por Marcelo Mendez
Subimos a Rua Tanger.
A ideia naquele domingo de muito sol no Parque Novo Oratório era aceitar o armistício de paz do Tocão, que após quebrar meu nariz no “contra” entre Tanger de Baixo x Tanger de Cima, chamou a rapa nossa pra ver o jogo do Brasil x Argentina na casa dele. Ele topou as condições minhas: eu poder levar meus amigos de time da Tanger de Baixo.
Após conversa dele com a mãe, da mãe dele com as nossas, tudo foi acertado.
Minha mãe, Dona Claudete, se prontificou a ajudar com as coxinhas que ela já vendia pra ajudar nas contas de nossa casa. O Seu Antonio, pai do Jadão, descolou uma grana para os refrigerantes e então, munidos de tudo isso, eu, Jadão, Néinha, Pedrinho, Serginho e Denis subimos os 200 metros que precisávamos para chegar até a casa do Tocão.
– Tocãooooooooooo!!!
– Caraio, Marcelo, num grita!
– To chamando o cara, Jadão!
– Tem campainha, seu burro!
E então, com a atenção chamada pelo Jadão, acompanhado das risadas dos outros parceiros, apertei o botão da campainha na parede da frente do sobradão que o Tocão morava. Chamava atenção…
Em um bairro que ainda era bem precário, quando a vida era dura no Brasil de 1981, ver uma casa como a do Tocão impressionava bastante. Ele morava num sobrado na parte de cima da rua, uma casa bonita, com uma Brasília nova e um Dodge Polara na garagem. Seu pai, o Renato, trabalhava na Volks, era ferramenteiro por lá e a vida do Tocão era bem diferente da nossa.
Foi ele quem nos recebeu:
– Entra, Marcelo! Veio todo mundo?”
– Se num viessem, eu também num viria!
A chegada no sobrado do Tocão…
Ao me ver com a vasilha de salgadinhos cheia, Tocão me ajudou com o peso.
Os amigos se revezam na condução da sacola de guaranás antártica de litro, na época num existia o tal do pet, era tudo vidro, tudo meio desengonçado pra carregar. Na porta de entrada, Renato, Pai do Tocão nos recebeu.
Homem alto, com um topetão penteado pra trás, muito bem vestido, equilibrou o copo largo com alguma coisa dentro, em uma mão e com a outra, fez afagos na cabeça nossa. Perguntou do meu Pai, deu um sorriso e nos convidou pra entrar.
Dentro da casa, a gente se surpreendeu de novo. Diferente dos cômodos apertados que a gente dividia a casa era grande, arejada, com móveis novos, uns super ventiladores de teto instalados e a sala onde assistiríamos o jogo tinha uma TV em cores enorme, umas poltronas e sofás confortáveis e um aparelho de som último tipo, tocando uma música.
Cheguei perto e vi que o disco era do ABBA e a música, contando as faixas da bolacha, descobri que era “Angel Of Morning”. Foi nesse momento que Dona Dirce, mãe do Tocão, chegou com uma bandeja de um monte de coisas pra gente comer.
– Meninos, falei pra mãe de vocês que não precisava trazer nada. Mas já que são os salgadinhos da Dete, sei que são bem melhores que os meus, então a gente come junto, né?
Concordamos e então começamos petiscar, quando a campainha tocou. Tocão foi atender e voltou com Sandrão, Betinho, Luciano, Carlão e Dida. Era o time da “Tanger da Cima”
O rescaldo do nariz quebrado
Dona Dirce foi quem recebeu os caras, da mesma forma que nós fomos recebidos.
Os trouxe até a sala, nos apresentou, como se já não nos conhecêssemos tão bem, nos deixou sozinhos enquanto foi preparar algo. Nesse momento, rolou um clima meio estranho, de eles pra lá pro outro lado do sofá, nós pra cá. Foi Luciano quem quebrou o gelo:
– E aí? Precisamos marcar aquele “contra” de novo. Porque num acabou, né? Marcelo e Tocão estragaram tudo…
– Eu? Ele que deu um murro no meu nariz. Sorte de vocês que o Peu chegou, senão num ia ficar assim, não!
