Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Dicionário dos Craques

O PAI QUERIA VAVÁ MANCHETE. CONSEGUIU MAIS QUE ISSO

por André Felipe de Lima


“Desde garotinho fui levado a gostar do Vasco da Gama. Lá em Recife, onde nasci e me iniciei no futebol, cresci com o grêmio da cruz de malta em sonhos, pois, através do rádio e dos jornais acompanhava com o maior interesse as atividades dos vascaínos. Depois de me tornar profissional, tive o grande prazer de vestir a camisa cruz-maltina e ajudar o clube do meu coração a conquistar alguns campeonatos. Indo para a Espanha, coloquei o Vasco da Gama como meu segundo clube, pelo qual continuo torcendo como nos tempos de garoto”. A declaração apaixonada é de um torcedor ilustre, que neste dia 12 de novembro faria anos. Falamos do Vavá, o centroavante rompedor, endemoniado, que paralisou goleiros russo, francês e sueco na Copa de 58 e repetiu a dose na Copa seguinte, em 62, contra o arqueiro tcheco.

Contava pouco menos de 18 anos quando trocou o time juvenil do Sport pelos aspirantes do Vasco. Vavá era impressionante. Jamais um atacante habilidoso — embora alguns “das antigas” afirmem o contrário —, mas extremamente competente para fazer gols. O que, inegavelmente, demonstrara desde o começo em Recife. Seus primeiros momentos defendendo a seleção brasileira foi durante a Olimpíada de Helsinque, em 1952. Não conquistou medalha por lá. Mas o que o destino reservava para ele era simplesmente muito maior. Vavá brilharia antes no Vasco, conquistando o coração da torcida nos títulos de campeão carioca de 1952, de 1956 e de 1958, ano em que o mundo conhecera o “Leão da Copa”. Da Copa da Suécia. Da Copa do Mundo. Com os cruzamentos certeiros de Garrincha, Vavá balançou a rede de montão na Copa de 58. O mítico goleiro russo Yashin que o diga. Levou dois dele. Nosso Vavá foi fundamental para que conquistássemos pela primeira vez o “caneco”. Com ele em campo, repetimos a dose em 62, no Chile. “A verdade é que eu não era um trombador. Comecei jogando como meia-armador; depois como centroavante, tentei imitar o Ademir, mas logo voltei às minhas características. Eu era mais habilidoso que os centroavantes da minha época”, dizia Vavá. Quem discordaria dele?


Certa vez, Vavá tomou uma bronca do técnico Flávio Costa por ter se deixado fotografar sem dentes para a capa da revista Manchete Esportiva, em 1956. “Palhaço. Então você não se respeita?!”, esbravejara o treinador, como recordara o próprio Vavá. No começo, o craque, que não era desleixado, ficou meio injuriado com a bronca, mas entendeu o recado e passou a andar alinhado. Era obediente e zeloso dentro e fora dos campos. Aprendera ser assim desde pequeno graças à criação dos pais Ana e Odilon. Foi, aliás, o velho investigador de polícia Odilon o grande incentivador do menino Edwaldo Izidio Neto na prática do futebol.
Odilon gostava tanto de uma pelada que fundou o “Leão do Norte” só para ver o menino Vavá bater uma bolinha. Com 11 anos, o garoto mostrara a que veio. Na várzea, todos conheciam o prodigioso filho do Odilon, um pai saudavelmente ambicioso que mantinha uma obstinação: fazer o filho virar manchete de jornal ou revista.

A fama de Vavá chegou a um olheiro do Sport, que o convidou para um teste. O jovem foi mal, mas o treinador do time principal, o ex-goleiro do Fluminense Capuano, gostou do rapaz. Virou-se pro Vavá e falou: “Volte aqui de novo para um novo teste”. Vavá retornou, jogou pra burro e permaneceu no Sport. Com apenas 13 anos, era titular absoluto do time juvenil.

Pintara pelas bandas de Recife o olheiro vascaíno Ciel Barbosa. Tinha em mente levar Vavá para o Rio de Janeiro. Odilon ficou ressabiado. Afinal, Vavá trabalhava para ajudar aos pais nas contas da casa. O papo com velho não foi fácil. Mas Odilon concluiu que o Vasco era a materialização do antigo sonho de ver o filho nas manchetes dos jornais.

No dia 25 de fevereiro de 1951, Vavá e o pai desembarcaram no Galeão. Começara ali a grande epopeia de Vavá no futebol. Odilon permaneceu com o filho dois dias na hospedagem de São Januário. Precisava retornar ao Recife. Emocionado, abraçou Vavá e disse ao então presidente vascaíno Eurico Lisboa: “Meu filho está num grande clube, peço-lhe que o obrigue a estudar”.

Estudar, propriamente, Vavá não estudou, mas o que jogou de bola no juvenil do Vasco não estava no gibi. Sua predileção era espiar o time principal, o “Expresso da vitória”, com Ademir de Menezes, Danilo, Ely, Ipojucan, Maneca, Barbosa, Augusto… o rapaz estava fascinado.


A grande emoção foi o dia em que entrou em campo no Maracanã contra o Bangu, no dia 18 de janeiro de 1953, em jogo válido pela penúltima rodada do Campeonato Carioca do ano anterior. Ao Vasco, que estava desfalcado, caberia o empate para conquistar o título caso o Fla-Flu do dia seguinte também terminasse empatado. Aos fatos, portanto: Vavá, que jogara no lugar de Maneca, olhava para um lado, via Ademir; para outro, via Danilo. Não acreditava que estava lado a lado com os ídolos que tanto admirava. Um sonho para o jovem Vavá. Um sonho real que acontecia ali, diante dele, logo após marcar o gol da vitória contra o poderoso time do Bangu, que contava com Zizinho, Décio Esteves e Nívio.

Dali em diante, Vavá não parou mais de fazer gols no Vasco, depois no Atlético de Madrid, no Palmeiras, no futebol mexicano e, claro, na seleção brasileira.

Nesta segunda-feira, 12, é o dia do nosso Vavá, o que se tornou mais que uma simples manchete, como desejava o pai. O nosso Vavá tornou-se ídolo, um dos maiores da história dos clubes que defendeu e do escrete canarinho.

A PELADA ORIGINAL

por André Felipe de Lima


O jornalista Paulo Varzea — antes mesmo de Tomás Mazzoni, o “Olimpicus” — identificara (ou especulara?) que o futebol no Brasil surgira antes de 1895, quando rolou oficialmente, e sob regras primevas, a primeira partida de futebol organizada por Charles Miller, o aniversariante do dia. Assim escreveu Varzea no jornal Gazeta Esportiva, em maio de 1942: “O futebol teria sido exibido na Argentina e no Brasil por volta de 1864, por marinheiros dos barcos mercantes e de guerra estrangeiros, particularmente ingleses. Na Argentina, porém, sua verdadeira prática pelos nacionais data de 1865, entre os sócios do B. Aires Cricket Club, sendo que no Uruguai apareceu por volta de 1880, entre os marinheiros, ali por Punta Carreta. Mas só passou a ser divulgado entre os orientais e argentinos depois que se divulgou nas escolas, por iniciativa de Watson Hutton, na Argentina, e Henry Castle, no Uruguai. No Brasil foi trazido também pelos marujos britânicos, que efetuaram as suas primeiras práticas nos capinzais desertos do litoral norte e sul do país, nos tempos coloniais, do fim do Império e da guerra do Paraguai”.

