por Israel Cayo Campos
Quem me conhece sabe o amor que nutro pelo São Paulo Futebol Clube. Sentimento esse que surgiu desde que me entendo por gente ao ver aquela máquina comandada pelo mestre Telê Santana do início dos anos 1990.
Para quem dizia que o “Fio de Esperança” era um “pé frio”, eu só vi a fase pé quente dele. Seja em campeonatos paulistas, brasileiros, Libertadores da América duas vezes, Recopas, Torneios internacionais e principalmente em duas conquistas de campeonatos mundiais de clubes sobre nada mais nada menos do que os poderosos Barcelona (1992) e A.C. Milan (1993).
Nesse período meu ídolo dentro de campo era Raí, mais conhecido como o “Terror do Morumbi”. Que se não é o maior jogador do São Paulo, e aí podemos citar muitos que pleiteiam tal vaga, foi o mais decisivo nos títulos que me cativaram a tornar-me torcedor do clube, pois o vi em seu auge na fase em que comecei a amar o esporte bretão.
Claro que para um torcedor de verdade, ter um time a se amar não é nada se não existirem rivais a se odiar. Para mim logo dois surgiam: o Corinthians, que a época não ia muito bem dentro do campo, e o Palmeiras, com o timaço montado pela transnacional italiana Parmalat. É claro que escolhi o Palmeiras! Que vencia o São Paulo com maior frequência, e ainda levava nossos melhores jogadores que não iam para a Europa! Antônio Carlos, Cafu (que foi a Europa apenas para não mudar diretamente de clube) e Müller são exemplos.
Depois de meia década de pura felicidade, o São Paulo começava a entrar em ostracismo, Telê por problemas de saúde deixava o clube e o tricolor passou três anos amargando campanhas discretas.
Foi quando Raí, meu ídolo no futebol voltava em plena final do Campeonato Paulista de 1998 (quando o campeonato ainda era um paulistão!) para enfrentar o Corinthians! Na minha cabeça o São Paulo voltaria a ser grande, e aquela conquista em cima do novo time mais odiado na minha mente juvenil me fazia pensar assim.
Entretanto, o título paulista de 1998 foi a única coisa que Raí conquistou em sua volta ao Morumbi, e enquanto isso, o Corinthians vencia dois campeonatos brasileiros, torneios Rio-São Paulo e campeonatos estaduais… Muitos deles passando por cima do tricolor!
Tantas derrotas para o time de Parque São Jorge sacramentaram que minha rivalidade no final dos anos 1990 e início do ano 2000 agora era com o Corinthians. E só Deus sabe quanto ódio senti ao ver o Raí perder aqueles dois pênaltis contra Dida na semifinal do Brasileiro de 1999 contra o Corinthians. Aquilo já passava de simples rivalidade! Era ódio puro!
Até então de Sócrates só tinha ouvido o básico… Que era o irmão do Raí (e não o contrário!), que tinha sido um excelente jogador de futebol usando a camisa do rival, que era chamado de “Doutor” pois de fato era médico formado, o que era uma raridade para os jogadores daquela época, e que era uma das estrelas daquela Seleção que fracassou no mundial de 1982 diante da Itália. Para mim, era estranho alguém com esse currículo ser o (ou um dos) maiores jogadores da história do time que mais me fazia sofrer enquanto torcedor do São Paulo.
Um pouco mais velho, via os tapes das partidas de Sócrates pela Seleção e lia nas minhas coleções de Revista Placar um pouco da história desse jogador.
– 3 títulos paulistas são os maiores troféus desse jogador? Pensava comigo. Não chega aos pés do Raí! Só campeonatos paulistas o Raí tinha cinco!
– Nenhum campeonato brasileiro conquistado? Libertadores? Mundial?Até jogando na Europa o currículo do irmão mais novo é superior! Esses comentaristas esportivos que dizem que ele é melhor que o Raí só podem estar loucos… Pensava eu ainda em minha pré-adolescência!
Com o chegar da minha adolescência e a intensificação das leituras sobre futebol comecei a perceber que a importância do Doutor ia muito mais do que somente pelos títulos dentro de campo. Mesmo sendo um jogador espetacular, Sócrates conseguia despertar a admiração de quem quer que fosse pela sua autenticidade, sinceridade e inteligência!
