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Dicionário dos Craques

GARRINCHA, GENTE BOA, É UM INTEMPESTIVO E TRIUNFAL ESTADO DE SER

por André Felipe de Lima


O poeta Fernando Pessoa escreveu o seguinte: “O mito é o nada que é tudo”.  Jung percorreu caminho parecido. Dizia ele que o mito mostra-se essencial para penetrarmos os recônditos do ser humano. O símbolo com os quais nos identificamos desenharia, portanto, quem somos na alma, possibilitando-nos identificar e compreender as “verdades” intrínsecas ao longo da vida. Ao longo da história dos homens. O mito é assim: o “nada que é tudo” que nos permite adentrar a realidade com um sorriso, com a alegria que fundamenta a arte. Garrincha é o meu mito. Jamais o vi jogar ao vivo, mas o que li e assisti em vídeo sobre ele garante-me a certeza de que ali, diante dos meus olhos, encontrava-se o mais singular e eloquente mito da história do futebol mundial. É incalculável o que se construiu a partir daquele previsível e instintivo drible para a direita, porém intransponível. Imarcável. Analogicamente, parar Garrincha seria como se alguma mão deificada fizesse parar a terra de girar. Ou seja, o fim da história. O fim do mundo, ora essa! Garrincha, decerto, jamais deixará de existir. Gira ininterruptamente e eterno como o planeta. Mané jamais nasceu ou morreu, meus caros. O impoluto Garrincha traduz, numa concepção fenomenologicamente heideggeriana, o “ser em” mais completo que brotou do nada para construir a história mais emocionante que o futebol já ofereceu ao mundo.


Outro dia, entrevistando os jogadores tchecos remanescentes da final da Copa do Mundo de 1962 — sim, aquela que o mítico Mané “ganhou” sozinho —, eles foram unânimes ao afirmar que Garrincha foi o maior dentre os maiores. Um camarada, que se dizia músico, acompanhava a delegação dos tchecos. Abordou-me e a mim mostrou um CD todo ele composto em homenagem ao Garrincha. Visivelmente emocionado, ele declarou nunca tê-lo visto jogar, mas fez do Mané o seu grande ídolo. Meu Deus, ali, diante de mim, em uma caixinha de CD, o tal “ser em” do Heidegger personificado na imagem mítica do Garrincha, para a qual jamais haverá tempo capaz de apagá-la.

O dionisíaco Garrincha sucumbiu na carne, mas na alma foi um exemplo liberto, como se fosse o Zaratustra nietzschiano. Mané ensinou-nos a felicidade. Ensinou-nos a buscarmos, sempre para frente, como se driblássemos igualzinho a ele, o gol de nossas vidas. Quando algo triste a assaltar-nos a mente tornar-se insistente, experimente-se pensar em Garrincha, no seu sorriso puro e cativante e, claro, nos seus dribles.  Tristeza vai-se embora.


O poeta Carlos Drummond de Andrade sentia-se mais do povo, e portanto feliz, ao fazer de Garrincha o remédio para a melancolia: “Se há um deus que regula o futebol, esse deus é sobretudo irônico e farsante, e Garrincha foi um de seus delegados incumbidos de zombar de tudo e de todos, nos estádios. Mas, como é também um deus cruel, tirou do estonteante Garrincha a faculdade de perceber sua condição de agente divino. Foi um pobre e pequeno mortal que ajudou um país inteiro a sublimar suas tristezas. O pior é que as tristezas voltam, e não há outro Garrincha disponível. Precisa-se de um novo, que nos alimente o sonho.”

Quantos milhares nos estádios sentiram-se Garrincha vendo-o jogar? Quantos ainda hoje sentem o mesmo apenas assistindo ao extraordinário “Alegria do povo”, sob a aguçada câmera do Joaquim Pedro de Andrade e do Barretão? Mané soube retribuir, e com humildade dizia não ser ele a alegria do povo, mas sim ser o povo a sua alegria. Suscetíveis a todas as formas de resignação, louvamos Mané.

Garrincha mostrou a todos que o futebol tem sua peculiar filosofia e que ele, Mané, fez-nos mais felizes e independentes para driblarmos. Quem um dia, quando menino, não se sentiu Garrincha? Garrincha é mais que humano. Garrincha, gente boa, é um intempestivo e triunfal estado de ser.

***

ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV CULTURA

ENTREVISTAS E IMAGENS DO GARRINCHA NA TV RECORD

ALEGRIA DO POVO

FIGUEROA, O ‘PATRÃO’ DA ÁREA OU O MAIS BONITO DO VERISSIMO

por André Felipe de Lima


Falcão, quem diria, não foi unanimidade entre os torcedores do Internacional. O vaticínio soaria sacrilégio se a revista Placar, em uma edição especial de dezembro de 2005, não confirmasse o zagueiro Figueroa como o único a receber todos os votos de torcedores ilustres do Colorado reunidos para eleger o time dos sonhos do Internacional. “Não precisa explicar”, disse Mário Marcos de Souza, co-autor do livro História dos Grenais, para quem Figueroa não exigia elucubrações mais complexas. Era craque e ponto final. Ademais, como o próprio costumava alegar: “Vitórias não se merecem, se conquistam.”

Os 320 jogos e os 26 gols com a camisa rubra fizeram do grande zagueiro um dos maiores jogadores de todos os tempos do futebol gaúcho. Na defesa, mandava Figueroa. Era o “patrão da área”, o “capitão dos Andes”. Há quem defenda com ardor a tese de que a história do futebol dos pampas deva ser contada antes e depois da passagem de Figueroa pelo Inter. E quem discordaria do mago das letras Luis Fernando Verissimo, que durante um jantar oferecido ao ídolo em sua casa, em que compareceram Bráulio, Carpegiani e outras celebridades coloradas, constatou o imponderável? Além de craque, o “patrão da área” declamava Pablo Neruda como poucos: “E na saída do jantar, já na rua, olhando as estrelas, o Figueroa lascou o Neruda — Figueroa é fã de Pablo Neruda, especialmente do “Poema 20” — diante de uma platéia fascinada: “Puedo escribir los versos más tristes esta noche. Escribir, por ejemplo: la noche esta estrellada Y tiritan, azules, los astros, a lo lejos…”. O Ruy [Ruy Carlos Ostermann, jornalista e, obviamente, colorado em várias encarnações] descreveu a cena na sua coluna do jornal Correio do Povo, dias depois. Estava lançado o mito. O homem, além de tudo, era um intelectual!”. A verdade é que o escritor encontrou-se outras vezes com Figueroa. Esperava ouvir dele comentários revestidos de vigorosa erudição sobre a literatura latino-americana, mas os encontros nem foram tantos assim e tampouco o papo era intelectual. Na pauta das conversas, um único tema: futebol. “Ele e a Marcela [esposa do craque] eram pessoas inteligentes e agradáveis, mas depois daquela noite estrelada o Neruda nunca mais foi citado”, conformou-se Verissimo.


Elías Ricardo Figueroa Brander nasceu em Viña del Mar, no Chile, dia 25 de outubro de 1945. Defensor técnico e preciso nos desarmes, era vigoroso nas disputas de bola, porém leal. O “Xerifão” costumava se referir a grande área como uma propriedade: “A área é a minha casa, aqui só entra quem eu quero”. Mas havia os mais abusados que ousavam entrar em sua “casa” sem serem convidados. Ah, os incautos… e Figueroa usava os cotovelos “com alguma prodigalidade”, como escreveu Veríssimo, para “punir” os atacantes. Nada pessoal. Só não permitia invasão de domicílio. Isso, nunca.