Varzea — como o cita Mazzoni no célebre “História do futebol no Brasil”, de 1950 — afirmara, com base em jornais da época, que em 1874 a praia da Glória, no Rio, abrigara uma empolgante pelada de marujos ingleses. Houve outra registrada em 1878, quando os marinheiros do navio Criméia se esbaldaram num capinzal entre as ruas Paissandu e a antiga Roso em frente ao antigo palácio em que morava a Princesa Isabel e hoje é conhecido como Palácio da Guanabara, “casa” dos governadores do estado. Pena os marinheiros terem levado o futebol de volta com eles no navio. Mas a alma do novo esporte bretão permanecera no local. Tanto é verdade que ali, naquele território, divisa entre os bairros do Flamengo e das Laranjeiras, brotaria futebol pela primeira vez em solo carioca poucos anos após a pelada dos marujos ingleses.


Entre 1875 e 76, segundo Varzea e Mazzoni, um tal “Mr. John” organizara uma pelada no mesmo local em que seria realizada a “pelada” de 1878. O britânico mobilizou vários funcionários (ingleses e brasileiros) das companhias de navegação inglesas, de bancos, docas, cabos submarinos e da The Leopoldina Railway Company, a ferropvia carioca.

Salomão Scliar e Marco Aurélio de Oliveira Ribeiro Cattani, dois pesquisadores do futebol brasileiro, lançaram, em 1968, e em quatro volumes, a obra a “História Ilustrada do Futebol Brasileiro”. Nela, eles narram que marujos ingleses e holandeses promoveram peladas com a população nativa. Isso em 1878. Não se sabe ao certo em que parte do litoral nordestino as tais peladas aconteceram.

Em São Paulo teria acontecido um pouco antes. Testemunhas oculares da história contaram ao Varzea que as primeiras peladas em território paulista ocorreram entre 1872 e 73 no Colégio S. Luiz, de Itu. Não teria sido propriamente, como descrevera Varzea, uma pelada como a dos marujos no Rio. Na verdade, um padre professor vivia chutando um balão contra o muro, igualmente ao que os jovens ingleses faziam no tradicional Eton College, na Inglaterra.

Varzea era um farejador de informações. Ótimo repórter. Um dos melhores cronistas eportivos de seu tempo. O cara descobriu também, e Mazzoni endossou o fato em sua obra, que houve outro indício de que o futebol já era praticado por aqui antes de 1894. O episódio foi registrado em 1882, em Jundiaí, quando um camarada conhecido como “Mr. Hugh” promoveu uma pelada entre brasileiros e ingleses, todos operários da antiga The São Paulo Railway Company, a ferrovia paulista.


Eis, portanto, fatos (ou seriam lendas peladeiras?) que marcaram a chegada do futebol Brasil. É possível que todas essas peladas, inclusive ocorridas em estados do Norte, do Nordeste e do Sul, tenham realmente acontecido. Mas a bola rolou oficialmente, com base nas regras trazidas da Inglaterra por Miller, em 1895. Mas, parafraseando o “profeta” Nelson Rodrigues, “estava escrito há mil anos” que o futebol brasileiro nasceria no cabalístico 1895. E isso graças ao Miller.

Segundo filho do escocês John Miller, engenheiro transferido para o Brasil para a São Paulo Railway Company, e da brasileira descendente de ingleses Carlota Alexandra Fox, e sócio do São Paulo Athletic Club [SPAC]), Charles Miller foi estudar, em 1884, na Bannister Court School, em Southampton, na Inglaterra. Esse menino tinha nove anos e chamava-se Charles William Miller. O velho John Miller enviou para terra da rainha o garoto, o irmão mais velho dele, John, e o primo de ambos, William Fox Rule. Os três desembarcaram em Southampton no dia 29 de julho.

Charles chegou a defender o selecionado de seu condado, o Hampshire. Disputou jogos contra o Corinthians F.C., que mais tarde viria ao Brasil e inspiraria jovens para a criação da versão paulistana do time inglês, e defendeu o St.Mary’s, que mudaria de nome, tempos depois, para Southampton F.C.. Aos 17 anos, destacava-se na escola, mas com a bola e com o críquete. Chegou a enfrentar o time do Exército da Divisão de Aldershot. Perdeu o jogo [3 a 1], mas foi o autor do gol do St. Mary’s.


Charles Miller com a bola

Na temporada de 1893-94, Charles Miller disputou 34 jogos pela Banister School, marcando 51 gols, com a média de 1,59. Na edição de Natal da revista da escola em que estudava, foi publicado o seguinte comentário: “Charles W. Miller é o nosso melhor atacante. Seu drible é como uma fagulha e seu chute, devastador. Poderia ser mais esforçado, mas, mesmo assim, trata-se de um goleador incorrigível”. Sempre atuando como left-winger, ou simplesmente ponta-esquerda.

Pelo St. Mary’s, Charles disputou 13 partidas e fez três gols, pelo Condado de Hampshire marcou o mesmo número de gols só que em seis partidas.
Retornou ao Brasil em 18 de fevereiro de 1894, com um par de bolas de capão e um livro de regras do association football, que conheceu por aquelas bandas frias, no colégio em que estudava.

A rapaziada, a maioria inglesa, da The Gaz Co. (fornecedora de gás da capital), da São Paulo Railway Company [SPR] e do London Bank, organizaram uma peleja em 14 de abril de 1895 na Várzea do Gasômetro, na Chácara Dulley, situada entre os bairros da Luz e do Bom Retiro. O jogo colocou frente a frente o time da SPR e o da The Gaz Co. A primeira partida (em tese) oficial disputada no Brasil terminou 4 a 2 para a SPR, com dois gols de Charles Miller. O SPAC foi depois o primeiro tricampeão da Liga Paulista de Futebol, fundada em 19 de dezembro de 1901, vencendo os certames de 1902, 03 e 04. Charles Miller foi artilheiro em 1902, com 10 gols, e em 1904, com nove.

O alemão Hans Nobiling, que tinha uma enorme paixão pelo futebol, foi um grande incentivador do esporte bretão, ao lado de Charles Miller. Nobiling chegou de Hamburgo, no dia 13 de fevereiro de 1896. Trouxe na maleta uma bola e os estatutos da Deutschland S. V..


Em 1898, os estudantes do Mackenzie College fundaram a Associação Atlética Mackenzie College e, no ano seguinte, a colônia alemã, com Nobiling a frente, fundou o Germânia [atual E.C.Pinheiros].

Charles Miller e Oscar Cox, que havia voltado da Suíça para o Rio de Janeiro, organizaram os primeiros jogos entre Rio e São Paulo. Em 1º de agosto de 1901, no campo do Rio Cricket, brasileiros enfrentaram membros da colônia inglesa. Apenas 15 pessoas presenciaram a partida.

Cox trocava cartas com Renê Vanorden, um dos fundadores do Sport Club Internacional de São Paulo, Charles Miller e Antonio Casemiro da Costa, este fundador e primeiro presidente da Liga Paulista de Foot-Ball, no dia 14 de dezembro de 1901, na Rua São Bento, nº 3, sala 1, no centro paulistano. Cox queria agendar o primeiro jogo “pra valer” entre cariocas e paulistas, sem a escalação de ingleses. E o primeiro confronto aconteceu em 19 de outubro de 1901, no campo do São Paulo Athletic Club.

Engana-se, contudo, quem pensa que os primeiros jogadores de futebol eram tratados com regalias. Cox estava sem dinheiro para levar a moçada do Rio para o “match” em São Paulo. Pediu à companhia do trem cortesia para as passagens de todos ou, no mínimo, um desconto. Recebeu um sonoro não para os dois pedidos e teve de ouvir do representante da Estrada de Ferro que o trem não era local para passeio de “malandros” e “desocupados”.