Mesmo não tendo a melhor relação do mundo com o goleiro Leão, votou a favor da contratação do mesmo para o gol alvinegro e dedicou o título paulista de 1983 a grande atuação do arqueiro na final contra o São Paulo (novamente o São Paulo!) terminada em 1 a 1 no Morumbi. Na frente de todos os jogadores e funcionários do clube.
Por falar em voto, o paraense radicado em Ribeirão Preto foi um dos principais idealizadores do movimento “Democracia Corintiana”. Que tinha como principal ideal que todas as decisões referentes ao time de futebol seriam votadas por todos os funcionários do clube! Do mais humilde ao presidente, todos teriam o mesmo peso de voto! Com isso, os jogadores decidiam se deveriam ou não se concentrar antes dos jogos, quais outros jogadores eram necessários para a melhoria do time (como foi o caso de Leão!), e até como o dinheiro do “bicho” (premiação dada por êxitos alcançados dentro de campo), deveria ser dividido de maneira igualitária entre os jogadores, roupeiros, motoristas e todos os outros funcionários do clube!
Era uma ideia de igualdade de direitos e deveres entre todos em um país que ainda estava na mão de uma ditadura! Obviamente, muitos não foram a favor desse conceito de liberdade, mas o que fazer? O Corinthians era o time mais popular de São Paulo, e Sócrates, o cabeça do movimento era não só um dos maiores jogadores do clube, como da Seleção Brasileira!
Mesmo com alguns reacionários de plantão a atacar essa ideologia com viés marxista em meio ao futebol, e algumas “fichadas” recebidas pelos policiais, o Regime Militar do início dos anos 1980 já não tinha forças suficientes para impedir essa revolução política dentro do futebol, ou seria do futebol dentro da política?
Entretanto, aquele viés revolucionário do “Magrão” (apelido carinhoso recebido a sua elevada estatura, mas estrutura corpórea magra), não se restringia ao clube de futebol que defendia. Buscando a redemocratização parcimoniosa do país ele militou na campanha “Diretas Já”, entre os anos de 1983 e 1984, que visava aprovar as eleições diretas para presidente da república no país por meio da proposta de Emenda Constitucional Dante de Oliveira que seria votada pelo congresso nacional.
Sócrates convocou o povo as ruas de São Paulo como forma de pressionar a aprovação da lei, participou de showmícios dedicados a divulgar a causa e garantiu que se a Emenda Dante de Oliveira fosse aprovada ele continuaria a jogar no futebol brasileiro, mesmo o Corinthians recebendo boas propostas de clubes italianos para a compra de seu passe! Como a lei não foi aprovada, ele embarcou rumo a Florença para jogar na Fiorentina por uma temporada…
Ao ler tais atitudes, pensava comigo ainda nos anos 2000, quando os salários nem se comparavam aos atuais, mais já eram altos. – Que jogador atualmente teria tal coragem de perder seu pé de meia em prol de um ideal que nem ele sabia se mesmo aprovado, seria bem-sucedido? Nenhum me veio a cabeça!
Eu que sempre fui fã de pessoas revolucionárias começava a deixar meu ódio ao Corinthians de lado e admirar aquela figura. A mesma figura que ouvia meus parentes mais velhos xingarem por ter errado o primeiro pênalti contra a França naquela fatídica quarta de final do Mundial do México em 1986. Ou que criticavam pelo seu já conhecido gosto por bebidas alcoólicas e cigarros!
Continuava a achar o Raí ídolo, mas não poderia deixar uma figura tão emblemática como essa deixada de lado simplesmente por não ter conseguido tantos campeonatos importantes! E afinal, o que é importante ou não, não está na nobreza ou nos valores de um título, mas na própria importância que o seu torcedor dá a aquela conquista, ou não conquista, como foi a Seleção de 1982.
Em 1986, na Copa do México usava uma faixa na cabeça com dizeres a cada jogo. Era uma forma de demonstrar ao mundo todo o quanto as questões sociais eram tão importantes quanto os 90 minutos de bola rolando.
