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Claudio Lovato

QUATRO FINS DE ANO

por Claudio Lovato


Roberto Paulo terá mais um fim de ano de recordações. Há 12 anos, desde que parou de jogar, seus fins de ano têm sido assim. Ele participa de peladas com ex-companheiros, confraterniza com eles, toma sua cerveja, dá boas risadas e então volta para casa para se entregar às recordações dos tempos em que seu nome era gritado no maior estádio do Brasil.

O fim de ano de Raul será de reflexão. Ele acaba de fazer 34 anos e decidiu parar. Alguns amigos tentaram dissuadi-lo da de decisão.  Acham que ele poderia jogar em bom nível por mais dois anos, pelo menos. Mas ele quer parar. Quer mais tempo para a família e para si próprio. Ele, porém, tem medo de estar tomando a decisão errada. Não sabe se está preparado para parar. Não sabe se algum dia estará. Por isso terá um fim de ano de reflexões importantes e inevitavelmente inconclusas. 


(Foto: Ricardo Nogueira)

Para Zé Maurício, o fim de ano será de pura preocupação e tristeza. Foi dispensado pelo clube que defendeu por três anos e, até agora, ninguém demonstrou interesse em contratá-lo. Seu empresário – isto não é segredo para ninguém – está muito mais preocupado em resolver a vida de outros quatro ou cinco jogadores antes da dele. Ele não se engana: nunca foi e nunca será um craque; é um volante que muitos consideram apenas um quebrador de bola. Ele já aprendeu: não cabem ilusões quanto a isso – e, de resto, nem quanto a qualquer outra coisa nesta vida.


Hélio está feliz da vida neste fim de ano. Tem 19 anos e sabe que vai passar a fazer parte do grupo principal no ano que vem. Tanta dificuldade, tanta solidão longe de casa, tantos sacrifícios, mas ele chegou lá, e por isso está feliz neste fim de ano. Levou camisas do clube para o pai, para os irmãos e para os primos. Levou para a mãe um vestido fino e três pares de sapato comprados numa loja cara de shopping center. Hélio está onde sempre quis e não passa por sua cabeça que possa existir neste momento, neste mundo de meu Deus, alguém, uma pessoa sequer, que não esteja como ele está: feliz.

A IRMANDADE DO RÁDIO

por Claudio Lovato


Isto começou a acontecer há muito tempo e continua até hoje.

São quatro amigos que moram em uma pequena cidade do interior. Uma cidade cercada de morros, quente como uma fornalha no verão, fria como uma geleira no inverno.

Uma cidade pequena que tem um clube de futebol que fez e continua fazendo estragos e história entre os grandes.

Em todos os dias de jogo, os quatro amigos – Renê, Lauro, Francisco e Cléber – se reúnem no bar do primeiro para ouvir pelo rádio a transmissão do jogo daquele time que é do coração de todos eles.

Só os quatro – porque quando é dia de jogo Renê fecha as portas do bar, e ninguém ousa bater; todo mundo sabe que em dia de jogo o Renê fecha a birosca.

As narrações. É tudo por causa delas.

Renê, Lauro, Francisco e Cléber só ouvem os jogos com a narração feita por uma certa pessoa, numa estação que só eles conhecem.

O narrador é Jairo, Jairão, irmão deles todos.

Tudo por causa das narrações do Jairão.

Tentando explicar: as narrações do Jairão são capazes de transportar o ouvinte não apenas para dentro do estádio, mas para dentro do próprio campo de jogo.

Fazem o ouvinte escutar o jogo de pé, de tanta vibração que aquela voz é capaz de transmitir; aquela voz é adrenalina e paixão puras e concentradas.

Tentando explicar: as narrações do Jairão misturam descrição técnica minuciosa com poesia delirante; leitura tática precisa com a fantasia mais viajante.

Levam o ouvinte para um outro estágio da experiência de acompanhar o jogo pelo rádio; fazem o ouvinte viver uma experiência transcendental, mística, religiosa.


As narrações do Jairão são aquilo a que se chegou de mais perfeito em termos de manifestação física do amor pelo futebol.

E lá estão eles de novo, os quatro, nesta quarta-feira à noite de chuva, vento e frio, sentados em torno da mesa que fica no meio do boteco, tomando suas cervejas e suas pingas, fumando seus cigarros, olhos marejados, sempre marejados, como velhos marujos à deriva, ainda assim felizes por estarem no lugar ao qual pertencem mais do que a qualquer outro.