Mas Cox conseguiu — não se sabe como — embarcar os jovens pioneiros da bola.


O primeiro e o segundo jogo terminaram empatados, em 1 a 1 e 2 a 2, respectivamente. Logo após o “match” derradeiro, os paulistas ofereceram um banquete na Rotisserie Sport. Oscar Cox e Charles Miller falaram a todos os jogadores sobre a importância da alvorada do futebol no Brasil.

A imprensa acompanhou a jornada dos altivos jovens futebolistas.

O Jornal do Brasil, de 21 de outubro, anunciava que “O match de foot-ball ficou empatado novamente, sem que nenhum dos lados fizesse ponto algum” e o jornal O Comercio, do dia 17, que “No sábado à tarde, 19, e no domingo de manhã, se realizarão dois matchs nesta cidade, entre rapazes dos clubes daqui e os do Rio, que para esse fim vieram a esta capital especialmente […] Esta é a primeira vez no Brasil que se joga um match deste interessante sport entre dois Estados, e se acrescentarmos que são brasileiros os rapazes que, na maior parte, vem do Rio disputar o campeonato Brasil-1901, há um justo motivo de nos regozijarmos, porque finalmente a nossa gente começa a se dedicar com afinco a estes utilíssimos exercícios, cujos benefícios para nossa futura geração, se hão de patentear na sua robusta physica, condição essencial em todos os ramos do labor humano. Aos nossos leitores, que aconselhamos não perderem um minuto deste interessante encontro, prometemos todos os pormenores que se possa guiar e conduzir nessa curiosa prova de foot Ball.”

Miller amava o futebol, mas era, antes de tudo, um exemplo de desportista. Na Inglaterra, jogou críquete, rúgbi, tênis e futebol. Foi fundador da Associação Paulista de Tênis. Quando abandonou a carreira futebolística, tornou-se árbitro e dirigente esportivo.

O inventor da “charles” ou “chaleira”, jogada em que o jogador passa bola por trás do pé, tocando-a de calcanhar, nasceu no dia 24 de novembro de 1874, no bairro paulistano do Brás, na rua Monsenhor Andrade. Nos dias que antecederam o jogo entre cariocas e paulistanos, em 1901, procurou insistentemente os jornais de São Paulo para que anunciassem o marco esportivo que aquela partida representaria para o País. Ouviu o seguinte da maioria dos redatores: “Não nos interessa semelhante assunto!”. À Gazeta Esportiva de 1944, ele comentou: “E hoje em dia como é diferente…”

Se há um “pai” da bola no futebol brasileiro, este é Charles Miller.

ALEMÃO, CRAQUE À FLOR DA PELE PELO FOGÃO

por André Felipe de Lima


Acostumado a grandes ídolos em seus times ao longo dos anos, o botafoguense viveu um angustiante começo de 1983. Deixara o clube Mendonça. Era ele o ícone de uma geração de craques alvinegra que tentava a todo custo acabar com tortuoso jejum de títulos que perdurava desde 1968. Quem recuperaria o único brilho daquele time? Questionava-se a torcida. Em março daquele ano, enfim a resposta: Alemão.

O ex-volante Ricardo Rogério de Brito, o “Alemão”, nasceu em Lavras, Minas Gerais, no dia 22 de novembro de 1961. Foi o pai quem lhe dera o apelido com o qual se consagraria no futebol mundial.

Pobres, morando em um casebre, ele os quatro irmãos ajudavam a família da forma que podiam. Como ajudante de pintor, cansou-se de ser explorado e começou a trabalhar por conta própria. Trabalhava bastante, mas em duas frentes. Se ganhava o pão, ora como engraxate, ora como garçom, por que não reservar tempo para a bola também? Sem vacilar, um intrépido rapaz tentaria a sorte no futebol.

O começo, em 1979, no Fabril Esporte Clube, time de sua cidade natal, foi tímido. Afinal, era jovem e o clube, pequeno, não lhe abriria um horizonte promissor. Decidira que seu destino seria outro: “Mãe, estou indo para o Rio de Janeiro jogar bola, ganhar dinheiro e lhe comprar uma casa”.

Em pleno carnaval de fevereiro de 1980, o rapaz, de apenas 18 anos, aceitara o convite de um olheiro para um teste no Botafogo do Rio. Foi aprovado. Poderia ter, no entanto, largado o sonho para trás. Afinal, não foi fácil os primeiros meses no clube, cuja sede era no suburbano e distante bairro Marechal Hermes.

O calor era incomum e os mosquitos, seus algozes. Faltavam roupas de cama e até comida na concentração. O Botafogo era um simulacro do glorioso do passado.
Alemão sofrera humilhações que por pouco não o fizeram largar tudo e voltar para Lavras.

Uma vez teve de operar o rosto no Hospital Miguel Couto, na zona sul da cidade. Após receber alta dos médicos, voltou sozinho para a longínqua concentração de Marechal Hermes, sem dinheiro, como pingente em um trem.

Outra história dimensiona a triste situação do Botafogo naquela época: Alemão estava sem treinar por conta de uma forte gripe. Pedira a um diretor uma pequena quantia para o ônibus. O camarada sovina negou-lhe o dinheiro.

As coisas só melhoraram para Alemão em 1981, quando, enfim, conseguira estrear entre os profissionais em um amistoso contra o Fluminense de Feira de Santana.
Félix, o goleiro do “tri” mundial no México e técnico interino do Botafogo, mandou que se aquecesse. Alemão teria de entrar no lugar do ídolo Mendonça.

Tremeu, mas entrou em campo. Ali, começara a trajetória que o faria ídolo daqui e, anos depois, na Europa.


Após a estreia, demoraria um pouco para firmar-se como titular. Quando Jorge Vieira assumiu o time, manteve-o na reserva. A oportunidade veio com Ernesto Guedes. E com ela, o sucesso imediato. Alemão não deixaria mais o time titular e seus contratos passaram a ser os mais valorizados do elenco.

Mas Alemão estava escolado. Ainda lhe estavam vivos na memória os infortúnios que vivera na concentração de Marechal Hermes anos antes de assumir o posto de ídolo deixado por Mendonça. Tinha, portanto, os pés no chão. “Não vou ser um novo Mendonça. Se as coisas um dia virarem, eu saberei o momento certo de deixar o clube. Evitarei humilhações. Mendonça, coitado, queimou sua imagem por amor ao Botafogo”. E as “coisas”, infelizmente, “viraram”.

Em março de 1984, o Botafogo devia a Deus e ao mundo. A crise econômica iniciada no final dos anos de 1970 parecia ter chegado ao ápice. O técnico na época era Didi. Ele mesmo, o mestre Didi. Os jogadores, que há meses não viam a cor do salário, só não pararam de jogar por respeito ao ídolo dos anos de 1950 e 60.

Um empréstimo ali, outro acolá e os caras iam vivendo aos trancos e barrancos.
Como tirar o Botafogo de um jejum de títulos sob aquelas condições? Alemão estava cansado e sem contrato. Deixar o Botafogo seria sua salvação. Quitaria dívidas e jogaria com mais segurança.

Alemão repetia Mendonça. Justamente o que não desejava. Mas seu amor pelo Botafogo prevalecera e ele, impoluto como sempre, permaneceria no clube. Até quando, ninguém sabia.

Foi no período em que esteve no Botafogo que casou com Cláudia Loureiro, filha do famoso ator e botafoguense Oswaldo Loureiro, e com ela teve a primeira filha, Carolina.