Na primeira partida contra a Espanha, o “Magrão” usava uma faixa em seus cabelos com os dizeres “México sigueen pie”. Em uma clara alusão ao terremoto de mais de 8 graus que devastara parte do país as vésperas do início do torneio. Em outros jogos os textos das faixas atacavam temas ainda recorrentes ao mundo atual. Tais como a fome, o Imperialismo, o racismo e as guerras.
Sócrates aproximava o futebol das questões sociais que mais afligiam os oprimidos no principal torneio de futebol do mundo. Algo admirável e nunca visto por nenhum outro jogador até os dias atuais. Até porque, nos dias atuais é difícil saber o que eles de fato pensam! Pois manifestações de cunho político e social são proibidas pela FIFA, e os assessores atuais impedem que qualquer um de seus agenciados diga algo que venha a causar algum impacto reflexivo a quem os assiste ou segue!
É claro que os milhões de dólares perdidos contam mais que o desejo de mudar o mundo, mas não era assim para Sócrates, que claro, ainda jogava em um futebol que não pagava milhões. Mas já pagava bem mais do que o restante da sociedade recebia, o que o próprio Sócrates deixa bem claro no início dos anos 1980 em entrevista a José Luiz Datena quando este ainda era repórter esportivo da Rede Globo!
Quanto mais lia sobre Sócrates, ou via suas entrevistas na televisão, mais me tornava fã de sua humildade, carisma, inteligência e coragem ideológica. Não cabendo aqui julgar se seus preferenciais políticos estavam corretos ou errados, Sócrates abertamente socialista defendia o partido com quem compartilhava suas crenças ideológicas, mesmo rejeitando desse mesmo partido quando esteve no poder um cargo ministerial.
Por outro lado, aceitou o convite de Fidel Castro para treinar a fraca seleção de Cuba (convite que acabou não se concretizando) com apenas uma condição: a de que receberia um salário igual ao dos demais moradores da ilha, respeitando o ideal de igualdade marxista o qual tinha convicção ser o correto para qualquer sociedade… O homem do melhor passe de calcanhar da história era mais que um excelente jogador de futebol. Era a ovelha negra que dava a cara a bater por seus ideais, ao mesmo tempo que não perdia a capacidade de lutar, mesmo entendendo as diferenciações de mundo ideológico e real. Graças a serenidade do seu brilhante cérebro!
Além do esporte e do engajamento político, Sócrates também se destacava na música, teatro, televisão, literatura e é claro, mesmo não exercendo, na medicina! O que chama a atenção, pois mesmo não sendo leigo no assunto, o Doutor foi deixando a doença chamada alcoolismo o vencer durante toda a sua vida.
É claro, Sócrates não era um super-herói. Não podia sozinho mudar o mundo. Mas também não deixou que o mundo o mudasse! Mantinha os amigos feitos desde sua infância, passando pelos feitos durante seu auge de carreira, até os construídos já em seu último trabalho na tradicional e semanal mesa redonda da TV Cultura “Cartão Verde”.
Tinha seus vícios, adorava uma cervejinha como já dito antes, e aqui não cabe qualquer tipo de julgamento, mas sim um reconhecimento de apesar de ser um ser humano diferenciado em todos os aspectos ainda era um ser humano igual aos demais! Infelizmente, esse vício o levou ao fim da vida em 04 de dezembro de 2011, aos 57 anos de idade.
E eu, que acordava de maneira displicente naquela manhã de domingo em que o arquirrival do meu time se sagraria campeão brasileiro, acabei também chorando pela perda de um ser humano tão fantástico! Ainda maior do que foi como jogador de futebol! E olha, hoje (com a maturidade e racionalidade!), reconheço ter sido um espetacular jogador de futebol (estava no Top 100 da FIFA do Século passado)!
Se ele foi melhor ou pior que Raí dentro dos campos? Isso é assunto para um outro texto! Entretanto, aquele triste dia me fez ter uma reação que nunca pensei que fosse acontecer… Chorei muito pela perda de um ex-jogador corintiano, que faz uma falta danada nesse mundo onde as pessoas estão cada vez mais vazias e medíocres em todos os aspectos!