Antes de brilhar com as camisas de Internacional e da seleção chilena, Don Elias Figueroa teve de travar uma batalha contra problemas de saúde na infância. Passou por uma operação para sanar um problema respiratório que não o permitia praticar esportes quando ainda tinha apenas seis anos de idade. Logo depois, aos dez, o adversário era a poliomielite [paralisia infantil] que o obrigou a um ano de tratamento, a maior parte do tempo deitado sobre uma cama. Porém, cercado de cuidados da família e, quem sabe, graças a uma mãozinha dos deuses do futebol, estaria de pé novamente. Saiu da infância e tão logo entrou na adolescência surgiu o casamento. Figueroa tinha apenas 16 anos e Marcela, o amor de infância, 15.


O primeiro clube da carreira foi o Santiago Wanderes, em 1963. No ano seguinte, teve uma rápida passagem pelo Unión La Calera. Depois, mais duas temporadas no Wanderes quando foi convocado para defender o Chile na Copa do Mundo de 1966*. Conseguiu destaque internacional e logo surgiu o interesse do Peñarol. Fez grande sucesso no aurinegro onde conquistou o bicampeonato uruguaio [1967 e 1968] e logo se tornou ídolo da torcida.

Em 1971, o Peñarol passava por dificuldades financeiras e teve que negociar o jogar. O Internacional disputou o passe do craque com o todo poderoso Real Madrid e no fim o Colorado levou a melhor. Para Figueroa a escolha foi mais do acertada: “Tive a oportunidade de sair para os dois lados. Escolhi o Inter e fico feliz pela escolha que fiz”. Desembarcou em Porto Alegre, no dia 11 de novembro de 71, ao seu lado o vice-presidente de futebol do Inter, Eraldo Hermann, que alegava ter sido Figueroa a contratação mais expressiva da história do futebol gaúcho. O marketing era nada mais que uma resposta ao rival, que contratara o melhor zagueiro da Copa de 1970, o uruguaio Ancheta, semanas antes. “O Internacional não podia ficar atrás. Toda a história moderna do futebol gaúcho está contida nesta frase: nem Inter nem Grêmio podem ficar atrás um do outro, sem o risco de crise e revolta da torcida”, escreveu Luis Fernando Verissimo, para quem Figueroa, além de mais craque que Ancheta, era “mais bonito”. E parece que o cartola Hermann compreendia bem a frase citada pelo escritor colorado. No ano seguinte, com Figueroa quase intransponível, o Inter conquistou o Campeonato Gaúcho e, em 1973, alcançou o “penta” estadual.

Entre os vários motivos que fizeram Figueroa optar pelo futebol brasileiro, um em especial nos leva a pensar sobre os rumos do esporte no País: “Eram muitos atletas de alto nível, por isso era melhor jogar aqui”. E ele tinha razão, quase todos os tricampeões mundiais jogavam no Brasil. Algo improvável nos tempos atuais é ver um grande craque atuar por um clube brasileiro.

Figueroa chegou ao Beira-Rio para dividir com Falcão a liderança do time na fase áurea do Internacional. Os números são impressionantes de 1971 a 1976, ganhou todos os campeonatos gaúchos. De quebra, o escolheram como o melhor zagueiro da América do Sul por três anos consecutivos [1974, 75 e 76] e participou das Copas de 1966, 1974 e 1982, na Inglaterra, na Alemanha e na Espanha, respectivamente. Na de 1974, foi considerado o melhor defensor.

Em 1975, o capitão fez o gol que garantiu o primeiro título brasileiro da história do Internacional. Na tensa final contra o Cruzeiro, em pleno Beira-Rio, marcou o “gol iluminado” ao cabecear a bola cruzada por Valdomiro para o fundo das redes de Raul Plasmann. O “gol iluminado” ficou conhecido desta maneira porque foi assinalado no único local do estádio onde batia a luz do sol naquela tarde.

No ano seguinte, a forte equipe gaúcha seria novamente a dona do Brasil ao conquistar o bicampeonato nacional. A final foi disputada mais uma vez no Beira-Rio, só que o adversário era o Corinthians. Após fechar a partida em 2 a 0, a taça novamente era erguida pelo inesquecível capitão colorado. Também em 1976, o Inter travou contra o Cruzeiro um dos jogos mais emocionantes dos anos de 1970. Palhinha, então ponta-de-lança cruzeirense, tinha o hábito de provocar os adversários. Fez troça logo com quem… “Palhinha vinha com aquele papo de ‘você não joga nada’ ou ‘vou te quebrar’. Isso me chateava. Ele jogava muito, não precisava desses recursos. Um dia, na Libertadores de 1976, rebentei a cara do Palhinha. Ele jogou sangrando. Na volta, em Belo Horizonte, tentou fazer o mesmo comigo e foi expulso. Eu dizia: ‘Me bate de frente, Palhinha’. Mas ele vinha por trás. Gosto de nego valente.”

Não era só dentro de campo que o zagueirão se destacava. O estilo galã e o porte físico do jogador atraíam a torcida feminina.


Em meados de 1973, um repórter resolveu fotografá-lo nu, de costas, após uma partida quando Figueroa ainda trocava de roupa no vestiário do Estádio dos Eucaliptos. A foto foi estampada em uma charge de Marco Aurélio, no jornal Zero Hora, de Porto Alegre. O escândalo transformou o jogador em um símbolo sexual, mas também despertou nos cartolas da Federação Gaúcha de Futebol um arroubo moralista [ou seria despeito?…]. O campeonato foi interrompido durante uma semana por causa da bunda do Figueroa: “Depois o fotógrafo disse que só queria mostrar que eu era de carne e osso. Pô, que me mostrasse no supermercado ou algo assim”. Aurélio premeditou tudo. Queria mesmo era espetáculo, polêmica. Ele mesmo reconheceu isso. “A Jacqueline Kennedy Onassis havia sido flagrada nua por paparazzi em uma ilha grega. O escândalo foi total. Eu resolvi tentar o mesmo estardalhaço por aqui”. O chargista combinou tudo com o fotógrafo do Zero Hora, Hipólito Pereira. Os dois seguiram para o estádio do Beira-Rio, mas os jogadores colorados estavam no Eucaliptos. Ambos mudaram o rumo e seguiram para o local onde poderiam flagrar Figueroa. Foram barrados pelo segurança e, pacientemente, aguardaram o final do treino. Diante do basculante do vestiário, promoveram o clique mais causticante daquele ano. “Eu dei o pé para o Hipólito subir. E ainda assim ele foi obrigado a erguer a máquina e disparar, nem viu direito o que estava acontecendo no vestiário”. Figueroa, garantiu o chargista, foi o que menos se sentiu incomodado com a história. O zagueiro recebeu a solidariedade de todo estado. Era gente da Igreja Católica, políticos, cartolas [inclusive do Grêmio] e torcedores mais sentidos com aquilo tudo. Aurélio é quem penou. Teve de conceder entrevistas para Deus e o mundo — até mesmo para o programa televisivo do apresentador Flávio Cavalcanti — e quase foi linchado em um restaurante por colorados mais exaltados. O principal executivo do Grupo RBS, proprietário do Zero Hora, Maurício Sirotsky, deu o caso por encerrado ao não passar as fotos para outros veículos e entregá-las a Figueroa. No final das contas, o campeonato foi paralisado pela foto da bunda do zagueiro chileno e o Inter conseguiu recuperar uma penca de craques contundidos. Tudo a tempo para o elenco levantar o pentacampeonato estadual. Restou ao treinador Dino Sani agradecer ao chargista, como descreveu o cronista Marcelo Xavier: “Você venceu o campeonato para nós.”