Tinha de promover uma reviravolta em sua vida para não deixar a família na mão. O Botafogo, por sua vez, esforçava-se para mantê-lo. Ou, pelo menos, alguns verdadeiramente preocupados botafoguenses. Conseguiram um empréstimo vultoso [100 milhões de cruzeiros] para quitar as dívidas com as estrelas do time, principalmente com Alemão.

Mas como resistir ao assédio dos clubes europeus? Alemão encontrou Falcão no Maracanã e este lhe disse que o empresário Roberto Rosselini, o mesmo que encaminhara o próprio Falcão para o futebol italiano, tentava levá-lo para a Itália ou Inglaterra. Uma transferência que salvaria o combalido Botafogo e o vazio cofre do clube. Far-se-ia justiça ao futebol de Alemão. Um craque… mas à flor da pele.

ÍDOLO SOB UM ATAQUE DE NERVOS

No dia 10 de novembro de 1985, o Botafogo perdeu para o Vasco [gol de Roberto Dinamite] e Alemão, a cabeça.

O craque enfureceu-se com o juiz Wilson Carlos dos Santos e o empurrou. Em julgamento de três horas, no dia 19, o Tribunal de Justiça Desportiva da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, que poderia ter aplicado uma pena pesadíssima, de seis meses a um ano fora dos gramados, optou por apenas quatro jogos de suspensão.

Alemão estava uma pilha de nervos. Até reconhecia seu lado temperamental, mas sentia-se maltratado por todos. O Botafogo queria fazê-lo feliz, mas faltava recursos ao clube. Faltava, sobretudo, jogo de cintura… e dinheiro.

Se faltava isso tudo ao Botafogo, esgotara-se a paciência de Alemão. O jogador brigara com cartolas e com dois ícones da história do Botafogo: Nílton Santos e João Saldanha. O primeiro chamou-o de mercenário, o segundo, em sua coluna no Jornal do Brasil, escreveu uma resposta a Alemão, que teria dito que o Botafogo não o merecia. Em depoimento à revista Placar, concedido em dezembro de 1985 à repórter Débora Chaves, Alemão desabafou:

“O que não aceito é a mentira, como a que espalharam por aí, partida de João Saldanha, de que eu disse que o Botafogo não me merece. Foi uma grane invenção que ele espalhou e os outros copiaram. Tudo por causa de uma notícia de que o Flamengo estava interessado em mim. Foi falta de assunto, eu jamais falaria isso porque sou consciente e não um burro. Apesar de sua má fase, foi o Botafogo que me consagrou. Afinal, o que eu tenho ganhei no clube, jogando no time que eu amo, eu me faz sofrer tanto quanto seus torcedores. As críticas de Nílton Santos — de que eu era mercenário — também me surpreenderam. Um cara que jogou só no Botafogo, que se consagrou no Botafogo, é um cara que tem um nome a zelar pelo resto da vida, histórias a contar para seus netos. Então é um cara que tem de refletir bem ao dar uma entrevista, principalmente sobre um clube que o projetou como a ‘biblioteca’… como é que eles falam? Enciclopédia do Futebol. Pois é. Ele foi outro teleguiado, tirou isso do artigo de Saldanha. Aliás, ele é desses que só falam, falam, mas não ajudam nada. Quando ele foi diretor, junto com o ex-jogador Gérson, em vez de auxiliar o presidente, tumultuava. É um cara muito coisinha. Chegava, botava seu shortinho, ficava tomando sol, ia embora, e sobre treino ou jogada, que é o que interessava, nem uma palavra. Ficava de bico calado.”

Bate-boca com ídolos do clube, casos extra-campo…. Alemão enveredara pela polêmica e tornou-se chamariz do jornalismo sensacionalista.

A notícia de que esteve preso por porte de arma atraiu curiosos pela vida alheia e desdobrou-se em uma onda de comentários maldosos.

Alemão nunca escondeu que andava com uma Bereta no porta luvas do carro para defender-se de assaltantes. Afinal, o caminho pela Avenida Brasil até Marechal Hermes sempre foi um risco para motoristas desavisados. Mas Alemão foi parado em uma blitz. Estava sem dos documentos do carro e foi levado à delegacia. Ao revistarem o carro, encontraram a arma. Segundo ele, o delegado era “botafoguense” e seu “amigo” e, por isso, o teria liberado.

A relação com o Botafogo só piorava, mesmo assim Alemão foi levando, mas sabe-se lá como conseguia. A fama de temperamental consolidara-se na imprensa, mas o que desejava era apenas que o Botafogo pagasse a ele o que devia.

Em abril de 1986, a péssima situação entre o jogador e clube parecia irreversível. Alemão estava sem contrato e sem salário desde fevereiro. A imprensa especulava que Corinthians e Vasco tentavam contratá-lo. Alemão mantinha-se discreto. “Quando eu acertar meu futuro, vou rir desse tempo de vacas magras”.

Ele permaneceu no Botafogo. Se com o Alvinegro andava às turras, não podia reclamar da bajulação na seleção brasileira do técnico Telê Santana, da qual era tido como uma das estrelas mais fulgurantes. Com atuações seguras, nenhum outro tomava-lhe a posição na meia cancha da seleção. O cartaz superara até mesmo o de bastiões como Sócrates e Zico.

O ano era de Copa do Mundo e Alemão, apesar de estar desmotivado e sem contrato com o Botafogo, não desapontou. Com o seu companheiro de clube, o lateral-direito Josimar, foi a revelação do escrete no Mundial do México.

A França eliminara o Brasil, mas a Copa do Mundo acalmou Alemão, que acreditava piamente levar o Botafogo ao tão almejado título que não via desde 1968, apesar dos salários atrasados. A intenção era boa, mas o bolso falou mais alto. A partida para o futebol Europeu mostrava-se irreversível.

Quatro meses após a Copa de 86, Alemão, que ganhava 70 mil cruzados por mês, pediu alto para renovar o contrato com o Botafogo. Queria 1,5 milhão de cruzados e 100 mil por mês. Não retiraria sequer um centavo da proposta.

Dias depois de apresentar a proposta para que renovassem seu contrato, sem que o Botafogo esboçasse o mínimo esforço para manter o ídolo, Alemão concedeu entrevista bombástica à revista Placar na qual defendeu a volta do clube para General Severiano, o que, segundo ele, seria a única forma de o clube voltar a ser grande:

“Não consigo explicar o que acontece com o Botafogo. Mas acho que, ao sairmos de General Severiano, perdemos o que tínhamos de mais importante: a tradição de um clube que só teve glória no passado […] Voltar a General Severiano seria como tirar esse azar que paira sobre nossas cabeças. Estou há sete anos aqui e falo de nossa situação com tristeza. Por isso não admito ser maltratado por pessoas da diretoria. Outro dia, Luís Affonso [dirigente das divisões inferiores] me culpou por uma derrota. Não agüentei e dei um chute nele […] Hoje, pelo menos, nós temos uma diretoria competente. O pagamento está em dia e, se eles saírem, poucos jogadores continuarão em Marechal Hermes. Ninguém vai querer ficar quatro meses sem receber salário e até ter de comer em pensão, como já ocorreu aqui. […] Tenho uma ligação afetiva muito grande com o Botafogo, mas não vai dar para renovar contrato. Antes da Copa do Mundo, fiquei quatro meses sem vínculo, ou seja, sem receber salário. Foi uma barra. […] Adoro o Botafogo, choro e vibro como o maior dos torcedores. Outro dia, ao sair do Maracanã depois de uma derrota, uma pessoa me parou, irritada, querendo saber se não me sentia envergonhado. Respondi que sim, pois era tão apaixonado pelo time quanto ele. Após um resultado negativo tenho até vergonha de sair de casa. […] As pessoas não me encaram como um cidadão comum, só enxergam o jogador, na maioria das vezes, derrotado. Poucas pessoas encaram o atleta como um ser inteligente. Ninguém me pára na rua para falar sobre política, economia ou Carnaval. É só futebol. […] Poucos sabem que sou diretor de Relações Públicas do Sindicato dos Jogadores, eu tenho idéias e planos para nossa classe.”

