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Claudio Lovato

O APELIDO

por Claudio Lovato


Então ele decidiu: se continuassem a lhe chamar por aquele apelido, ele abandonaria o time.

Ele gostava muito de jogar no time – todos amigos, todos na faixa dos 15 anos, vizinhos desde que nasceram, criados na rua 8 de Abril, e o treinador era o pai do Vinícius, que havia sido profissional. 

Mas aquele apelido… A coisa tinha ficado insuportável para ele.

No dia seguinte à tomada de decisão – véspera da partida que poderia levá-los pela primeira vez à final do campeonato do bairro –, ele chamou todos para uma conversa franca antes do bate-bola de fim de tarde, na praça Ary Santamaria.

– Chegou dessa história! – ele dissera ao fim do papo, e todos concordaram e assentiram com a cabeça e se comprometeram (o Lico com um sorrisinho enigmático no rosto) a nunca mais usar o apelido.

O dia da semifinal contra o time da rua Taquara era um sábado. O jogo estava marcado para as dez da manhã. A segunda semifinal, entre o pessoal da rua dos Loivos e os açougueiros da travessa Elias Ricardo seria no domingo, no mesmo horário.

O uniforme do 8 de Abril Futebol Clube era azul e laranja, e ele vestia a camisa 9. Era o artilheiro disparado – não apenas do time, mas do campeonato; fizera 12 gols nos até então dois meses e meio de competição.

Foram para o jogo e, quando chegaram, os “taquarentos” já estavam por lá. Seria uma partida duríssima.

Foi no fim do primeiro tempo que o jogo, por fim, deslocou-se do meio do campo, espaço de um interminável e caótico perde-e-ganha, para a área de ataque do 8 de Abril. A bola foi lançada por Betão, de forma totalmente involuntária, e acabou indo parar à frente dele, do 9 matador do time azul-e-laranja. Apenas ele e o goleiro. Outra chance daquelas, naquele jogo? Melhor não esperar por isso. Primeiro foi um toque com o lado interno do pé direito, para entrar em acordo com a bola, e então um leve toque para a frente, com o peito do pé esquerdo, e aí o tiro já estava engatilhado, o passaporte para a final uma semana depois, a final tão sonhada, e foi quando ouviu-se a voz esganiçada do Lico, que acompanhava a jogada mais ou menos de perto:

– Vai, Lêndea!!

O chute saiu torto, fraco, pelo lado esquerdo do gol. Um traque.

O silêncio se abateu como um véu sinistro sobre o esquadrão da 8 de Abril, enquanto uma gargalhada coletiva, a cruel trilha sonora da humilhação e do deboche, tomava conta do lado da turma da Taquara.

Ele se virou para os companheiros, tirou a camisa 9, deixou-a caída ali mesmo, perto da marca do pênalti, e saiu de campo, decidido a nunca mais vestir aquele uniforme e a nunca mais conversar com nenhum deles, a partir de agora e para sempre seus ex-amigos.

No meio de um círculo formado de forma rápida e precária pelo time, Lico era alvo de fisionomias furiosamente inquisitivas.

– Por que você fez isso??? – era o que aqueles rostos diziam.

– Eu…, eu…, eu… – tentou balbuciar, como se tivesse desaprendido todas as outras palavras do idioma. 

– Ca-ca-cagou o cam-cam-peonato!! Ca-ca-gou tu-tu-do!!! – disse Adalberto, que tinha gagueira nervosa. 

Foi o pai do Vinícius que convenceu o goleador a voltar a campo. Numa certa idade da vida, as decisões “para sempre” podem durar menos de dez minutos.


O time da 8 de Abril chegou à final. Ia decidir tudo contra os “Loivos”. Seria um embate duro, mas leal. Com Lico na reserva e vigiado de perto por praticamente todos os moradores da 8 de Abril – do bebê da Marialva e do Délcio, o mais novo torcedor do clube,  à avó do Neco do Quiosque, que, pelo que diziam, tinha quase 100 anos e foi para o jogo portando uma inconfundível vara de marmelo.  

CATRACAS

por Claudio Lovato


(Foto: Reprodução)

 – A gente vai?

A pergunta do menino atingiu o homem como um corte de punhal de gelo em algum lugar entre a boca do estômago e o meio de peito.

— Claro!