Polêmica e muitas glórias depois, Figueroa trocou o Inter pelo Palestino, do Chile, em 1977. O craque passou ainda pelo futebol dos Estados Unidos, onde defendeu o Fort Lauderdale Strikers. O último clube do eterno capitão chileno foi o chileno Colo-Colo, onde encerrou a carreira em 1980, aos 36 anos de idade. No time americano, Figueroa, após cotovelada de um adversário, quebrou o maxilar e teve de levar quarenta pontos no rosto. Queria voltar a campo, mesmo machucado, para bater no jogador. Contido, levaram-no para o hospital.


Enquanto vivia intensamente a paixão pelo esporte bretão, Figueroa foi se preparando para o momento em que deixaria os gramados. Iniciou a carreira de treinador no Palestino e, em seguida, retornou ao Inter, em 1995, para atuar como gerente de futebol. Neste período, chegou a assumir o cargo de treinador do Colorado.
O craque passou a fazer de tudo um pouco. Como empresário, assumiu uma distribuidora e importadora do vinho Dom Elias, em Porto Alegre.

Com consciência da importância do estudo, fez faculdade de jornalismo e permaneceu ligado ao esporte exercendo a profissão de comentarista e de diretor da Universidade do Esporte, no Chile. Ciente de sua posição de ídolo, o ex-atleta também dá exemplo de cidadania ao se dedicar ao programa Futebol pela Paz, da Organização das Nações Unidas. Figueroa preside um grupo de ex-jogadores que faz parte do projeto que luta contra a pobreza e auxilia crianças carentes pelo mundo.

Nas lembranças de colorados, nunca deixará de existir. Luis Fernando Verissimo guarda até hoje, como relíquia, a foto ao lado do ídolo, tirada em sua casa, durante um churrasco que marcou a despedida de Figueroa, em 1977, entre uma partida e outra de totó: “Nosso zagueiro ia embora, mas nos deixava a memória de uma fase incrível que hoje parece tão remota quanto nossas calças”.

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POUCOS PERCEBIAM, MAS QUARENTINHA SORRIA

por André Felipe de Lima


A melhor dimensão do ser humano é a capacidade da alteridade. A capacidade de olhar para além de si, procurando no outro o complemento de uma identidade. Isso se chama: caridade. Faria 84 anos neste dia 15 o maior artilheiro da história do Botafogo. Faria anos Quarentinha, o que sorria pouco ou nunca. O que era amigo do Garrincha, que o chamava de “Cabeção”. Mas era a forma carinhosa que Mané encontrava para tratar aqueles que amava. Sim, Mané amava Quarentinha. Juntos, lá na área adversária, promoveram jogadas e gols memoráveis. Muitos falam de Pelé e Coutinho. Acho até justo. Porém Garrincha e Quarentinha também faziam das suas juntos. Faziam gols aos montes também. Quantas bolas do Mané foram parar adocicadas nos pés de Quarentinha? Invariavelmente muitas — para lá de 300 — pararam nas redes do infeliz goleiro que diante dele ousasse estar.

Na Seleção Brasileira, as estatísticas não mentem. Em 17 jogos marcou 17 gols. Média assim, nem Pelé. Ah, se Quarentinha tivesse mais oportunidades para jogar ao lado do Rei…


Vamos lá, resposta rápida: quantos gols teria marcado, afinal, o velho paraense Waldir Cardoso Lebrego, “amigo da Onça” dos goleiros caso os técnicos do escrete o percebessem? Não há como mensurar. Mas passaria — fácil, fácil — da centena. A canhota de Quarentinha tinha fogo, meus amigos. Por três vezes ela o fez artilheiro do Campeonato Carioca, em 1958, em 59 e em 60. Quarentinha, o infernal. Deveria sorrir, sim. Mas alegava que ao marcar gols cumpria a obrigação de um trabalhador. Muitos alegavam que a postura era antipática ou qualquer coisa assim. Nada disso. Quarentinha era na dele. Nada mais. Tinha orgulho de percorrer o mesmo caminho do pai, o famoso Quarenta do Paysandu. Só que o filho, de longe, superou o pai. Tornou-se o melhor centroavante da história do Botafogo.

Se desconhecia a pidedade com os goleiros, fora do gramado o Quarentinha era diferente. Uma alma das mais bacanas e generosas.

Em setembro de 1960, o zagueiro Hélio, do América — aquele mesmo, que teve a carreira tragicamente interrompida pela entrada criminosa do Almir Pernambuquinho —, encontrava-se em situação financeira lastimável. Longe dos gramados, pedia ajuda a todos, mas poucos estendiam a mão ao jogador.

A diretoria do América e ex-companheiros do time eram os únicos que ainda se preocupavam com seu ex-craque, com uma ajudinha ali outra acolá. Mas era pouco para que ele, Hélio, realizasse o sonho de ter uma casa própria, que oferecesse mais segurança a esposa e filhos. Bellini e um Almir que se dizia “repleto de remorso” ventilaram na imprensa a possibilidade de um jogo beneficente. Apenas farol.

“Não guardamos ódio dele (do Almir), pelo contrário, imploramos a Deus para que não aconteça o mesmo com ele. Só nos visitou dias após o acidente e depois nunca mais (…) Só pude comprar o terreno em Miguel Pereira, mas o acidente com Almir atrapalhou tudo, pois a casa que tinha sido iniciada está caindo aos pedaços. O dinheiro acabou. Confesso que esperava um pouco mais do futebol”, declarou Hélio.

Mas a surpreendente ajuda chegara afinal. Não partiu do rico e badalado Bellini e muito menos do intempestivo e irascível Almir.

Quarentinha, sim, o maior artilheiro da história do Botafogo, imortalizado pelos seus gols e jamais esquecido graças à preciosa pena do biógrafo Rafael Casé com a brilhante edição do Cesar Oliveira, foi quem financeiramente bancou a obra para que o pobre Hélio concluísse sua casinha em Miguel Pereira. Não houve muita publicidade sobre o fato, mas como me alertou o Casé houve menção do mesmo na biografia que escreveu sobre o Quarentinha. É louvável, acima de tudo, a postura do craque alvinegro. Ídolos do passado como Hélio e Quarentinha eram avessos a arroubos de vaidade. Havia uma preocupação entre pares futebolísticos. Mostrava-se solidariedade, na maioria dos casos, sem interesse ou com viés midiático. Como diz na Bíblia: “Mas, quando tu deres esmola, não saiba a tua mão esquerda o que faz a tua direita”.


Ídolo como Quarentinha, hoje em dia? Infelizmente, sem chance. Craque como ele, então… nem pensar. Resignados, contenhamo-nos com o que aí está. Enquanto isso, mais um gol da Alemanha.

O que nos conforta, contudo, é saber que um dia tivemos um Quarentinha entre nós, sorrindo igualmente a poesia com as quais sutilmente e para dentro nos debulhamos em lágrimas e em… amor.

 O AMOR MAIS QUE PERFEITO

por André Felipe de Lima


Apesar de ídolo do Flamengo, onde construiu uma grande carreira ao longo dos anos de 1940, a Era Maracanã conheceu um Zizinho craque banguense. Ele era o time. Tudo funcionava em função de suas jogadas magistrais, como escreveu o jornalista Armando Nogueira: “Eu lia Zizinho, todo domingo, no Maracanã.”

No dia 23 de julho de 1950, exatamente sete dias após o “maracanazzo” promovido pela seleção do Uruguai, Zizinho enfrentaria pela primeira vez o seu ex-clube. Parecia alheio ao jogo como se na mente ainda lhe povoassem as imagens da festa dos uruguaios, sobretudo de Obdúlio Varela. “Tive vontade de abandonar o futebol depois da Copa do Mundo. Passei quase uma semana sem poder dormir. Quando ia dormindo, tinha um pesadelo. Pensava que o jogo ainda não tinha começado. O Bangu quis me dar 15 dias de folga. Eu disse: ‘Não, não quero folga. Quero jogar. Se eu ficar parado vou enlouquecer, porque não consigo dormir. Preciso jogar pra não ficar maluco”, disse Mestre Ziza ao repórter Geneton Moraes Neto, para o livro “Dossiê 50”, documento imprescindível para a história do futebol.