– Assim como, Marcelo? Com o nariz torto? – tirou onda comigo, Sandrão. Eu não deixei quieto. Levantei do meu lado do sofá e fui até ele:
– Torto vai ficar você, desgraçado…
– Calmaaaaa!!!” – era o Renato, Pai de Tocão.
– Vai começar o jogo, vocês vão comer, beber guaraná e ver isso juntos. Vamo sentar que os times já tão no campo!
Com a narração do Silvio Luiz, via TV Record, a gente viu que os times de Brasil e Argentina estavam em campo.
Maradona, eu não te odeio…
Estava muito recente, nas nossas retinas de meninos, aquela festa de papel picado no titulo deles contra a Holanda na última Copa, a marmelada que eles armaram contra o Peru e o timaço que eles tinham que vinha reforçado com um camisa 10 que eu já começava a gostar.
– Porra, mas como pode um cara desse tamanho, dar tanto trabalho? Porque o Oscar num da uma chegada nele?
– Porque o Oscar não ta nem achando ele em campo, Jadão! – respondeu o Sandrão.
Aos meus 11 anos de idade, eu descobri que jamais ia conseguir odiar Maradona. Ele era aquilo que eu e qualquer um dos moleques da Rua Tanger poderíamos vir a ser. Um moleque de bairro, de uma favela Argentina, com um talento especifico, como única chance de mudar a sua vida. Se apegaria a isso com toda a fé e todos os pecados do mundo. Seria nosso rival, mas jamais, nosso inimigo:
– Ah lá, fodeu! – Falou Néinha. Com toda habilidade do mundo, o 10 argentino entrou driblando e abriu o placar. E o primeiro tempo virou com aquele gosto estranho na goela.
O coice que uniu a nação!
Na segunda etapa, o Renato já não estava mais ali com a gente.
A irmã e a mãe do Tocão também já faziam outras coisas. Na sala tínhamos nós que torcíamos pelo mesmo time, mas que não estávamos juntos ainda. Até que o Passarela resolveu dar um jeito nisso…
Uma jogada no meio, bola comum, sem nada de perigo pra lado nenhum e na dividida com Batista, Passarella dá um coice no meio da perna do volante nosso, pura maldade.
– Filho da puta! – gritou tocão.
– Filho, num fala palavrão… – disse Dona Dirce.
– Não, Dona Dirce! Tocão tá certo; Esse Passarella é um filho da puta mesmo! – disse o Jadão.
E nesse momento fizemos um corinho no meio da sala:
– Filho da puta, filho da puta, filho da puta…
– Mas o que é isso?!?! – indignou-se a Mãe.
Sorrindo, seu Renato, amenizou:
– Deixa os meninos, Dirce. Vamos lá pro outro quarto…
E então, sozinhos, começamos a comentar a patada do Passarella, juntos, sentando agora misturados, um do lado do outro, xingando tudo da seleção Argentina, torcendo pra valer. Ali, naquele momento, a sala da casa do Tocão virou uma arquibancada do Estádio Centenário onde rolava o jogo e juntos vimos o gol de Edevaldo, empatando para o Brasil:
– GOOOOOOOOOOOOOLLLLLLLL!!!
Abraçados como amigos que sempre fomos mesmo antes de sabermos que éramos, fizemos a festa naquele domingo à tarde. Enchemos a cara de guaraná e coxinhas de frango, nos saudamos e ficamos felizes como se a vida em 1981 fosse algo muito bom. E no final, Luciano arrematou:
– Acho que aquele “contra” que num acabou a gente num precisa mais jogar. Mas acho que a gente podia se juntar pra pegar o time da Rua Camerun. Vamo?
E no caminho para a Copa de 1982, surge um novo escrete no Parque Novo Oratório…