Estaria tudo isso dentro de uma certa normalidade se não fosse um fato que tornaria tudo incompreensível e inaceitável e inacreditável e bizarro para os que dele tivessem conhecimento fora daquele grupo de amigos-irmãos; o fato que tornou tudo mais triste na vida deles, mas que, ao mesmo tempo, deu origem a essa celebração que acontece em cada dia de jogo do time e que os fez enxergar a vida (e a morte) de uma nova forma, de um jeito que não conseguem explicar – nem querem.

Não, Jairão não está mais entre eles. Sim, Jairão sempre esteve entre eles, e continua e sempre estará, a cada novo jogo nessa estação de rádio que só eles conhecem e que se encarrega de mantê-los unidos, aconteça o que acontecer.

O TEMPO, O ÍDOLO E O ESCUDO

por Claudio Lovato


Em 1983 eu estava no Olímpico com o meu velho e um dos meus irmãos mais novos. Um baita frio. Julho em Porto Alegre, quinta-feira à noite. Um a um com o Peñarol, jogo encardido, peleado, até que o nosso louco genial, o cara da camisa 7, deu o balão mais improvável de todos os tempos para dentro da área dos uruguaios, César voou, meteu a cabeça na bola e então estava decretado o nosso primeiro título da Libertadores. Em 1983 eu tinha 18 anos.

Neste 29 de novembro de 2017, dia em que conquistamos a nossa terceira Libertadores, lá estava ele de novo, o louco genial, o rebelde nascido em Guaporé. Em Lanús, na Argentina. Agora na beira do campo, como técnico.

O primeiro brasileiro a conquistar a Libertadores como jogador e como treinador – e pelo mesmo clube.

Marcelo Bielsa disse que o futebol pode prescindir de tudo, menos do escudo. Porque o escudo é o que emociona.

O escudo é o que nos identifica entre os nossos. O escudo é aquilo que somos.

Caras como Renato ajudam a tornar o escudo indestrutível.

Na quarta-feira, assisti à final com amigos e com os Borrachos de Brasília, no CTG Estância Gaúcha do Planalto, que virou uma extensão da nossa Arena aqui no Distrito Federal.

Crianças, jovens, gente de meia-idade, idosos. Todos por um escudo. Nossa identidade.

O tempo passou para Renato, passou para mim, passou para todos nós. Ou talvez seja mesmo como alguém já escreveu: “Não é o tempo que passa, somos nós que passamos por ele”.O jeito que passamos é o que conta.

Valeu, Portaluppi.


Obrigado pelo que fizeste pelo nosso escudo. Obrigado pelo que fizeste por todos nós, portanto. Tu e essa gurizada que está sob o teu comando – do garoto Arthur, craque pronto aos 21 anos, ao garoto-vovô Léo Moura, quase quarentão. 

Mas vamos em frente, que a vida segue. Na semana que vem já tem Emirados Árabes e lá enfrentarás aquele que provavelmente será o desafio mais extraordinário da tua vitoriosa carreira. E tu sabes bem o que significará para nós a superação dele.

FRAGMENTOS

por Claudio Lovato


Você já ouviu a expressão “a vida inteira de repente passou como um filme…” Claro que já.

Só que com ele não foi bem assim. Não foi como um filme. Acho que nunca é.

Foram fragmentos.

O sorriso do pai cada vez que ele contava o que fez no jogo, e os conselhos do pai, e depois a morte do pai, para nunca mais, a devastadora e insolúvel morte do pai.

E a saída casa aos 16 anos, e o drama da mãe arrumando a mala dele, e a cama no quarto do alojamento sob a arquibancada do velho estádio. Quanta solidão e quanta expectativa e quanto desamparo e quanta saudade cabem numa cama de alojamento debaixo de uma arquibancada de estádio velho?

E a primeira vez em que ele e ela saíram juntos, e o primeiro filho, que viria exatos dois anos e três meses depois, e as mudanças, e as trocas de cidade, e o primeiro clube grande, e a interminável paciência dela com ele, a força dela, a presença dela, firme e forte, sempre.

E o telefonema do irmão mais velho, uma despedida que ele só foi entender que era uma despedida quando já era tarde demais para dizer a ele tudo o que queria dizer, e nunca conseguiu.

E a filha que veio num momento em que ele achava que a vida não valia mais grande coisa, quanto engano; quanta vida aquela criança lhe trouxe.

Fragmentos.

Em um segundo? Dois? Três? Não dá para dizer, não dá para contar, porque não é como um filme. Não é assim. Pelo menos não para ele, aqui, agora, com a bola colocada na marca do pênalti, com o goleiro batendo palmas diante dele, gritando que ele vai se foder, só vai, que essa bola é dele, do goleiro.