A resposta exprimia vontade, não certeza. Nenhuma certeza.

Fim do mês. O dia do pagamento ainda coisa distante – teria que esperar mais uma semana pelo menos. Uma pindaíba de dar dó (a dó que ninguém sentia por eles, a não ser eles próprios).

O homem precisava arranjar R$ 120,00 se quisesse levar o menino ao jogo desta tarde.

O dinheiro restante na casa estava em poder da mãe, dentro de um envelope que todos sabiam onde estava, mas do qual ninguém se atrevia a chegar perto. Era o dinheiro da comida, do gás, da conta da luz (atrasada) e da condução para o trabalho.

O menino ouviu a respostae voltou para o quarto.

O homem pensou.

Aos amigos aos quais podia recorrer, já o havia feito, em outras ocasiões recentes.

Poderia falar com o patrão, pedir um vale, mas logo desistiu da ideia. Simplesmente não conseguia imaginar aquele sujeito sovina, dono do mercadinho onde ele trabalhava como faz-tudo havia dois anos, lhe dando um adiantamento.

Poderia falar com o vizinho que emprestava dinheiro para quem quer que aceitasse pagar os juros obscenos que ele cobrava. Se sua mulher descobrisse que ele havia pegado dinheiro com o agiota do bairro, o casamento sofreria sério abalo. Poderia até acabar. Ou no mínimo lhe render duas semanas dormindo no estropiado sofá da sala.

Por fim, pensou no irmão.

O problema era que o irmão costumava combinar uma coisa e se esquecer dela meia hora depois – meia hora regada a toda cachaça que conseguisse beber.

Mas resolveu ligar.

O telefone tocou várias vezes antes de o irmão atender. Estava acordando e, pelo jeito, em seu estado normal: enfrentando uma ressaca furiosa.

Explicou o caso. Sim, o irmão tinha R$ 120,00 para emprestar. Claro que ele sabia o quanto sobrinho queria ir àquele jogo. Marcaram o encontro para dali a duas horas, no portão de acesso que usavam para entrar desde os tempos em que eles dois, os irmãos, eram adolescentes.

Antes da hora marcada, o homem e o menino estavam em frente ao portão. A hora chegou e o irmão não apareceu.

A aflição do homem aumentava a cada minuto. O menino não olhava para o homem; concentrava-se em assistir aos outros torcedores entrarem no estádio.

O homem percebeu que um dos porteiros, o mais velho, os observava. 

Agora havia poucos torcedores no entorno do estádio. O jogo estava para começar. O homem sabia: o irmão não apareceria. Ligou para ele do celular. Caixa de recados. A irritação, a amargura e a certeza de que de nada adiantaria fazer aquilo o impediram de tentar uma nova chamada.

O porteiro veterano continuava a olhar para eles. No peito do menino, a iminência da decepção se manifestava na forma de batidas aceleradas do coração.

A torcida lá dentro. A festa. Era o time entrando em campo. O entorno do estádio praticamente deserto. E nada do irmão.

Agora, lá dentro, a primeira explosão da torcida. Gol? Quase gol?

Duas lágrimas invencíveis surgiram nos olhos do menino. 

Ódio em estado bruto transbordava do peito do homem – ódio de tudo, ódio da vida.

Então ele viu o porteiro coroa fazer um sinal. Depois o assistiu colocar a catraca numa posição neutra, caminhar em direção ao colega, cochichar alguma coisa e, na sequência, afastarem-se, ambos comas mãos no bolso das jaquetas pretas.

O homem pegou o menino pela mão e o arrastou. Com o máximo de cuidado e rapidez (uma combinação difícil) passaram pela catraca.

O menino enfim ingressou no território em que seu desejo mais profundo se realizava.

O homem olhava para o menino, e para nada mais; era a única forma possível de sufocar a imensa vergonha que sentia.


(Foto: Reprodução)

O barulho da batucada. Os gritos. Quando, por fim, o menino e o homem conseguiram dirigiro olhar para o gramado,um dos atacantes do time deles, o craque tatuado, ídolo maior do menino, estava na cara do gol, sozinho, de cabeça erguida, com a bola colada ao pé direito,  apenas ele e o goleiro, e então fez exatamente o que tinha que fazer, para a momentânea desforra do homem e do menino diante daquilo que jamais poderiam enfrentar de igual para igual. 

