por Sergio Pugliese
Outro dia estava no Aeroporto de Congonhas quando o sistema de som informou sobre o atraso do voo para o Rio. Que novidade!!! Sentei-me e relaxei. Num intervalo da leitura do jornal, olhei para frente e ele, vascaíno ilustre, estava ali, sentadinho, tranquilão, como se fosse um ser humano comum. Pensei em não importuná-lo, mas a tietice falou mais alto. Há tempos sonhava entrevistá-lo, ouvir suas histórias sobre as peladas na Praia do Leme, nos times dos artistas e da Portela. A ideia seria apenas apresentar-me e, humildemente, agendar uma futura resenha.
– Oi, Paulinho, tudo bem? Escrevo uma coluna sobre pelada, no Globo, e adoraria marcar um papo…
– Sente-se! – sugeriu.
Nem precisava pedir. Minhas pernas tremiam tanto que sentar-me seria a melhor alternativa para não pagar o mico de desabar. Sou muito fã de Paulinho da Viola e desde garoto ouço suas canções anestesiantes.
– Temos tempo de sobra – brincou.
E emendou causos atrás de causos. Lembrou-se de fotos com Natal, da Portela, assistindo jogos da escola de samba, escalou times de artistas, com ele, Miéle, Francisco Cuoco, Tony Ramos, Jair Rodrigues e Dary Reis, levantou-se, narrou alguns lances e matou uma bola imaginária no peito para ilustrar melhor uma das tantas memórias. Eu continuava assistindo, babando com a performance de meu ídolo. Seguimos na fila e eu só ouvindo até que entramos no avião, nos separamos e na saída fiquei sem graça de abordá-lo novamente. Não marcamos nada, mas reservei a melhor história daquele fim de tarde para essa época de Carnaval quando ele assume o posto de Rei.
Foi na Praia do Leme. A rapaziada chegou seca para jogar, mas no centro do campo havia uma tigela de barro cheia de oferendas. Foguete foi o primeiro a chegar, viu o “trabalho” e preferiu não mexer. Vai que…
Mas quando Renatinho chegou, Foguete, assim como quem não quer nada, passou a missão ao amigo.
– Renatinho, enquanto vou armando as redes, tira aquela macumbinha dali.
– Vamos inverter, Foguete, não sou muito chegado nessas paradinhas.
– Desse tamanho, com medo?
– Tá vindo o Almeida, ele tira – esquivou-se, Renatinho.
– Almeida, por favor, tira aquela tigela do campo enquanto dou um mergulho e o Foguete coloca as redes.
O grandalhão Almeida não disse que sim, nem que não. Esticou o pescoço, aproximou-se, benzeu-se mas sentiu arrepios que o fizeram desistir. Quando olhou para trás viu Barcelos, policial destemido.
– Fala, Barcelos! Vou dar uma calibrada nas bolas, enquanto isso dá uma geral no campo e tira aquele despacho dali.
Barcelos coçou o queixo, largou a mochila no chão e encarou a tigela como se fosse interrogá-la. Deu meia-volta e desculpou-se.
– Almeida, se não tivesse farofa eu tirava. Dizem que farofa é trabalho radical.
A esperança seria Santana, ateu de carteirinha, mas que surpreendeu a todos com uma resposta inusitada.
– Não meto a mão nisso. Sou ateu, mas não sou louco.
Resumo. Ninguém tirou e a bola rolou com a oferenda no meio do campo. Os jogadores pulavam por cima da macumba e três bolas foram dadas como perdidas porque encostaram na tigela.
– Deixa para o santo – recomendava Vevé.
O racha estava tenso e alguns jogadores garantiram ter visto vultos. Mas no intervalo, a salvação! Baiano surgiu do nada! Mistério! Perna de pau famoso, só era escalado nas emergências, mas foi recebido com festa por uma razão óbvia: baiano não tem medo de macumba. O cara até topou ajudar, mas exigiu uma vaga. A solução seria um time jogar com 12. Feito! Rodeado pela galera, Baiano ajoelhou-se, murmurou “mamãeburuquêdosinhôqueárainhadomarsalveoxalá”, benzeu-se, pegou o alguidar e o entregou ao mar. Ovacionado!!! Em campo, acertou um chute sobrenatural no ângulo, o da vitória. Até os adversários fizeram o sinal da cruz e, após a partida, nunca mais foi visto.
Texto publicado originalmente em 28 de fevereiro de 2015 na coluna “A Pelada Como Ela É”, do Jornal O Globo.