A peleja entre Bangu e Flamengo fora apitada pelo lendário Mário Vianna. Vitória do rubro-negro (3 a 1). Os gols do Flamengo foram marcados por Aloisio, duas vezes, no primeiro tempo, e Lero, no segundo tempo. Djalma, de pênalti, descontou para o Bangu também na segunda etapa. Zizinho parecia ainda escondido, sem a alma do craque de outrora.
A situação não se repetiria três dias depois, quando os dois times voltaram a se enfrentar em outro jogo amistoso. O Bangu acordara e aplicara 4 a 2 no Flamengo. No apito, novamente Mário Vianna. Zizinho ainda não dera o ar da graça, mas seus companheiros Mirim, Djalma, Ismael e Moacir Bueno marcaram para o Bangu. Do lado do Flamengo, descontaram Arlindo e Gago.

Mas no dia 20 de agosto, o jogo era para valer. Zizinho, enfim, acordara. De súbito, renascera para bola e a bola para ele. Enfim, as pazes. E justamente o clube que o revelou, que o tornou uma das figuras mitológicas da história do futebol mundial, teve o privilégio de presenciar esse renascimento do craque. Mas será que Zizinho perdoaria o Flamengo?

Foi humilhante ver o time da Gávea perder de 6 a 0 para o Bangu. Aquele dia de agosto nunca saiu da memória de Zizinho. Moacir Bueno meteu dois gols, Sula fez de pênalti. 3 a 0 ainda no primeiro tempo. Na arquibancada, uma incrédula torcida do Flamengo. Alberto da Gama Malcher apita o começo do segundo tempo. Zizinho faz o dele. Era o que muitos acreditam ter sido a vingança. Joel, Sula e Simões ainda marcariam mais três. Estava consumada uma revanche que Zizinho nutria pelo seu ex-clube.

Vingava-se duas vezes num mesmo jogo. Talvez no lugar de homens vestidos de vermelho e preto enxergara jogadores de azul celeste… como o da blusa uruguaia. Mas também acreditava que aquela goleada foi a resposta aos cartolas da Gávea, que o venderam ao Bangu sem seu consentimento. “Estava magoado pela forma com que me dispensaram. Cheguei a jogar um campeonato inteiro pelo Flamengo com o tornozelo enfaixado. Eu tirava a bota de esparadrapo, depois das partidas, e meu tornozelo ficava enorme, completamente inchado. Passava a semana inteira sem treinar e no domingo jogava de novo. Até com a perna fraturada cheguei a jogar. Eu me sacrifiquei demais pelo Flamengo. Merecia mais consideração”, declarou Zizinho em depoimento reproduzido por Roberto Sander em seu “Os 10 mais do Flamengo”.

Os cartolas do Flamengo precisavam responder a Zizinho. Não podiam fazê-lo no campo, fizeram-no pelos jornais. Francisco de Abreu, vice-presidente do clube, defendeu o Flamengo em entrevista concedida ao Jornal dos Sports do dia 20 de janeiro de 1950. Alegara que o clube não queria vender Zizinho. É possível que Abreu estivesse blefando para não criar uma crise do clube com a torcida. Não havia outra hipótese.
Não é difícil entender, contudo, os motivos que indignaram Zizinho a ponto de ele guardar a mágoa com o Flamengo até o fim de sua vida.


Os rumores de que o Bangu queria Zizinho circulavam desde o começo do ano de 1950. O patrono do clube de Moça Bonita, Guilherme da Silveira, mais conhecido como Dr. Silveirinha, nunca escondeu o interesse pelo passe do craque. Freqüentador assíduo da tribuna social do Hipódromo da Gávea, Dr. Silveirinha encontrou em uma mesa do bar do Jóquei Clube o presidente do Flamengo, Dario de Melo Pinto. Ali começara a negociação pelo passe de Zizinho. 
Silveirinha ofereceu 400 mil cruzeiros. Melo Pinto disse que não haveria negócio naquelas condições. O clube suburbano subiu a oferta para 500 mil cruzeiros e parte da renda de dois amistosos entre os dois clubes. O presidente do Flamengo ironizou Silveirinha ao afirmar que o Bangu nunca teria dinheiro para contratar um jogador como o Zizinho. Guilherme da Silveira insistiu: “Se o Bangu tiver esse dinheiro, o Zizinho pode jogar no meu time?”.

O valor foi fechado na mesa do bar do Jóquei Clube, por surpreendentes 800 mil cruzeiros, que deveriam ser pagos à vista. O alvirrubro era naquela época um clube rico, o que não impediria o susto geral logo que a negociação fosse revelada à imprensa. Precisavam agora conversar com Zizinho.

Silveirinha, por intermédio do cunhado do craque, convocou Zizinho para uma conversa, como o craque revelou durante entrevista ao programa Bola da Vez, do canal ESPN, que foi ao ar no dia 16 de julho de 2000: “O presidente do Flamengo procurou o Dr. Silveirinha para pedir-lhe que interferisse junto ao pai dele, o Dr. Guilherme da Silveira, que era Ministro da Fazenda, para que a concessão da Loteria Federal, que era do Peixoto de Castro, também fosse para ele, Dario. E o Silveirinha disse: ‘Bem, Dario… eu faço isso, mas quero um favor seu também’. Dario respondeu: ‘Pois não, pede’. Veio o Dr. Silverinha e disse: ‘Só quero um jogador seu’. Dario disse: ‘Escolhe’. Silveirinha logo falou: ‘Só quero o Zizinho.’”

O assunto, mesmo após 50 anos, ainda desconcertava Zizinho. Isso ficou evidente durante a entrevista. Não eram lembranças saudáveis: a transferência traumática para o Bangu e, dias depois, a perda da Copa. A postura do Dr. Silveirinha intimidou Dario de Melo Pinto, que teria respondido ao cartola do Bangu que não poderia “dar” o Zizinho, mas que colocaria “um preço lá embaixo” para facilitar o negócio. Segundo Zizinho, o dirigente rubro-negro temia severas represálias dos outros cartolas da Gávea caso negociasse o passe do principal jogador do clube e ídolo máximo da torcida. “Um dia o Dr. Silverinha mandou me chamar lá na minha casa pra eu ir ao escritório dele. Ele me disse assim: ‘Mandei chamar o sr. aqui para saber se o sr. quer jogar no Bangu.’ Fiquei olhando para a cara dele. Fiquei espantado. Eu não sabia… aí ele disse: ‘O sr. está duvidando da minha palavra?’. Respondi: ‘Eu não tenho razão para duvidar ou não da sua palavra. Estou (sic) lhe conhecendo hoje’.

Para convencer o incrédulo Zizinho, Silveirinha foi sagaz. “Ele disse pra mim: ‘Então pega na extensão do telefone.’ Aí ele ligou para o Dario de Melo Pinto: ‘Como é Dario, o negócio do Zizinho está fechado?’. O presidente do Flamengo respondeu: ‘Claro que está! Fala com ele.’ Aí Silverinha disse: ‘E agora?!”. Respondi: ‘Bota o contrato aí, que assino agora. No Flamengo não jogo mais.’”

Zizinho sentiu-se desprezado. Com toda a razão. Dissera sempre aos cartolas da Gávea que não pretendia deixar o Flamengo. Aí, a grande decepção do craque.

