2a parte – “O debacle”
Marcos Fábio Katudjian
A nostalgia é um sentimento humano que tende a idealizar o passado. No futebol isso também acontece na lembrança de grandes equipes. A seleção brasileira que jogou a Copa da Espanha é um desses times, considerada uma espécie de bastião do futebol bonito e do futebol arte diante do pragmatismo e da ranhetice do chamado futebol moderno.
Eu adorava aquele time, e depois da nossa eliminação – e durante um bom tempo – gostava muito de ouvir elogios àquela seleção e mais ainda, de ouvir lamentos por não sido campeã do mundo. Eu me sentia amparado em minha desilusão, como um luto em que os parentes próximos ao falecido transmitissem suas condolências uns aos outros.
Ao longo dos anos, essa reverência foi ganhando cada vez mais espaço na mídia, de forma que quanto mais nos afastamos no tempo daquela Copa, mais aquele time é idealizado. Idealizado, eu diria, com certa falta de escrúpulos da imprensa especializada.
Por isso, eu gostaria nesse pequeno espaço, a partir de uma reflexão mais distanciada, de oferecer um contraponto à nostalgia que eu mesmo alimentei por tanto tempo.
Então, permitam-se dar um alerta de gatilho para os mais românticos ou ainda reféns daquele trauma: esse vídeo pode provocar reações adversas, como lágrimas, ranger de dentes e urticárias.
Já entenderam, né? Então vamos lá.
Em primeiro lugar, deve estar no topo de qualquer comentário, algo que os brasileiros têm muita resistência para fazer: reconhecer os méritos do adversário. E eu já posso ouvir alguém aí dizendo: “mas eu acho que a seleção brasileira era a melhor seleção daquela Copa”. E eu respondo: “e daí?” O Brasil podia até ter o melhor time, mas isso não garante nada no futebol. Não éramos um time perfeito, simplesmente porque isso não existe. Nem os times de Pelé eram perfeitos porque havia outros dez que não eram Pelé.
O fato é que a Itália tinha um grande time, possivelmente a melhor Azzurra de todos os tempos, e mereceu amplamente ganhar a Copa apesar de uma primeira fase medíocre.
Outra coisa difícil de admitir é que o Brasil tinha falhas, especialmente na defesa. Falhas que estavam claras desde o início. Se na primeira fase a Itália percorria um caminho doloroso de olhar para os próprios erros, a primeira fase do Brasil nos colocou no posto de queridinhos da imprensa e da torcida internacionais. E isso foi a nossa ruína, como acontece via de regra quando o sucesso nos coloca antolhos, viseiras que impedem que os erros sejam observados.
E aqui eu gostaria de chamar os românticos mais exaltados a colocarem os seus pezinhos no chão por um momento. Notem, o Brasil fez apenas cinco jogos naquela Copa. Foi eliminado numa fase equivalente às quartas de final. Daí eu pergunto: como se referir com tamanha devoção a um time que sequer passou pelas quartas de final? Só para citar outras duas seleções que marcaram época sem ter vencido a Copa, a Hungria de 54 e a Holanda de 74, ambas chegaram às finais e têm sido menos lembradas que a nossa seleção de 82.
E independente da fase em que foi eliminada, vamos dar uma olhada nessa campanha. Foram quatro vitórias e uma derrota. As vitórias foram contra a União Soviética, Escócia, Nova Zelândia e Argentina. E perdemos da Itália. Essa foi a campanha do Brasil em 82.
Pois eu pergunto: o que representavam esses adversários na ordem das coisas? Bem, a União Soviética era um bom time, liderados pelo meia Blokhin, com uma defesa sólida e um ataque e meio campo competentes, mas ainda assim, uma seleção europeia de segunda linha. Pois bem, o Brasil suou sangue para ganhar da União Soviética. E uma coisa que ninguém diz: o Brasil não teria vencido aquele jogo sem a ajuda da arbitragem, que deixou de marcar um pênalti escandaloso para os soviéticos aos 36 do segundo tempo quando o jogo estava empatado, um toque de mão intencional absurdamente claro do qual ninguém, absolutamente ninguém fala ou falou. O fato que ficou para a posteridade, na onda do pachequismo reinante foram os dois golaços do Brasil, na verdade, duas obras de arte que ofuscaram os enormes riscos aos quais o Brasil se submeteu durante todo o jogo. Uma análise fria daquela partida, um olhar mais competente do técnico, faria ver que naquele primeiro jogo estava o embrião do que aconteceu no Sarriá três semanas depois.
