de Hollywood dos anos de 1970.

Completamente fora de si, alegando estar “cansado da concentração”, onde morava de favor, arrombou o armário onde estava guardada a chave de um microônibus do clube e rodou pela cidade. Horas depois, completamente embriagado, atropelou o motorista de caminhão Manuel Amadeu da Silva, de 41 anos, que, segundo a imprensa da época, teria morrido em seguida.

Alcino fugiu e ao retornar à concentração os dirigentes do Rio Negro suspenderam seu contrato. Para piorar, recebeu ameaças de morte de amigos da vítima. “Foi uma fatalidade, não sou culpado de nada”, desculpava-se.

Sua vida sem compromisso e desregrada acabou conduzindo-o ao cadafalso.

Até mesmo dentro dos gramados extrapolava os limites, como descreve reportagem da revista Placar, de maio de 1980, que abre o texto com base no depoimento anônimo de um ex-companheiro de time do “Motora”: “Quando jogava no Remo, de Belém, o centroavante Alcino cultivava um hábito: antes de entrar em campo, fumava um cigarrinho de maconha. Enquanto os companheiros esperavam na boca do túnel, o roupeiro ficava na porta do vestiário, para avisar a quantas andava o aquecimento especial do grandalhão.”

Alcino era um cara contraditório, capaz de um dia cometer desatinos, como o de pegar um ônibus e sair desvairadamente pelas ruas, ou, em outro, ir à rua das Olarias, próxima ao estádio da Portuguesa de Desportos, para jogar uma saudável pelada com os garotos do bairro.


Foto: Gazeta Press

Alcino não dispensava essa relação com o povo, com o torcedor. Sempre parava no bar “Lusa do Canindé” para um papo com os torcedores. Às vezes classificavam seu comportamento como infantil. Alcino descia à rua para dançar com as crianças, e até gostava quando o chamavam de John Travolta.

Nunca soubemos se Alcino era feliz ou triste.

***

Alcino está na Letra “A” de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro”,

BIGUÁ, O PRIMEIRO ‘DEUS DA RAÇA’ RUBRO-NEGRO

por André Felipe de Lima


Torcedores rubro-negros na faixa dos 40 anos cresceram vendo o zagueiro Rondinelli, o que marcou, de cabeça, o gol do título estadual de 1978 sobre o Vasco, como o “Deus da raça” do Flamengo. Mas, na década de 1940, outro defensor rubro-negro, o ex-lateral-direito Biguá, merece a primazia sobre o apelido. Até o surgimento de Leandro, foi ele o mais emblemático lateral-direito que passou pelas hostes da Gávea. Hoje, dia 22, Biguá faria 96 anos.

Mario Filho foi um dos que reconheceram a disposição do guerreiro Biguá: “Era tido como um índio. Se não fosse o cabelo de boneca japonesa seria tomado por preto. Era baixo, atarracado, de pernas grossas, de poltrona. Mas, tocando no chão, subia feito uma bola de tênis. Quando se enfurecia parecia um daqueles indígenas dos poemas de Gonçalves Dias. Ou melhor, um apache ou sioux de fita americana, de machado em punho para escalpelar um pale face [pele branca – referência a luta dos indígenas nos Estados Unidos].”

Moacir Cordeiro — assim se chamava o ídolo — nasceu em Irati, interior do Paraná, em 1921. Tinha personalidade. Foi marcador implacável, mas não era técnico. Ao lado de Modesto Bria e Jayme de Almeida formou uma eficiente linha média do Flamengo dos anos de 1940. Para o extraordinário ponteiro-esquerdo Félix Lostau, da “La máquina” do River Plate, nos anos de 1940, Biguá foi o seu melhor marcador.

Biguá teve um grande amigo dentro e fora dos gramados, o ponta-esquerda Chico, do Vasco. E, no próximo sábado, 25, haverá clássico entre Vasco e Flamengo. Os dois craques do passado são símbolos históricos de que o futebol permite paz entre rivais.


O grande Biguá foi titular absoluto nas equipes do Flamengo que conquistaram o primeiro tri-campeonato carioca para o clube em 1942, 43 e 44. Quem o admirava era o zagueiro Domingos da Guia, que já em final de carreira no Corinthians convidou Biguá para trocar a Gávea pelo Parque São Jorge. Biguá quase aceitou. Prevaleceu, contudo, a paixão pelo Flamengo. “E no dia em que o Corinthians jogasse contra o Flamengo, como é que eu ficaria?”. Amava tanto o Flamengo que, do banco de reservas, chorou ao ver os mais jovens conquistarem o campeonato estadual de 1953, que abriria o caminho para o segundo “tri” do Rubro-negro.


O jogo de despedida de Biguá, contra o Botafogo, no dia 3 de novembro de 1953, foi uma das passagens mais bonitas da história do Flamengo. Pegou uma bola e chutou para torcida guardá-la como emblema daquele dia inesquecível. A torcida o aplaudiu efusivamente.

Após uma volta olímpica no gramado do Maracanã, o craque entregou suas chuteiras ao novato meia Carlinhos, o futuro “Violino”, como seria chamado ao longo da década de 1960. Após Biguá “passar” a chuteira para Carlinhos, o craque tentou chutar uma bola para a arquibancada, mas foi tão sem força que a pelota caiu na geral.

De tão emocionado, Biguá correu em direção ao primeiro túnel que viu. Era o do Botafogo. Carlito Rocha, o folclórico cartola alvinegro, apertou-o contra o peito e disse: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”.