A imprensa especulava de forma debochada a negociação entre os dois clubes. Publicou-se que Zizinho escrevera uma carta à diretoria do Flamengo, e que esta lhe ofereceu um emprego de zelador num edifício em Niterói, cidade onde morava Zizinho.
No páreo pelo futebol do craque, corria por fora o colombiano Mário Abello, disposto a levar Zizinho para a milionária liga pirata colombiana. Mas se a negociação se concretizasse, Ziza não jogaria a o Copa de 50 pelo Brasil. A Fifa não reconhecia o campeonato colombiano para o qual rumaram os principais nomes do futebol argentino, como Di Stéfano, Pedernera e Boyé, além de craques brasileiros, como um veterano Tim e um já débil Heleno de Freitas.

Indignado com o Flamengo, Zizinho pediu aos cartolas facilitassem a venda ao Bangu. E assim foi feito. O craque receberia luvas de 200 mil cruzeiros, um salário mensal de 7 mil cruzeiros e uma casa de retalhos em Niterói para a venda de tecidos da fábrica de Bangu. Zizinho tornara-se o jogador mais caro da América do Sul.

O jornalista Mario Filho defendia a tese de que Zizinho ficara mordido não pela venda em si, mas sim pelo valor que Dario Melo Pinto estipulara. Nunca lhe passara pela cabeça que o Flamengo fosse capaz de vendê-lo. “Um dos orgulhos dele era o resposta de Hilton Santos ao Corinthians: — Zizinho? Só com trinta milhões, para início de conversa”, escrevera Mario Filho, em “O negro no futebol brasileiro”.

Reportagem do Jornal dos Sports do dia 4 de março de 1950 antecipava o desapontamento de Zizinho com o Flamengo. O craque declarou estar definitivamente interessado em migrar para o Bangu. Na edição do dia 15, a primeira página estampa uma foto de Zizinho retirando a camisa do Bangu. Na manchete, o fim da novela: “Zizinho, afinal é do Bangu!”

Quem mais foi castigada com ida de Zizinho para o Bangu foi a enorme torcida do Flamengo, que não poderá lotar o Maracanã para deslumbra-se com seu grande ídolo. Felizes os banguenses e os torcedores dos outros times, como o botafoguense Armando Nogueira, que assim escrevera em crônica publicada no livro “Na grande área”: “Sempre imaginei Zizinho jogando futebol de sapato preto, traje rigo, tal a leveza se sua passada com a bola e sem a bola. Pois um dia Mestre Ziza mandou que o sapateiro Aristides, do Bangu, arrancasse todas as travas de suas chuteiras.”

O tricolor Nelson Rodrigues, dizem, comentava que quando Zizinho passava, uma bola dizia à outra: “Lá vai Ziza…”. 
De 1950 a 57, Zizinho defendeu — e com imenso prazer — o Bangu. Se não conquistou grandes títulos, inspirou Ataulfo Alves para compo o “Samba de Bangu”, cuja letra diz: “No velho esporte/ tua fama não desliza/ teve Domingos da Guia/ sem falar do Mestre Ziza”.

Nos tempos de Flamengo, de embates no campo da Gávea, nas Laranjeiras, em São Januário, ou em General Severiano e na rua Figueira de Melo, Zizinho construiu o melhor momento de sua extraordinária carreira nos gramados. “Era cérebro e pulmão de qualquer time”, reverencia Domingos da Guia, seu companheiro de time nos fim dos anos de 1930.


Um dos principais nomes da crônica esportiva daquela época, Geraldo Romualdo da Silva, retratava Zizinho de forma mais didática, objetiva, como convém ao olhar referencial comum ao jornalismo. “Quando os outros sucumbiam diante dos fortes e violentos beques, Zizinho ia mais à frente e, com fibra e coração, abria espaço, marcava os gols.”

Faltou a Zizinho um caneco mundial. Poderia ter uma segunda chance na Copa de 1954, na Suíça, mas o técnico Zezé Moreira seqüestrou-lhe esse direito. Aquele mundial seria um bálsamo para que Ziza esquecesse a tragédia de 50. “A gente não sabia nem o que era uma Copa do Mundo. A última tinha sido disputada em 1938, antes da guerra. Ouviu-se pelo rádio. Não tínhamos contato com países estrangeiros. Eu, por exemplo, nunca tinha visto a Iugoslávia ou a Suíça jogarem — dois dos nossos adversários em 50. De vez em quando víamos os ‘reis do futebol’, como os ingleses eram chamados, em filmes exibidos no Cineac. A gente ficava se perguntando: ‘Como é que eles conseguem jogar num campo cheio de lama? Aqueles campos pesado era de neve…”. Esse depoimento concedido ao jornalista Geneton Moares Neto mostra com exatidão que muito mais que futebol, precisava-se de maturidade para a seleção encampar (e conquistar!) um torneio que já não era disputado há mais de 10 anos. Faltou aos jogadores brasileiros desvencilharem-se de uma visão ainda provinciana sobre o futebol. Uma tese a ser debatida sobre as palavras ditas por Zizinho.

Decerto a Copa do Mundo de 50 representa uma espécie de “corte epistemológico” na história do futebol brasileiro. Zizinho é a prova mais cabal, mais contundente de que após o apito final daquele fatídico jogo contra os uruguaios, no dia 16 de julho, o futebol brasileiro seria reinventado. Que naquele momento, a reflexão sobre o tal complexo de vira latas mencionado por Nelson Rodrigues aconteceria bem antes de 1958, na Suécia. 
Deveriam lembrar de Zizinho para este debate. Do Zizinho que encantou o jornalista inglês Willy Meisl ao vê-lo em campo na Copa de 50 contra na vitória de 2 a 0 sobre o bom escrete iugoslavo: “Não se trata apenas de um craque, dos muitos que andam espalhados pelo mundo. Este é um gênio, um homem que possui todas as qualidades que podem ser idealizadas para um profissional chegar mais próximo da perfeição”.

Vencer a Iugoslávia era fundamental para o Brasil decidir a Copa. Zizinho era o missionário para missão tão eloqüente. Era o gênio do dejà vu futebolístico, como narra Eduardo Galeano para quem Zizinho inventou o gol “bis”: “Este senhor da graça do futebol tinha feito um gol legítimo, que o juiz anulou injustamente. Então, ele repetiu igualzinho, passo a passo. Zizinho entrou na área pelo mesmo lugar, esquivou-se do mesmo beque iugoslavo com a mesma delicadeza, escapando pela esquerda como tinha feito antes, e cravou a bola exatamente no mesmo ângulo. Depois chutou-a com fúria, várias vezes, contra a rede. O árbitro compreendeu que Zizinho era capaz de repetir aquele gol dez vezes mais, e não teve outro remédio senão aceitá-lo.”

O que talvez Meisl e Galeano não sabiam é que Zizinho jogara contra a Iugoslávia contundido e por pouco não entrara em campo: “Fui dormir quase de manhã. Não consegui dormir porque os massagistas não deixaram. Deram-me um remédio que, segundo Augusto, era de cavalo, um troço que botavam nos animais do jóquei. Não sei como os animais agüentavam. Queimava que não era brincadeira a pomada”, disse Zizinho à Geneton Moares Neto.

Dias depois do embate contra os iugoslavos, a confirmação da divindade “Zizinho”, após o massacre contra a Espanha, a “fúria”. 6 a 1 foi pouco. “O maestro da esquadra maravilhosa. O futebol de Zizinho me faz recordar Da Vinci pintando alguma coisa rara”, louvou Giordano Fattori, correspondente da Gazetta dello Sport, após assistir ao gênio Zizinho contra os espanhóis. O craque se auto-definia um “guerreiro da bola” que jamais a arranhou. “Ela era o amor da minha vida.”