Alemão e o Botafogo ainda arrastaram as negociações até março de 1987. De um lado, o craque garantia que o Atlético de Madrid queria levá-lo a qualquer custo. Do outro, o vice-presidente do Botafogo, Aurito Ferreira, dizia o contrário, que ninguém apresentou oferta pelo passe do jogador e que Alemão era “inegociável”. Bobagem. Além do time espanhol, o Torino também ventilara um interesse por Alemão para que ocupasse a vaga de Júnior, que brigara com o técnico Radice.

ADEUS, BOTAFOGO

No dia 6 de março, uma sexta-feira, o cartola espanhol Vicente Calderón [que morreria duas semanas depois] consumou a transferência de Alemão para o Atlético de Madrid, em uma negociação, que embora não tenha sido revelada, teria chegado a 12 milhões de cruzados.

Mal chegara à Espanha, Alemão despertara a cobiça de clubes italianos. Sampdoria e Juventus assediavam-no com uma incomum voracidade. Os cartolas aceitariam, sem dor na consciência [e no bolso] pagar os 7,8 milhões de dólares [cerca de 1,1 bilhão de cruzados] pedidos pelo Atlético de Madrid.

Mas Alemão estava confortável no clube madrileño. Com o fim da temporada 1987/88, foi eleito, pela Rádio Exterior, de Madrid, o melhor jogador ibero-americano do campeonato. O prêmio era de encher os olhos: um Mercedes-Benz e a promessa de aumento salarial. A rede de comunicação EFE também o premiou com o título de melhor jogador sul-americano da temporada. Alemão estava com a bola toda. Reconhecimento que só reforçava as suspeitas de que clubes italianos o levariam de qualquer forma para o Calcio e antes mesmo de os dirigentes do Atlético esboçarem qualquer reação contrária.

Numa sexta-feira, dia 8 de julho, os cartolas do Napoli, onde jogavam Careca, companheiro de Alemão na Copa de 1986, e Maradona, estrela maior do futebol da época, foram à Madrid e depositaram na conta do Atlético 2,5 milhões de dólares, o equivalente a meio bilhão de cruzados. Alemão realizara, assim, o sonho de jogar no futebol italiano.

O começo no Napoli foi muito bom, mas em outubro de 1988 o jogador contraiu uma hepatite viral que o afastou dos gramados durante dois meses. A doença agravou-se e o jogador, que repousava em casa, teve de ser internado em um hospital policlínico de Nápoles. Recuperado, voltou ao time onde jogou até 1993. Lá, foi campeão da Copa da Itália [1989], italiano [1990] e da Copa da UEFA [1989].


Alemão, ao lado craques como Maradona, Careca e Carnevale, ajudou a escrever a página mais importante da história do Napoli.

Na Itália, o craque também atuou pelo Atalanta, de Bérgamo, na temporada de 1993-94. Era o fim da esplêndida passagem pelo futebol europeu.

Alemão retornou ao Brasil em 1994 para jogar pelo São Paulo comandado pelo treinador Telê Santana, que sempre demonstrou afeição por ele e, sobretudo, pelo futebol que jogava. “Foi uma volta importante. Fiz o que queria e só não parei porque recebi um convite para jogar no Volta Redonda, em 1996”. Ficou no São Paulo até o final de 1995 para ser campeão da Recopa e da Copa Conmebol, torneios disputados em 1994. Participou de 77 jogos, venceu 31, empatou 23 e marcou dois gols. E no clube do sul-fluminense Alemão terminou, no mesmo ano em que lá chegou, sua brilhante e inesquecível carreira nos gramados.

Decidiu voltar a Lavras para administrar sua fazenda e a fábrica de laticínios. Foram dois anos longe do futebol e voltado exclusivamente para seus empreendimentos.
Em 1998, a saudade do futebol tocou-lhe. Um amigo convidou-o para investirem em uma empresa de marketing esportivo. Alemão aceitou a oferta e nasceu a Player Empreendimentos Esportivos e Culturais, que logo fechou um contrato de longo prazo com o XV de Piracicaba.

Na contramão da maioria dos ex-jogadores, Alemão tentaria ser cartola e não treinador, ficando a frente do XV e, anos depois, do Tupi, de Minas Gerais. Mas não obteve sucesso.

SELEÇÃO E RUSGA COM TEIXEIRA

Pela seleção brasileira, Alemão disputou duas Copas do Mundo [1986, no México, e 90, na Itália] e a Copa América de 1989, conquistada pelo Brasil. Até hoje muitos o acusam de ter sido o responsável pelo erro de marcação no meio-de-campo da seleção que possibilitou a jogada de Maradona, seu colega de Napoli, que culminou no gol de Cannigia, que eliminou o Brasil do mundial de 90. Disputou 39 jogos pela seleção, obteve 25 vitórias e seis empates e marcou seis gols. Mas arrumou um desafeto de peso: Ricardo Teixeira, então presidente da CBF [Confederação Brasileira de Futebol].

A postura questionadora de Alemão não se restringiu aos tempos de Botafogo. Na seleção, ele brigou com a CBF por exigir que os cartolas cumprissem o prometido e pagassem o valor integral dos prêmios.


A troca de farpas entre ele e Teixeira foi parar na Justiça até que, em julho de 1993, o presidente da CBF decidiu retirar o processo que movia contra Alemão por este tê-lo acusado de receber, como comissão, parte do dinheiro de contratos de patrocínio da CBF. Alemão sempre exerceu liderança nos grupos pelos quais passou, seja no Botafogo ou na seleção.

Logo após a Copa de 86, encabeçou a lista dos jogadores descontentes com a premiação. Ali, conquistou o respeito de todos e de quem acompanhou o episódio pela imprensa.

Foi um jogador exemplar que merecia uma chance como treinador. Ela viria somente em 2007, após deixar de lado a carreira de procurador de jogadores. Começou no Tupynambás Futebol Clube, de Juiz de Fora, interior de Minas Gerais. O time disputava a segunda divisão do campeonato mineiro. No ano seguinte, teria a primeira oportunidade em um clube de expressão. Com o América Mineiro, disputou o módulo II do campeonato mineiro. Após essa experiência, treinou o Nacional, de Manaus, o Iguaçu, do Paraná, e chegou ao Central, de Caruaru, em Pernambuco, em 2012. Para aprimorar-se, estagiou no Napoli e no Reggina, da Itália.

Fora dos gramados, há anos participa do “Atletas de Cristo”, grupo de jogadores evangélicos batistas, e apóia a “Casa de Transformação Betânia”, em Lavras, instituição de recuperação de dependentes químicos. Em várias oportunidades, Alemão alegara ter se convertido evangélico em 1991, quando voltava de uma viajem a Lavras.

Igualmente a Heleno de Freitas, outro grande ídolo da história do Botafogo, jamais levantou uma taça pelo seu clube de coração, onde brilhou intensamente. Seu único prêmio foi individual: a “Bola de Prata” do futebol brasileiro, concedido em 1985 pela revista Placar.