OS QUATRO (E MAIS OS SETE E TODOS OS OUTROS)

por Claudio Lovato


(Foto: Marcelo Tabach)

Na concentração no hotel

O goleiro tenta disfarçar a tensão.

O lateral esquerdo é pura euforia.

O volante está revoltado.

O atacante mantém a autoconfiança.

No ônibus para o estádio

O goleiro está calado.

O lateral esquerdo puxa a batucada.

O volante olha para a rua e só o que vê é um lugar ruim.

O atacante anda pelo corredor.

Na preleção no vestiário


(Foto: Marcelo Tabach)

O goleiro sabe que não é o preferido do técnico (é o terceiro goleiro e enfrenta a desconfiança do treinador; é a cartada que sobrou, a solução que restou à mão, e isso fica bem claro nas palavras do chefe).

O lateral esquerdo ri e leva tapas na cabeça (é benquisto por todos, até pelo técnico, que embora seja, como todos sabem, um sujeito mal-humorado, faz brincadeiras com seu jogador durante a prelação).

O volante que ir embora do clube (é vaiado em todos os jogos, não importa o quanto se esforce, não interessa mais se tem bom desempenho nas partidas ou não).

O atacante faz uso de toda a experiência que conseguiu acumular (não faz gol há oito jogos, uma seca inédita na carreira).

No aquecimento no gramado

O goleiro recebe o apoio de todos os companheiros de defesa – e alguns esparsos gritos de apoio do pessoal da organizada que fica atrás do gol.

O lateral esquerdo vai ser pai a qualquer momento – e se marcar gol hoje vai, sim senhor, fazer igual a Bebeto na Copa de 94.

O volante é xingado pelos torcedores das sociais – quer mostrar a eles o dedo médio, mas não o faz porque tem uma grande fé em si mesmo e em sua capacidade de dar voltas por cima e sabe que sempre há um outro dia, o amanhã.

O atacante diz para si mesmo: “Hoje a inhaca termina”.


(Foto: Reprodução)

Quando soa o apito do juiz

Todos os quatro – e mais os outros sete que estão com eles, irmãos de armas ali colocados pelo destino ou pelo mais puro acaso, o que pode significar exatamente a mesma coisa – então partem para a luta, vão para cima do adversário, vão fazer o melhor que podem, vão ser quem podem ser, nem mais nem menos que isso, porque não há outra coisa neste mundo de Deus que possam fazer agora.  

 

 

Fotos tiradas originalmente para a matéria “O Maquinista”, sobre o time de pelada “Trem da Alegria”, do craque Afonsinho.

FIDELIDADES

por Claudio Lovato


O cidadão Pedro Virgílio costuma sair de casa toda quarta-feira à noite – e morrer.

Morre de paixão, e depois volta para casa.

Rosângela, a esposa paciente, vai levando a vida conjugal da melhor forma possível. Prefere não criar caso.

Numa certa quarta-feira de manhã, entretanto, no café da manhã, ela resolve que é chegado o momento de conhecê-la de perto.

– Hoje eu vou com você! E não adianta tentar me fazer desistir! –  anuncia.

Contrariado, mas ao mesmo tempo sentindo um estranho tipo de alívio, ele concorda.


E lá se vão juntos, em completo silêncio, no velho Gol da família.

Na chegada, a primeira coisa que Rosângela percebe é a animação geral.

Encontra alguns amigos do casal. Na verdade, não chega a ficar surpresa por vê-los ali. Já desconfiava.

Ela o assiste ir para o local em que ele trocará de roupa. Um puxadinho sem porta.

Alguns minutos se passam e então ela o vê reaparecer, de calção e camiseta, visivelmente sem jeito, olhando de lado, cabreiro por causa de sua presença.

Sentada numa cadeira de plástico, ela acomoda a bolsa no colo.

De repente, ouve o arrastar de uma cadeira e – agora, sim, surpresa – dá de cara com a amiga Mara Rúbia, mulher de Antônio Geraldo.

– Você também veio…, Rosângela diz.

– Venho sempre! Só pra conferir – Mara Rubia reponde.

– Sei.

As duas ficam em silêncio, olhando para onde os maridos estão agora, como se fossem meninos, cumprimentando-se com brincadeiras típicas de alunos do ensino fundamental.

Dali a alguns minutos, a disputa começa com espantosa disposição.