Mas veio o dia 16 de julho. Já havíamos conquistado a Europa, mas faltava recuperarmos a província Cispaltina. Zizinho era o general da tropa. Mas falhamos. A única explicação para aquela derrota Zizinho encontrou-a no sobrenatural. Ao Geneton, ele confessou: “Pode ter acontecido uma onda negativa naquele dia no Maracanã. Numa partida de futebol, existe uma força maior que a gente não compreende, mas que existe, existe. Não sei como é, mas existe uma força maior que dirige a partida. Não sei de onde vem. Talvez venha da multidão que forma pensamentos positivos ou negativos. É uma força.”

Não havia “grito” de Obdúlio Varela que intimidasse a seleção brasileira. “Não havia menino ali”, dissera Zizinho. Obdúlio, que era amigo de Zizinho, confessou ao craque brasileiro que esperava o pior diante do Brasil naquele dia 16 de julho de 1950. “Não sei o que vocês pensavam, mas nosso receio era tomar uma goleada, como a Suécia e Espanha tinham levado.”
Geneton Moraes Neto extraiu um depoimento sensacional de Zizinho sobre a extensão metafísica que o craque mantinha com Obdúlio: “Ademir esteve uma vez na casa de Obdúlio Varela. A mulher de Obdúlio é que disse: ‘Há um jogador no Brasil em que Obdúlio pensa todo dia: Zizinho.’”

Zizinho dissera promover um suposto contato telepático com Obdúlio anos depois da Copa de 50. Uma surpreendente herança da tragédia de 1950: “Eu sei sempre como é que vai Obdúlio. E ele sabe sempre como é que estou”, garantia Zizinho. O episódio foi contado pelo próprio ídolo uruguaio à Ademir de Menezes e a Barbosa, que foram visitá-lo em Montevidéu muitos anos após a final da Copa de 50. Zizinho tem a resposta para o fenômeno. “Eu sou espírita. E ele também é”, disse Zizinho, que disse a Geneton nunca ter ido a uma missa a não ser quando um “amigo morre”.

Durante a comovente entrevista ao repórter Mauro Tagliaferri, para o Esporte Espetacular, da TV Globo, em 1999, quase 50 anos após a Copa, mostrou um Zizinho ainda emotivo diante de um passado que sempre insistiu-se presente. Tagliaferri pergunta o que significava a Copa de 50 para a vida dele. Zizinho coça o queixo, desvia o olhar e responde: “Perdi a Copa do Mundo, vim para casa e não conseguia dormir. Eu tinha pesadelos…” Naquele momento da entrevista, Zizinho balança os ombros, olha para o chão e começa a chorar. Volta-se para o Tagliaferri e faz, com as mãos, o tradicional sinal de pedido de tempo. Sorri, simpático, mas imerso em lágrimas, diz: “Tempo…” abaixa a cabeça novamente e permanece chorando até que, com as duas mãos novamente, enxuga as lágrimas e pergunta para o repórter: “Pode continuar?”. O repórter insiste: “Podemos mesmo continuar?”. Zizinho meneou a cabeça positivamente e respondeu: “Pedi ao seu Carlos Nascimento que não podia mais ficar em casa. Não dá. Assim eu vou ficar maluco. Foi tortura mesmo. As pessoas ainda brincam com isso até hoje (…) fora do Brasil não teríamos perdido esse campeonato.”
Depois da Copa, Zizinho, que nasceu em São Gonçalo, no dia 14 de setembro de 1921, teve poucas chances na seleção. Como já dissemos, Zezé Moreira vetou-o para a Copa de 1954. Zizinho, sempre conformado, foi batendo sua bola no Bangu. Ele era o time do Bangu, que apesar de sempre atrapalhar os grandes do Rio sequer conquistou um campeonato estadual no período em que contou com Zizinho no time.


De Moça Bonita, seguiu para o Morumbi, a contragosto da esposa e de suas filhas ainda pequenas. Uma delas, sabe-se lá o porquê, sugeriu ao pai que se continuasse a jogar, que fosse no futebol francês. O certo é que entre Bangu e São Paulo, Zizinho tinha dúvidas se continuaria ou não a jogar futebol. A possibilidade de jogar na França realmente aconteceu. 
Como confirmou o cronista paulista Adriano De Vaney, Ieso Amalfi, outrora ídolo do Boca Juniors e que fora do próprio São Paulo, propôs a Zizinho uma temporada em Paris. Mas a proposta da diretoria do São Paulo convenceu-o e o craque permaneceu no futebol brasileiro. E com o Tricolor do Morumbi conquistou o último título de sua carreira: o Campeonato Paulista de 1957.

Seja na seleção, no Flamengo ou no Bangu, isso pouco importa quando temos Zizinho, que nos deixou no dia 8 de fevereiro de 2002, como um marco do futebol mundial. Ele, nenhum outro, representa o começo da Era Maracanã.


Seu nome nunca será esquecido. Tampouco por Pelé, que fez do Mestre Ziza seu espelho. “Quando eu era garoto, procurava imitar dois jogadores: o Dondinho, meu pai, e o Zizinho. Quando comecei a minha carreira no Santos, o Zizinho estava encerrando a dele no São Paulo. E encerrando em grande estilo. Ele foi campeão e considerado o melhor jogador do Campeonato Paulista de 1957. Zizinho era um jogador completo. Atuava na meia, no ataque, marcava bem, era um ótimo cabeceador, driblava como poucos, sabia armar. Além de tudo, não tinha medo de cara feia. Jogava duro quando preciso.”

A ginga, os dribles, os passes milimetricamente perfeitos e os gols geniais de Zizinho foram o ditame para Pelé, que herdou de Zizinho a coroa de “Rei” do futebol.

***

 

JOGO MEMORÁVEL

Jogo válido pelo campeonato estadual de 1950, dia 20 de agosto de 1950, Bangu 6×0 Flamengo.
Foi o terceiro jogo de Zizinho contra o seu ex-clube. Perdera o primeiro e ganhara o segundo, mas sem exibição de gala. Na terceira chance, já recuperado da perda da Copa de 50, impôs uma das mais vergonhosas derrotas da vida do Clube de Regatas do Flamengo, que aconteceu no Campeonato Carioca de 1950. Relatava a crônica da época: “Apresentando em campo um time verdadeiramente desconexo, incorrendo ainda no erro de uma aventura que foi o lançamento precipitado de Hermes, o Flamengo emudeceu os olhos de sua torcida, caindo por uma contagem que atinge tremendamente o prestígio do clube da Gávea. Está de parabéns o Bangu pela sua estupenda vitória. Vitória que veio como efeito natural do amplo domínio exercido pelo seu conjunto, cujas manobras táticas foram perfeitas e cujo padrão de jogo é o que se pode exigir de um grande esquadrão.” Zizinho deixou o dele, Moacir Bueno fez dois e Joel, Simões e Sula completaram o marcador.

ABEL, UM ZAGUEIRO MITOLÓGICO

por André Felipe de Lima


Para os gregos da Antiguidade, desenhava-se o herói com ideais altruístas, moldados por ética, sacrifício, fraternidade, justiça, coragem, paz e moral. Superar desafios épicos. Eis a missão dos bravos. No futebol brasileiro, muitos chegaram a este patamar definido lá longe, na Antiga Grécia. Poucos foram, contudo, unanimemente observados sob esse arquétipo.

Superação. Essa é a palavra ideal para resumir a trajetória do herói. Ele chora, pode até vacilar defronte a desafios, mas seu ímpeto é sua alma e sua alma é sua glória. Poderia direcionar este perfil para alguns gênios da bola, como Garrincha, Pelé, Didi, Tostão…, mas o ex-zagueiro Abel merece ser proclamado herói dos gramados tanto quanto estes gênios pela superação que moldou sua trajetória, transformando-o em um ídolo do futebol no final dos anos de 1970.