Se alguns não o compreenderam fora de campo, decerto reconheceram que, nas quatro linhas, Alemão foi um dos melhores do seu tempo.

***

A biografia do Alemão está no primeiro volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento previsto para o mês que vem. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição da Livros de Futebol.com.

BONS DOMINGOS… E DA GUIA PARA TODOS

por André Felipe de Lima


O velho Antônio José da Guia só andava descalço. Não sabia ler nem escrever. Vivia para a plantação, para a esposa, dona Maria Pereira Ramos da Guia, com quem se casou no dia 25 de julho de 1891, e para os filhos do casal. Antes de chegar à cidade grande, trabalhava na roça, lá nas bandas da Fazenda Saião Velho, próxima à Bananal. Antônio nunca soube ao certo quantos anos tinha. Intuía oitenta, isso em 1951. “Sei lá! Eu sou diferente da maioria: porque conto os janeiros que tenho, a partir do dia em que me casei. No dia 25 de julho de 1891, meu pai fez os cálculos e disse ao escrivão Dr. Getúlio Macedo de Azeredo: ‘Tem tanto’. O ‘tanto’ de meu pai significava 21 carnavais completos. Podia não ter 21 carnavais. Mas como meu pai era seguro do cálculo, ninguém duvidava.”

A saga dos Da Guia, como narra o jornalista e pesquisador inglês Aidan Hamilton, começou na antiga lavoura. Antônio José relembrou com detalhes do pai, do avô: “Meu pai, como meu avô, trabalhava na Fazenda do Saião Velho, vizinho do Bananal. Meu pai era bem moço quando nasci. Nem devia ter 19 anos, enquanto meu avô andava beirando os 100. Pelo sim, pelo não, 100 carnavais de sol e eito […] Foi lá que nasci, sim senhor. E foi lá também que me iniciei no trabalho de campo, braço comprido e mão forte. Na roça, cavando terra, derrubando árvores, queimando e sulcando, plantando e colhendo, formei meu caráter e cimentei minha crença”.


O primeiro lugar que Antônio e Maria encontraram no Rio de Janeiro foi Bangu, no qual permaneceram. Chegaram no finzinho do século XIX ao bairro do subúrbio da cidade grande como uma “ave perdida”, como o próprio Antônio definiu. Bangu não tinha nada. Ou tinha. Muito campo, pasto, gado e taperas no mato, uma delas a primeira casa dos Da Guia no Rio. “Era no tempo do Coronel Carneiro e do Dr. Jorge Estrela, donos da tapera”, recordou o velho Antônio, que ao lado de sua Maria ficaram no casebre. No começo, foi um Deus nos acuda. Não havia casa decente, não havia serviço e nem quem pudesse indicar o Da Guia para algum trabalho.

Maria queria voltar para a fazenda. Seu Antônio ainda tinha esperança de que tudo melhoraria. Convenceu-a ficar ao seu lado. “Só que, vez por outra, tinha de ouvir o que muito me doía. Palavras assim: ‘Você já pensou, Antônio, já imaginou sério, como iremos matar a fome de nossos filhos?” Quando ela me fez a advertência pela primeira vez, fiquei maluco de contente”. Nas entrelinhas da bronca de dona Maria o aviso a Antônio de que teriam o primeiro filho.

Luiz Antônio da Guia foi o primeiro da leva. Depois veio Ilídio, Acácio, Ladislau… foram sete homens e cinco mulheres. Entre a filharada do casal, o mais querido de dona Maria era “Mingo”, o Domingos. Domingos Antônio da Guia: “Maria, minha velha Maria [morta em 1945], que Deus a tenha a seu lado, começou a ficar aflita. Queria que êles aprendessem a ler. Que até se formassem em alguma coisa. Mas não houve como. Não houve, realmente, por onde, apesar de sonharmos com um advogado e com um padre na família. Sabe? O padre deveria ser ‘Mingo’ — outro qualquer que fosse advogado […] Sabe? — guardo uma mágoa! De não ter conseguido formar um filho doutor”. Antônio José da Guia concedeu essa entrevista ao repórter Geraldo Romualdo da Silva, em 1951. Ou seja, sete anos após o filho mais famoso ter encerrado a carreira no futebol. Mesmo assim, queria um deles doutor. Mas Domingos da Guia, o “Mingo” de dona Maria, foi doutor! Catedrático da bola. Título que poucos ostentam na história do futebol.

Muitos intelectuais oraram ao “Divino Mestre” Mingo. O uruguaio Eduardo Galeano, doutor das letras, sábio das palavras, disse o seguinte sobre o filho pródigo do casal Antônio e Maria: “A leste a Muralha da China, a oeste Domingos da Guia, nunca existiu zagueiro mais sólido na história do futebol mundial”. O romancista Otavio de Faria dissecava Domingos da Guia como o “Mozart do futebol”. Outro gênio da crônica esportiva, Marcos de Castro, vaticinou: “Domingos foi um capítulo especial do futebol brasileiro”.


O apelido “El Divino Mestre” não foi por menos. Homenagem dos uruguaios, quando Domingos da Guia, aos 20 anos, defendia o Nacional de Montevidéu. Mas a fama começou mesmo durante um amistoso, no dia 22 de junho de 1930, entre a seleção carioca e um combinado formado por húngaros e austríacos, o Hakoah All Stars, dirigido por Bela Gutmann. O estádio de São Januário foi o palco para a vitória de 2 a 0 dos brasileiros, cujos destaques ficaram por conta de Domingos e de seu companheiro de Bangu, o zagueiro e treinador Sá Pinto. Esse mesmo Sá Pinto foi quem lançou Domingos, em 1928, no Bangu. Enquanto o Da Guia insistia em ser escalado como centromédio, Sá Pinto não lhe deu ouvidos e decidiu que o rapaz jogaria ao lado do irmão, Luis Antônio, entrando no lugar de Conceição.

Toda essa reverência para um rapaz com apenas 20 anos de idade… tão novo e já chamado de “Divino Mestre” pelos torcedores uruguaios.

Zizinho, como narra Kleber Mazziero de Souza, visitava, junto com Ademir de Menezes e outros ex-craques do escrete nacional, o colega Obdulio Varela, no Uruguai, o grande capitão da Celeste Olímpica campeã mundial em 1950. Em meio ao bate-papo, Mestre Ziza citou o nome de Domingos da Guia:

— Obdulio, trago um abraço para você lá do Brasil de uma pessoa muito especial.
— De quem, maestro?
— Domingos da Guia.

Varela pôs a mão no queixo e recordou:

— Domingos da Guia, Domingos da Guia, Domingos da Guia, Domingos da Guia… Quando o Nacional contratou o Domingos, nós, jogadores, e toda a imprensa do Uruguai ficamos revoltados. Por que comprar um zagueiro do Brasil, se o maior zagueiro do mundo, o Nasazzi, era uruguaio? Ele estreou, jogou um mês, dois… No terceiro mês, percebemos que até a chegada de Domingos, ninguém aqui sabia o que era um zagueiro. Jamais o mundo verá um zagueiro igual a Domingos da Guia!”.

Como narra Carlos Molinari, o maior pesquisador da história do Bangu, Domingos encerrou a carreira durante o jogo em que o Flamengo fez quatro gols e o Bangu, dois. Uma partida que aconteceu no dia 12 de dezembro de 1948.