E os dedos amarelos do avô, e o sorriso amarelo do avô, e as palavras de encorajamento do avô, uma forma completa e irretocável que Deus arranjou para lhe explicar, cedo na vida, o que era amor, mas que ele só foi entender mais tarde, bem mais tarde.

E o filho, e a filha, e a mulher, sua família agora, a forma como Deus, ou que nome se queira dar, encontrou para lhe dizer que ele – pai, marido, jogador, ser humano – era importante do jeito mais completo e perfeito que alguém pode ser: dando felicidade a outros.  

E então o árbitro apita, e há um silêncio que só ele consegue ouvir no estádio lotado, e é a última chance que aquele time tem de conseguir ganhar o primeiro título nacional que disputa em sua longa existência, e então ele respira fundo e esvazia os pulmões e puxa o ar outra vez e corre para a bola sem soltar o ar e bate nela do jeito que tinha que fazer, exatamente como havia se proposto a fazer, e o resultado daquele chute é exatamente aquele que eu e você queríamos (queremos), porque não se pode admitir outra maneira de este novo fragmento chegar ao fim – e se eternizar.

O HORROR

por Claudio Lovato

O homem de terno escuro recolhe a sacola passada por cima da mesa pelo outro homem de terno escuro. A sacola está aberta e ele olha para dentro dela.

– Pode contar, fique à vontade – diz o sujeito que entregou a sacola.

– Confio em você – ele responde.

Ficam em silêncio por um tempo.

– Você está fazendo a coisa certa. Você tem que se remunerar, caramba! Olha a idade chegando, meu amigo! Eu já me remunerei, já não me devo mais nada! – diz o cara que entregou a sacola.

Disse isso, riu e então prosseguiu:

– O ginásio vai sair de qualquer jeito. A criançada não vai ficar sem ter onde jogar bola. E com atividades o dia inteiro! Educação física, futebol, o escambau! Pode ser que demore um pouquinho mais, porque agora o contrato vai ganhar uns aditivos, só isso.

Ele se levanta e sai, carregando uma sacola cheia e uma consciência vazia.


****

Um menino salta sobre o esgoto que corre a céu aberto. Pés descalços, e a bola debaixo do braço. O vira-lata vem atrás, correndo e saltando, latindo para o mundo inteiro ouvir. Lá no terreno de terra batida, uma boa parte da garotada do time já está à espera dele. O helicóptero passa perto. Dá para ver o cara com o fuzil na porta. Começam a bater bola, mas aí aparece a mãe de um deles, chamando o seu menino para dentro de casa e dizendo aos outros para irem embora, já para casa.

****

O homem entra em sua sala, tranca a porta, abre o armário, tira dali uma pasta de nylon preta e a coloca sobre a mesa, junto com a sacola. Transfere uma parte do conteúdo da sacola para a pasta e fecha as duas. Coloca a sacola no armário e passa chave. A pasta ele coloca no chão, ao lado da mesa. Senta e espera. Em menos de meia hora um homem aparecerá para pegar a pasta preta de nylon, igualzinha a que estará carregando quando chegar. Uma troca. Assim é.

****


Lá na comunidade, o menino assiste desenho animado dentro da sala minúscula. Está sentado no sofá com os dois pés sobre a bola, e o cachorro ao lado, olhando para ele. O som das hélices do helicóptero continua, agora com a companhia dos tiros, que o menino há muito tempo aprendeu a identificar. A mãe foi trabalhar, com o coração na mão, por causa do seu menino. Ela não pode deixar de ir trabalhar e a escola dele é à tarde. As manhãs às vezes são um inferno.

****

Depois de entregar a pasta de nylon preta ao homem de barba que acaba de sair apressado do escritório, deixando a pasta vazia e dizendo que tinha voltar logo para a repartição, ele tecla o número de casa. A esposa atende. Ele diz que não vai almoçar. Muitos compromissos hoje. A mulher diz “até a noite” e “te cuida, meu bem, te amo” e desliga. Em seguida, avisa a empregada que o patrão não virá para o almoço e que ela pode fazer apenas uma saladinha simples e um peito de frango grelhado, e a empregada diz “sim senhora” e pensa no seu menino, sozinho, dentro da casa alugada que Deus, amém, amém!, vai proteger de todos os males que os homens, de um jeito ou de outro, podem cometer e então, da cozinha, ela ouve a vinheta do plantão de jornalismo da emissora de TV e a patroa dizendo “que horror, meu Deus, esta cidade está perdida, nem criança escapa mais, que horror, minha nossa”, e, lá na cozinha, ouvindo a patroa dizer aquilo, lavando as folhas de alface americana, ela sente o coração parar de bater, mais uma vez.