Abel começou a carreira no Fluminense, em 1968, onde permaneceu até 1975, transferindo-se para o Vasco no ano seguinte. Nos dois clubes, transitou entre o céu e o inferno, apesar de sempre reverenciado por treinadores e cartolas, que reconheciam sua bravura em campo, mas não lhe davam a chance da regularidade nos times titulares. Aos poucos, desanimou-se com a reserva e chegou a pensar em abandonar os gramados. Para o bem do futebol, isso não aconteceu. Abel se consagraria como um dos melhores zagueiros de sua época e, tempos depois, um dos melhores treinadores de sua geração.


Conquistou glórias nas Laranjeiras, mas foi com o Vasco que houve maior identificação.
O começo em São Januário não foi fácil porque o preferido do técnico Orlando Fantoni era o zagueiro Renê. Mas em quatro meses, com Renê indo para o Botafogo, Abel assumiu a vaga de titular na zaga do Vasco. Esmerava-se, correndo nos dias de folga nas Paineiras “até cansar”, como o próprio contou ao jornalista Maurício Azêdo. Acabado o treino, Abel, com a ajuda de Roberto Pinto, então auxiliar de Fantoni, e dos preparadores físicos Antônio Lopes e Djalma Cavalcanti, permanecia cerca de uma hora no campo exercitando os fundamentos que fizeram dele um dos principais zagueiros de sua época. Chegou a usar um colete de chumbo nos treinos. Saltava incansavelmente. Tudo para melhorar a impulsão. Fantoni ficou maravilhado com ele, afinal foi o treinador quem lhe dera uma “carinhosa” dura para que corrigisse seus defeitos Dali em diante, Abel — sempre muito grato a Fantoni — passara a ser sempre cogitado para a seleção brasileira.

E pensar que aquele rapaz parrudo começara no Fluminense como ponta-de-lança, mesma posição em que atuava nas peladas de rua, no bairro da Penha, zona norte do Rio. Treinava descompromissadamente na Portuguesa, da Ilha do Governador, quando um amigo da família o levou para um teste nas Laranjeiras. Pinheiro, que fora um dos melhores zagueiros da história do Fluminense, gostou de Abel e pediu a ele que regressasse ao clube. Na semana seguinte, já estava escalado na lateral-direita durante um amistoso em Volta Redonda.


E o jovem Abel foi conquistando tudo com o Fluminense e a seleção brasileira de novos até, em 1972, o Fluminense emprestá-lo ao Figueirense, que utilizou-o no campeonato brasileiro. Estava à vontade em Florianópolis. Primeiro porque o treinador era Antoninho [ex-ídolo do Santos], com quem Abel trabalhara na seleção de novos, segundo o contrato era excepcional. Ganhava cinco mil cruzeiros mensais — três a mais que o salário que recebia no Tricolor —, luvas de 20 mil, casa e comida de graça e uma popularidade incomum que surpreendeu o técnico Duque, que treinava o Fluminense quando o time carioca visitava Florianópolis.

Duque sabia das coisas e repatriou Abel nas Laranjeiras. Ora no lugar de Assis, ora no de Silveira, Abel foi, aos poucos retomando a vaga na zaga tricolor. Com a chegada de Carlos Alberto Parreira, foi sacado do time no dia da final do campeonato carioca de 1975. Didi assumiu o time e prometeu-lhe dez jogos seguidos como titular, mas logo após o papo entre Abel e o novo treinador, o Fluminense contratou Carlos Alberto Torres e, vindo da Portuguesa da Ilha do Governador, o zagueiro Fernando. Didi não cumpriu a promessa e frustração de Abel transformou-se em depressão. Pensara até em deixar o futebol, pois estava prestes a concluir o curso de Administração, na Universidade Gama Filho. “Todo mundo me dava força, me apontava como exemplo de atleta dedicado ao clube. O próprio presidente Horta [Francisco Horta] fazia questão de me citar como modelo; chegava a dizer que eu era um símbolo do Fluminense. ‘Diante de Abel ninguém cospe na camisa do Fluminense’ — ele repetia com freqüência. Eu acreditava nisso, tinha o Fluminense como a minha casa. Achava bacana aquela história de ser confundido com o clube. De que adiantou isso?”


Realmente Abel não teria espaço nas Laranjeiras. Sobrava zagueiro [alguns bons, outros nem tanto] para o time. Além de Torres e Fernando, havia Buñuel, Assis, Silveira e o jovem e brioso Edinho. Fosse pouca a leva, Horta, trouxa Pescuma, que fora ídolo no Coritiba e estava no Corinthians. Segundo Azêdo, o cartola tricolor teria ficado encantado com Pescuma por este ter lhe mostrado o caminhos das pedras para eu o Fluminense convencesse o velho Nicola, pai de Rivelino, a deixar o filho trocar o Corinthians pelo Fluminense. E Abel, como ficou nisso tudo? O Flamengo bem que tentou levá-lo, mas Horta não o liberava. O América ofereceu uma troca por Alex, ídolo Alvirrubro. Abel iria para Campos Sales junto com Herivelto, mas Horta bateu o pé e dizia que nunca venderia seu craque. Mas o rapaz amargava o banco de reservas. Chateava-o muito a situação. Uma ex-namorada, Roberto Mauro, Rivero e Arlindo, amigos da faculdade, confortavam-no.

Seguia triste, acabrunhado, porém não imaginara a peça que lhe reservara o destino.
Abel, como narrou Azêdo, seguia de carro para a Universidade Gama Filho quando, aproveitando-se do sinal fechado, decidiu espiar rapidamente o jornal. Veio o susto: dizia a notícia que ele, Marco Antônio e Zé Mário foram cedidos ao Vasco. Ficara feliz. Era o queria, naquele momento: trocar de ares. O Fluminense avaliou para abaixo o valor do passe de Abel. Mas nem isso o incomodou. Queria mesmo é jogar bola, mas como titular… e No Vasco, para realizar o sonho de seu velho pai, um vascaíno “doente”.

Após os conselhos de “Titio” Fantoni, Abel acertou o prumo. Estava jogando uma barbaridade na zaga. Àquela altura já era ídolo da torcida. Foi o jogador vascaíno que mais vezes entrou em campo em 1976. Foram 90 partidas. Em abril, o Vitória o queria em Salvador. O Vasco disse não. Como vender o passe de um jogador que chora pelo clube, nas derrotas ou nas vitórias? “Ele é alma do time”, destacava Fantoni. “Ele é a garra que sempre caracterizou o Vasco”, reconhecia Dulce Rosalina, torcedora símbolo do Vasco nos anos de 1970 e 80.


Com Abel comandando a nau vascaína, o time conquistou o tão almejado título estadual de 1977. Fantoni estava certo: “Esse rapaz fez um progresso maravilhoso”
Abel não fugia da luta. Ocultava dores homéricas para estar em campo. Em outubro de 1978, o Vasco vivia um momento de transição. Chegara Leão, mas perdera Dirceu e Marco Antônio. Zé Mário e Geraldo estavam há meses no estaleiro. Abel, Orlando, Guina, Wilsinho e Roberto Dinamite tentavam manter o mesmo ímpeto do time de 77.
Em campo, o Vasco, que fazia uma campanha sofrível no campeonato estadual, deparou-se com um Flamengo embrionário do timaço que conquistaria tudo nos anos seguintes. Abel entrara em campo sentindo muitas dores no joelho. Escondera dos médicos, contudo, a enfermidade. O médico do Vasco, Otávio Martins, perguntara insistentemente se sentia algo. Abel negara sempre. No campo, o Flamengo estava sempre impetuoso no ataque, mas Abel parou Zico, Claudio Adão e Adílio… até não agüentar mais e desabar, heróico, no gramado.