Como no Flamengo, no Corinthians, no Vasco, no Boca Juniors e no Nacional, em Bangu ninguém se esqueceu de Domingos. Ele é o maior o ídolo da história do clube. No hino do Bangu, Domingos está lá, citado, homenageado. Poucos no futebol conseguiram tal deferência. Talvez, somente Eurico Lara, cujo nome é mencionado na letra do bonito hino do Grêmio. Até busto de Domingos da Guia está exposto em um calçadão do bairro suburbano em que nasceu. “De todos os jogadores que vi atuar, Domingos da Guia foi o que mais me impressionou. Absoluto. Gigantesco. Estupendo”. Palavras de ninguém menos que Friedenreich, o maior entre todos os gigantes da era do amadorismo no futebol brasileiro, como recordaram os jornalistas Orlando Duarte e Severino Filho.

Pai de Ademir da Guia — outro gênio da bola —, o fantástico Domingos da Guia, ídolo da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1938, foi biografado pelo jornalista inglês Aidan Hamilton, que vasculhou de forma impecável a vida do craque. Hamilton identificou uma aproximação de Domingos da Guia e de Leônidas da Silva com o debate sobre racismo no País. Não há, entretanto, provas ou depoimentos francos de engajamento político de ambos em movimentos anti-racistas. Provavelmente foram assediados pela Frente Negra Brasileira [FNB] para aderirem à causa, na fase em que jogaram por clubes paulistas, quando fotos dos dois craques estamparam capas de publicações do movimento negro. Mas o fato de não aderir a alguma daquelas ações públicas de resistência não significa omissão. Domingos sabia de sua importância para a auto-afirmação da população negra, tão segregada nos primórdios da bola:


“O jogador negro tem uma série de virtudes específicas. Em primeiro lugar, é preciso considerar o estímulo profundo de sua condição racial e tem tudo mais, o preconceito de cor. Normalmente, esse preconceito pode ser disfarçado, atenuado. Mas basta que no decorrer de um ‘match’, ele incorra num ‘foul’ qualquer. Logo, o adversário e a torcida passarão a vê-lo, não como um ser humano, igual aos demais, mas como ‘o negro’, ‘o preto’ ou, ainda, ‘o moleque’. É comum ver alguém dizer, em relação ao craque de cor que, eventualmente, irrita a torcida: Aquele moleque!’ Eu fui jogador durante vinte anos e me fartei de escutar coisas semelhantes referentes aos meus companheiros.”

Domingos da Guia presenciou o preconceito racial no futebol ainda rapaz, em Bangu, como descreveu neste depoimento resgatado pelo historiador Rubim Aquino, no livro “Futebol, uma paixão nacional”, e reproduzido por Aldir Blanc e José Reinaldo Marques, na obra “Vasco: A cruz do Bacalhau”: “Ainda garoto, eu tinha medo de jogar futebol porque vi muitas vezes jogador negro, lá em Bangu, apanhar em campo, só porque fazia uma falta, nem isso às vezes… meu irmão mais velho me dizia: malandro é o gato que sempre cai de pé… tu não é bom de baile? eu era bom de baile mesmo e isso me ajudou em campo… gingava muito… sabe que eu me lembrava deles… o tal do drible curto eu inventei imitando o miudinho, aquele tipo de samba.”

Para Domingos, o estímulo ao jogador negro vinha das arquibancadas. Fosse um aplauso o um apupo seguido de ofensas indizíveis: “Ora, essas manifestações se, por um lado machucam, constituem, por outro lado, o incentivo de que falei. Ocorre, então, o seguinte: o jogador procura recuperar-se. Sente, por instinto, que tem meios no futebol de ascender social e humanamente [sic]. Experimenta o prazer, a volúpia de magnetizar a multidão com seu virtuosismo. Reparem: não lhe basta jogar bem. Ele quer mais, muito mais. Precisa burilar, enfeitar a jogada, da na bola o toque ou retoque que entusiasma a torcida. Basta ver Didi, com seu extremo virtuosismo. Se fosse branco não seria um estilista tão perfeito e tão minucioso. Outro: Leônidas, o ‘Diamante Negro’. A meu ver, sua imaginação é caracteristicamente racial”.

Já idoso, Domingos, sem a esposa Erothildes e sem a filha Solange, que morreu em 1990, recordava, saudosista e emocionado, a sua brilhante história. Sua vida inigualável. Especial:

“Minha passagem por este mundo tem sido como o nome que meu pai e minha mãe me deram: uma sucessão de domingos, dia de futebol e de festa. No meu tempo, só se treinava uma ou duas vezes por semana. E só se jogava aos domingos. Era uma festa […] Minha mulher já morreu. Aliás, são essas perdas que não deixam a gente ser feliz por inteiro. Paciência. Tive dois grandes amigos na vida, além de meus filhos. Um deles foi Guilherme da Silveira, patrono do Bangu. O outro, o professor Flávio Costa. Dizem que fui um grande jogador. Não tenho motivos para discordar.”

Uma vez perguntaram ao craque qual seria a escalação do “Flamengo dos sonhos”. Ele respondeu: “O meu Flamengo de todos os tempos seria com Amado ou Jurandir — um ou outro, pois ambos foram ótimos goleiros; Penaforte e Hélcio; Biguá, Bria e Jaime; Valido, Zizinho, Leônidas, Perácio e Moderato.”. Inconformado, o jornalista questionou-o por que não escalar-se no time inesquecível. Domingos foi emblemático ao responder: “Garanto que não foi por modéstia. Penaforte e Hélcio formaram uma dupla muito boa de zagueiros. E se é para escalar os melhores do Flamengo de todos os tempos, estou apenas, em consonância, fazendo justiça a dois ótimos zagueiros que vi jogar […] Penso que consegui enganar bem durante 20 anos. Não fui de TV nem do Maracanã, mas pude dar sempre meu recado direitinho”.

Ele era assim: humilde, genial, surpreendente. Fosse no campo de futebol ou fora dele. Divino.

Neste domingo, 19 de novembro, Domingos faria 106 anos.

***

O texto acima integra a biografia do Domingos da Guia, que está no IV volume (a Letra “D”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento previsto para o começo de 2018. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição da Livros de Futebol.com.

A DIMENSÃO DE UM ÍDOLO

por André Felipe de Lima


Ademir de Menezes encantava. Que o diga o recifense Antonio Maria, cronista, compositor e locutor esportivo da rádio Tupi, juntamente com Ary Barroso [rubro-negro dos mais parciais em irradiações esportivas]. Quando Maria veio para o Rio de Janeiro, no final dos anos de 1940, transformou-se em vascaíno, ou melhor, em torcedor do “Ademir Menezes Futebol Clube”, como relata Joaquim Ferreira dos Santos em “Um homem chamado Maria”, excelente biografia do genial jornalista, que torcia pelo “Queixada” desde os tempos do Sport. Maria, após o gol do uruguaio Ghiggia na final da Copa de 50, perdeu o gosto pelo futebol, mas continuou fã de Ademir, da mesma forma que seu colega de transmissões de jogos na Tupi, Ary Barroso, era apaixonado pelo Flamengo.

Mas o que Ademir contava a respeito de jogos contra o arquirrival, o Flamengo? “Neste jogo, um jogador pode se consagrar ou ser condenado ao ostracismo. Tudo depende do que acontecer em campo”. O “Queixada” nunca escondeu o prazer que sentia quando atuava contra o Flamengo. A “vítima” era o goleiro paraguaio Garcia. “Ele era um ótimo goleiro, apenas eu dava sorte quando jogava contra ele”, dizia um ponderado, quase diplomático, Ademir Marques de Menezes, que teve dois marcadores implacáveis, porém leais em jogos contra o Flamengo: Modesto Bria [de 1945 a 49] e Jadir [de 1949 e 54]. Deles, Ademir comentava: “Todos dois sabiam marcar muito bem. Jogavam duro, mas com lealdade.”