Depois da União Soviética, o Brasil enfrentou a Escócia. O que dizer da Escócia na ordem das coisas do futebol? A Escócia é um futebol com o nível parecido com o da… Escócia, entendem? Se existe algum time mediano no futebol é a Escócia. A Escócia é uma seleção radicalmente mediana. E o Brasil ainda conseguiu tomar o primeiro gol daqueles cinturas duras. E por falar em bichos de goiaba, o Brasil terminou a primeira fase enfrentando um time semiprofissional, a Nova Zelândia, composto de padeiros, carteiros, marceneiros e jogadores de rúgbi, e o Brasil meteu quatro a zero.
No primeiro jogo da fase seguinte, sim, pode-se dizer que o Brasil foi testado. Jogou contra um gigante do futebol mundial e foi muito bem, ainda que se possa dizer que aquela Argentina era um time meio requentado, sem o mesmo viço da Copa anterior, o fato é que o Brasil fez três a um fora o baile.
Depois veio o jogo contra a Itália. Partida em que a defesa voltou a falhar bisonhamente repetidas vezes. Muita gente fala do pênalti do Gentile no Zico, e foi pênalti mesmo, mas ninguém se refere ao gol legal do Antognioni anulado pelo árbitro, o que seria o quarto gol da Itália.
Mas além dos aspectos técnicos e táticos há outro que me interessa ainda mais. Diz respeito à atitude da seleção ao longo da Copa e especialmente naquele jogo fatídico.
O fato é que o Brasil jogou sem demonstrar nenhum respeito ao acaso. E jogar sem respeitar o acaso no futebol é o mesmo que jogar sem respeitar os deuses. Eu me refiro aos deuses do futebol. Sim, porque eu não sei se Deus existe. Tem horas que eu acho que sim, horas que eu acho que não. Deus pode não existir, mas os deuses do futebol existem, quanto a isso não há sombra de dúvida. E só não conhece os caprichos desses deuses quem nunca foi vitima deles.
Contra a Itália, o Brasil não entrou para se classificar para a semifinal. O Brasil dava isso como certo. A classificação era apenas um objetivo burocrático a ser cumprido, algo como assinar a súmula. O objetivo era outro, o objetivo era dar espetáculo. E se vocês acham isso uma virtude, bem… os italianos também devem ter achado.
O Brasil jogou como se a vaga numa semifinal de Copa do mundo fosse algo menor, algo banal. O que importava era o virtuosismo de seu jogo. Ir para a semifinal era um objetivo reles, que estava aquém das suas possibilidades. Vocês tem um adjetivo para determinar esse tipo de comportamento? Eu tenho pelo menos dois: arrogância e soberba. E se você tem dúvidas a esse respeito, sugiro que assistam novamente pelo menos os minutos que sucederam o gol de empate do Falcão. O que se vê é gritante: um preciosismo egocêntrico raramente visto na história desse esporte.
E do outro lado, o que se via? Uma Itália execrada pela torcida e imprensa, com quem estava rompida. Um time que lambia as próprias feridas de uma primeira fase sofrível. Um time que exatamente por tudo isso, deixou tudo em campo naquele jogo, colocando o coração na ponta da chuteira em cada lance, em cada palmo do gramado, um time heroico, de muita entrega e valentia. Um David que não hesitou em comer grama diante de um Golias sobranceiro, impávido, colosso. E nesses mais de quarenta anos acompanhando o jogo, eu lhes digo: não há mitologia que mais deleite os deuses do futebol do que essa de David e Golias.
Enfim, é bom que se entenda de uma vez por todas: Jogar bem, jogar melhor nunca foi determinante de nada no futebol. Jogar com determinação, raça e profundo empenho muitas vezes está mais próximo da bem aventurança.
Volto a dizer, a seleção de 82 talvez tenha sido minha maior paixão adolescente. E me dói ter que desdizê-la. Se faço isso, é por perplexidade diante do culto exagerado àquele time. Um time que não teve a sabedoria e a humildade suficientes para transformar seu talento excepcional em resultado, coisa que a aborrecida seleção de 94 fez com muito menos potencial. Minha perplexidade é ver a forma condescendente e sentimentalóide com que a imprensa ainda hoje trata nossa participação naquela Copa.
E aqui entre nós, para mim isso diz respeito a vários outros aspectos do caráter nacional, onde – entre tantas outras mazelas – aprender com os erros do passado é tão raro e improvável.