Justificava a bravura com a mesma emoção com que chorava ao ver uma faixa de carinho da torcida em reverência ao ídolo. Aquele empate reanimou o Vasco, reanimou Abel. “Sei que entrar num jogo como esse, todo machucado, pode ser um desastre. Aí, me lembrei: há dois anos, o Fla não ganha nem marca gol no Vasco. Ainda: desde que fui para a Seleção, em fevereiro, o Vasco não perde quando jogo. Resolvi entrar.”

Até novembro daquele ano de 1978, com Abel em campo o Vasco não sabia o que era derrota. No mesmo ano, Abel esteve com a seleção brasileira, na Argentina, para a Copa do Mundo, mas não entrou em campo. O treinador Claudio Coutinho [também do Flamengo] preferia o miolo de zaga com Oscar e Amaral. No ano seguinte, Abel seguiu para o futebol francês. De lá, mantinha a esperança de nova oportunidade, na Copa de 1982. O treinador Telê Santana preparava o time que encantaria o mundo e Abel, em 1980, mandava recados que acabaram proféticos: “Os nossos inimigos em 82, queiram ou não, serão os times europeus. Lá, a dinâmica é outra, o jogo não pára, não fica truncado, o tempo passa rápido”. Exatamente como a Itália derrotaria o Brasil, no estádio de Sarriá, na Espanha.

Abel Carlos da Silva Braga, como consta em sua certidão, nasceu no Rio de Janeiro no dia 1º de setembro de 1952. Fluminense e Vasco não foram suas únicas casas. Também foi do Paris Saint-Germain, da França [de 1979 a 1981], onde chegou a jogar de líbero e até de centroavante e ganhava cerca de 500 mil cruzeiros mensais.
Em 1981, Abel retornou ao Brasil, para defender o Cruzeiro. A chegada não foi amena. Uma cirurgia no joelho o afastou dos gramados em pelo menos dois meses, recuperou-se e deu nova cara à zaga, com reflexos em todo o time, a ponto de o lateral-direito Nelinho, seu ex-parceiro nas peladas nas ruas de Olaria, defini-lo como “doping” da equipe, que não vinha bem e sofria com o poderio do Atlético, de Reinaldo, Cerezo e Lusinho. “E o que esse cara grita e xinga em campo não é normal, xará”. Abel tornara-se o homem de confiança de [quem diria…] Didi, o mesmo técnico dos tempos de Laranjeiras. “Quando penso em dar uma orientação a um garoto, o Abel já foi e conversou com ele”. Na Toca da Raposa, Abel era a voz dos companheiros. Reivindicava aumento para jovens talentos e discutia com cartolas e comissão técnica um regime mais justo nas concentrações. Desabrochava o futuro treinador de sucesso.
Do Cruzeiro, Abel teria de voltar ao Paris Saint-Germain, mas acabou transferindo-se para o Botafogo, em 1982, numa transação confusa porque o clube carioca ficou devendo 40 mil dólares ao clube francês.

Entende-se o pouco esforço do Paris Saint-Germain para não querê-lo de volta. Em 1988, ou seja, quatro ano após Abel ter encerrado a carreira de jogador, o jornal L’Equipe publicou um levantamento sobre 23 estrangeiros que atuaram no Paris e no Matra Racing ao longo da história dos dois clubes parisienses. Abel não ficou bem na fita. O jornal o colocou na lista dos onze piores. “Falência total de um zagueiro-central, que treinou apenas uma temporada no Parc des Princes”, escreveu o diário. No período em que lá jogou vestiu a camisa do Paris Saint-Germain 45 vezes.

Em 1984, Abel trocou o Botafogo pelo Goytacaz, de Campos, no interior do estado do Rio de Janeiro, clube com o qual encerraria a carreira, conforme dados da Confederação Brasileira de Futebol [CBF].

Pela seleção brasileira, esteve na Copa de 78, como reserva do zagueiro Oscar [da Ponte-Preta]. Vestiu a camisa canarinho em 15 ocasiões [10 delas com a seleção olímpica]. Também participou, em 1971, da seleção pré-olímpica. Além do eloqüente título de 1977, com o Vasco, Abel foi campeão carioca em 71 e 73 e bi-campeão, em 75 e 76, todos com o Fluminense.

A fama de mau, garantia ele, sempre fora injusta. “Olha, só machuquei um cara por querer. Foi um tal de Lula, do Vila Nova de Goiás, quando eu jogava no Vasco. Ele me deu duas entradas na barriga. Na seguinte, acertei o seu joelho.”
Após deixar os gramados, transformou-se em um bem sucedido técnico. O começo foi no Botafogo, em 1985.


O saudoso jornalista Sandro Moreira recorda uma deliciosa história dos primeiros momentos de Abelão, como gostavam de chamá-lo na imprensa ou na arquibancada, como técnico do Alvinegro carioca, que acabara de ganhar os dois primeiros jogos sob a batuta do ex-zagueiro.

Entusiasmado com a boa estréia de Abel como treinador, o repórter de uma rádio telefonou para a casa do ex-craque, tentando entrevistá-lo. Do outro lado da linha atende uma mulher, que pergunta ao trepidante com qual dos dois ele queria conversar, se com o “Abelão” ou com o “Abelinho”. Seguro de si e sem pestanejar, o repórter emendou: “Com Abelão, naturalmente”. Abelão vai ao telefone e trava-se o nosense diálogo:

— Alô, quem quer falar comigo?”

— É o Gomes, da rádio. Explica para os ouvintes como você viu a vitória de hoje do Botafogo?

— Não vi.

— Como não viu? Está me gozando?

— Não. Eu sou o Abelão, o pai. Você deve estar querendo falar com Abelinho, meu filho.

Amante da boa música. Abel [ou Abelinho”, para o velho pai] arrisca-se no piano desde os 12 anos de idade. Quando treinava o Vitória, em Salvador, em 1986, decidiu intensificar os estudos musicais.


Abel comandou, entre outros clubes, o próprio Vasco, Internacional de Porto Alegre, Sport Recife, os Atléticos mineiro e paranaense, Coritiba, Flamengo, Ponte Preta e o francês Olympique de Marselha. Em 2004 e 2005, teve grandes passagens por Flamengo e Fluminense, com os quais, respectivamente conquistou o campeonato carioca nos dois anos. Mas foi no Internacional a consagração: campeão da Copa Libertadores e do Mundial Interclubes em 2006. E, no Inter, seu filho Fábio ingressaria no futebol. A relação com o Colorado é, inegavelmente, singular. Em 2011, com a inquestionável bagagem de sucesso, o Fluminense recebeu-o novamente como técnico. Voltaria, porém, ao Inter em 2014. O Rio o acolheria novamente. E mais uma vez as Laranjeiras, onde está até hoje.

Foi, porém, nos gramados que Abelão encantou as torcidas, especialmente a tricolor e a vascaína. Como zagueiro, era conhecido mais pela força do que pela técnica, mas o resultado dessa inversão não é queixa para ninguém, sobretudo para os vascaínos, que no campeonato carioca de 1977 viram o time sofrer apenas quatro gols. Todos apenas no primeiro turno. Dá para imaginar de quem é a pecha de herói?

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O texto acima integra a “Letra A” (primeiro volume) da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos Craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, cujo lançamento será ainda neste semestre pela Livros de Futebol.com, do bravo editor Cesar Oliveira, autor do imperdível “João Saldanha, cem anos sem medo” (https://www.facebook.com/joaosaldanha100/), com Alexandre Mesquita e Marcelo Guimarães.