Em uma época na qual, além de Ademir, havia Zizinho [ex-Flamengo, Bangu e São Paulo], outro expoente da história do futebol brasileiro, as comparações eram inevitáveis. Para Ademir, o companheiro da fatídica Copa de 50 foi o verdadeiro craque daquela época. Modesto aquele Ademir. Zizinho por muitas vezes amargou chacotas após jogos do Flamengo contra o Vasco. Ademir foi o protagonista de uma incômoda escrita na década de 1940, quando o Flamengo foi um inveterado “freguês” do Vasco. Zizinho viu tudo aquilo bem de perto.

Sport, Vasco, Fluminense… nos clubes, Ademir conheceu a glória. Na seleção brasileira, também, até o terrível 16 de julho de 1950, dia em que o Brasil perdeu [2 a 1], no Maracanã, a Copa do Mundo para o Uruguai. “Queixada” saiu do torneio por cima, foi o artilheiro da competição com nove gols, quatro deles na goleada de 7 a 1 aplicada na Suécia. Foi Ademir quem fez o primeiro gol oficial no Maracanã, na estreia do Brasil contra o México. O oba-oba, sobretudo da imprensa, em relação à “imbatível” seleção brasileira, cuja base era o “Expresso da vitória” vascaíno, era o indício de que a soberba, um pecado capital às vezes mortal, seria o ocaso do time dirigido pelo técnico Flávio Costa. A pressão, inclusive política, foi intensa sobre Ademir e seus companheiros da seleção. “Após a perda do título mundial, em 50, a reação do Ademir foi a pior possível. Ele ficou enclausurado e não queria papo com ninguém. Foi para Cambuquira, onde ficou descansando”, disse ao jornalista e radialista José Rezende o irmão dele, Ademilson de Menezes. Ao Rezende, ele também contou sobre a chegada do craque ao Rio. “Quando Ademir veio para o Rio, trouxe toda a família. Éramos sete irmãos, cinco homens e duas mulheres. Ademar, Ademir, Ademilson, Ademilton, Ademis, Odenilda e Odemice. Todos os homens jogavam bola. Ademir era magrinho e o pior. Mas ele insistiu em jogar futebol, coisa que nós não fizemos. Nós fomos trabalhar e largamos o futebol. Ademir praticamente nunca trabalhou. O trabalho dele foi a bola.”


A Copa se foi, mas Ademir não perdeu a popularidade. No mesmo ano do campeonato mundial, o laboratório Bayer fez uma pesquisa de opinião pública para descobrir qual o maior jogador de futebol brasileiro da época. Ademir foi o “eleito” com impressionantes 5.304.935 votos, quase um milhão e meio a mais de votos que elegeram, três meses após o fracasso na Copa, Getúlio Vargas como presidente do Brasil.

Foram muitas as crianças batizadas com o nome do craque do bigode fino, cabelos com gomalina e que só calçava sapatos bicolores. Nos idos de 1950, uma legião de vascaínos nasceu ou cresceu naquela época se deslumbrando com as passadas largas e os gols de Ademir.

Há uma emocionante história de quando a seleção brasileira estava concentrada na Casa das Pedras, no Alto da Boa Vista, no Rio, se preparando para a Copa do Mundo. Um desesperado pai pediu ao técnico Flávio Costa que liberasse Ademir para visitar o filho no hospital porque o menino só entraria na sala de cirurgia caso Ademir fosse visitá-lo. “Queixada” foi ao hospital, o garoto operou e foi salvo. “Flávio Costa me chamou num canto: ‘Você vá lá com o médico da Seleção, num carro da CBD. Veja a situação e volte.’ Depois de sair da concentração, fui pensando dentro do carro: ‘Pode ser algum conhecido, pode ser algum pernambucano.’ Quando cheguei ao hospital, vi que era um garoto meu admirador, que gostava de futebol de botão. O menino veio, me beijou e disse: ‘Doutor, pode operar.’. De volta à concentração, não consegui dormir. Passei a noite em claro. Fiquei pensando: ‘O que é que eu sou? Um santo? Eu sou Deus?’ Aquilo me impressionou.”


Exatos 20 anos após a inusitada história, Ademir, já comentarista de futebol, estava numa fila do Citybank para trocar cruzeiro por dólar. O dinheiro cobriria sua estadia no México durante a Copa de 70. Mas alguém na fila — um rapaz com presumíveis 30 anos — o segura pelo braço e pergunta: “Você lembra de um senhor que em 50 foi buscar você lá na concentração do Brasil para ver um menino na casa de Saúde Santa Lúcia, em Botafogo?”. Era o garoto da sala de cirurgia, que se tornara um bem-sucedido engenheiro. Com lágrimas lhe cobrindo as faces, Ademir recordou essa história à Geneton Moraes Neto. E também outra não menos surreal ao repórter Teixeira Heizer.

Quem nasceu por volta dos anos de 1940 ou começo dos 50 e se chama Ademir, não restam dúvidas: o pai, na principal das hipóteses, ou era vascaíno, ou um ardoroso fiel à seleção brasileira, da qual o Queixada era o ícone. “Teve um sujeito que me chamou para batizar o filho em 46. Fui lá, batizei. Ademir, é claro. Uma semana depois fui pro Fluminense. Apareceu o tal cara: ‘Quero desbatizar; você traiu o Vasco’. E mudou mesmo o nome do garoto. Um ano depois, quando voltei ao Vasco, não é que o cara foi me procurar para batizar de novo o mesmo garoto? Mas aí eu não topei mais.”

Esse era Ademir de Menezes, que teve uma unha do pé, perdida após uma pelada, guardada em um vidro pelo pesquisador Paulo Perdigão. “Relíquia, quem sabe, de um deus vivo”, deve ter pensado Perdigão.

A relação dos fãs com Ademir sempre foi marcada por uma idolatria fora do comum. Para as crianças que cresceram vendo-o jogar bola, nada no mundo seria tão importante quanto Ademir. “Estava jogando pelada na praia de Copacabana, em 1961, com umas 30 pessoas, quando levei uma bolada na cara e caí. Alguém me pegou e me levou para a água. Quando abri o olho, vi que era Ademir Menezes, que havia entrado no jogo sem que eu percebesse. Desmaiei na mesma hora”, narrou Perdigão, que, ainda criança, antes de torcer pelo Vasco, aprendeu a torcer por Ademir.

***

Hoje, dia 8 de novembro, o meu ídolo Ademir de Menezes faria 95 anos, segundo registros de jornais, revistas e entidades, como a CBF. Mas o amigo Alexandre Mesquita alertou-me, e também pude conferir em uma ficha de cadastro no Vasco, que Ademir nasceu em 1921 e não em 1922. Faria, portanto, 96 anos. Outro dado curioso descoberto pelo Alexandre: a grafia do nome de Ademir e dos imrãos era o goleador máximo da Copa do Mundo de 1950 era o segundo de sete irmãos: Adhemar (nascido em 1920), Adhemyr (1921), Odhemylda (1923), Adhemylson (1924), Adhemylton (1925), Odemyde (1936) e Adhemys (193?). Apenas dois ainda estão vivos: Odemyde, que mora em Recife e tem 18 netos e 6 bisnetos, e Adhemylson, Vejam matéria no link: http://www.netvasco.com.br/news/noticias15/69354.shtml.

O texto acima integra a biografia do Ademir, que está no I volume (a Letra “A”) de “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, com lançamento em dezembro. A enciclopédia, que consiste em 18 volumes, está sob a edição da Livros de Futebol.com.