Rosângela balança a cabeça de um lado para o outro. Mara Rúbia suspira.

– Vê se pode… – diz Rosângela.

– Vê se pode – repete Mara Rúbia.

– A tal da pelada.

– Pois é.


As duas passam um tempo em silêncio, assistindo aquela correria desordenada dos homens e ouvindo seus gritos.

– Vou buscar uma cerveja. Quer? – Mara Rúbia pergunta.

– Claro que quero!

Quando a amiga sai em direção ao quiosque, Rosângela olha para o campo mal iluminado.  

Ela acena para ele. Ele acena de volta.

O sorriso que surge entre os dois é um claro indício de compreensão.

E de um irrevogável salvo-conduto (até segunda ordem). 

UM CRAQUE CHAMADO EDUARDO SACHERI

por Claudio Lovato


Eduardo Sacheri (Foto: Romina Francheschin)

Aproveitei a parada do Carnaval para revisitar “La vida que pensamos” (editora Alfaguara, 2013), reunião de contos de futebol de autoria de Eduardo Sacheri. Nascido em Castelar, na província de Buenos Aires, torcedor do Independiente de Avellaneda, Sacheri foi coautor do roteiro de “O segredo dos seus olhos”, adaptado do seu livro homônimo, estrelado pelo grande Ricardo Darín e ganhador do Oscar de melhor filme estrangeiro em 2010. Quem, entretanto, acompanha a carreira de Sacheri sabe o quanto é fundamental e realizadora para ele a criação de histórias sobre futebol.

Seu primeiro livro de contos, “Esperándolo a Tito”, publicado em 2000, trazia uma sensacional coletânea de “relatos futboleros”. Depois vieram outros – “Te conozco, Medizábal”, “Lo raro empezó despues”, “Un viejo que se pone de pie” e “Los dueños del mundo”. “La vida que pensamos” é uma seleção de histórias de todos esses livros, com o acréscimo de trabalhos inéditos. O conto que abre o livro é, significativamente, “Esperándolo a Tito”, um clássico aflitivo e emocionante do craque que foi jogar na Europa e é aguardado pelos amigos do bairro para a disputa de uma pelada decisiva em vários aspectos.


Durante a leitura do 23 contos que compõem o livro percorrem-se os caminhos que explicam o amor profundo e irremediável pelo futebol (se é que possível explicar algo assim), amor nascido na infância, na pureza das primeiras disputas com os amigos nas calçadas da vizinhança e nas primeiras idas ao estádio pela mão do pai ou do avô.  

Sacheri transforma o corriqueiro em transcendental, porque escreve com alma sobre aquilo que o apaixona, com a destreza dos grandes escritores. “La vida que pensamos”, como salientei, começa com “Esperándolo a Tito”, mas no texto que o precede, a “nota do autor”, está bem explicado o porquê de Eduardo Sacheri ser um dos meus heróis na literatura. (A tradução é minha, mas podem confiar.)

“Perguntaram-me muitas vezes por que escrevo contos de futebol. Trata-se de uma pergunta incômoda. Não porque essa curiosidade seja inadequada. Mas sim porque não estou totalmente seguro de ter uma resposta. Às vezes sinto que não tenho nenhuma. Outras, que tenho várias. Gosto de contar histórias de pessoas comuns. Pessoas como eu mesmo. Pessoas como as que sempre povoaram a minha vida. Sequer sei por que são essas as histórias que me cabem contar. Talvez porque me seduza e me emocione aquilo que há de sublime em nossas existências ordinárias e anônimas. Nessas vidas, com frequência habita o futebol. Porque o jogamos desde pequenos. Porque amamos um clube e sua camisa. Porque é uma dessas experiências básicas nas quais se fundamenta nossa meninice e, portanto, aquilo que somos e seremos. Creio que todas as histórias que contamos busca acessar, de um modo ou de outro, os grandes temas que governam nossas vidas como seres humanos. O amor, a dor, a morte, a amizade, a angústia, a traição, o triunfo, a espera. E, no entanto, não é simples ingressar nesses temas de frente e sem atalhos. O futebol, como parte dessa vida que temos, é uma porta de entrada a esses mundos íntimos em que se jogam assuntos muito mais definitivos. Um cenário, ou um pano de fundo, das coisas essenciais que marcam e definem todas as vidas”.