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Claudio Lovato

“SETE A UM”

por Claudio Lovato 


Se é para encarar nossos fantasmas, então, por favor, que jamais nos falte a literatura!

Os traumas estão aí para nos ensinar, nos aporrinhar e ser expiados, e, em relação a esta última parte, poucas coisas são mais necessárias que a arte e o ofício dos escritores, tornados tangíveis nas páginas dos livros.

No dia 8 de julho de 2014, no Mineirão, ocorreu aquilo que muitos brasileiros, até hoje, recusam-se a aceitar como tendo de fato ocorrido – o que não funciona, em hipótese alguma, como expiação; é apenas negação, de resto muito compreensível, diga-se.

No livro “Sete a Um”, recém-lançado em parceria pelas editoras Cousa, de Vitória, e Dália Negra, de Salvador, sete escritores brasileiros tentam processar, por meio de seus contos, o que aconteceu naquela semifinal apocalíptica. É um time de craques da nossa literatura – Carlos Barbosa, Claudia Tajes, Elieser Cesar, Lima Trindade, Luís Pimentel, Marcus Borgón e Mayrant Gallo –, ladeados por dois representantes do país que foi o nosso algoz naquele acontecimento trágico de Belo Horizonte: Hans-Ulrich Treichel, que nos oferece um conto magistral intitulado “Foucault, Freud, Futebol”, e Dagrun Hintze, responsável por um brinde muito especial: um ensaio sobre a relação de homens e mulheres com o futebol.


Esses escritores-boleiros desfilam seu talento sob a batuta de uma comissão técnica de tirar o chapéu: os organizadores Lidiane Nunes e Tom Correia, o tradutor Erlon José Paschoal, o artista plástico Marcelo Frazão, criador da belíssima capa, e o editor Saulo Ribeiro.

“Sete a Um” é, essencialmente, uma declaração de amor ao futebol. E também uma tentativa – fonte de grande prazer para nós, leitores, e, portanto, bem-sucedida – de jogar a luz das belas letras sobre um evento fatídico, sem dúvida, mas que nos deixou mais fortes. Como toda a ferida, como todo o trauma, como todo o apocalipse.  

 

    

FECHADO POR MOTIVO DE FUTEBOL

por Claudio Lovato


Em 1995, o escritor uruguaio Eduardo Galeano (1940- 2015) lançou o clássico “Futebol ao sol e à sombra”, um livro cuja presença é essencial na mesa de cabeceira de todos os interessados em compreender a importância do futebol nas sociedades mundo afora. Mas antes e depois dessa obra magistral, Galeano produziu muitos textos sobre futebol, publicados de forma esparsa em outros livros seus, em jornais e revistas. Esses escritos, e mais a íntegra de uma entrevista concedida à revista argentina “El Gráfico”, um prefácio e dois discursos, foram reunidos no livro “Fechado por motivo de futebol” (editora L&PM, 2018, 228 páginas). Fruto de um extraordinário trabalho coordenado pelo editor argentino Carlos E. Díaz, esse resgate de uma parte valiosíssima (inestimável) da literatura de Eduardo Galeano incluiu contribuições de Helena Villagra, companheira de Galeano durante 40 anos, e de Ezequiel Fernández Moores e Daniel Winberg, amigos com quem o escritor compartilhou projetos e a profunda paixão pelo universo da bola. O título do livro refere-se ao fato de que, no começo de cada Copa do Mundo e ao longo do mês inteiro, Galeano pendurava na porta de sua, em Montevidéu, um pequeno cartaz com o aviso “Cerrado por fútbol”. Palavras de Galeano: “Quando retirei [o cartaz], um mês depois, eu já havia jogado 64 jogos, de cerveja na mão, sem me mover da minha poltrona preferida”.

Uma amostra do que se encontra no livro:

Papai vai ao estádio

Em Sevilha, durante um jogo de futebol, Sixto Martínez comenta comigo:

– Aqui existe um torcedor fanático que sempre traz o pai.

– Claro, é natural – digo. – Pai boleiro, filho boleiro.

Sixto tira os óculos, crava o olhar em mim:

– Este de quem estou falando vem com o pai morto.

E deixa as pálpebras caírem:

– Foi seu último desejo.

Domingo após domingo, o filho traz as cinzas do autor de seus dias e as põe sentadas ao seu lado na arquibancada.

O falecido tinha pedido:

– Me leva para ver o Betis da minha alma.

Às vezes o pai ia até o estádio numa garrafa de vidro.

Mas numa tarde os porteiros impediram a entrada da garrafa, proibida graças à violência nos estádios.

E a partir daquela tarde, o pai vai numa garrafa de papelão plastificado.

TITE, RINUS MICHELS E LUAN

por Claudio Lovato


A se confirmar a informação de que Tite não levará Luan para a Copa da Rússia sob o argumento de que o jogador do Grêmio não tem posição definida em campo, e que por isso seria difícil encaixá-lo no time, estaremos diante de um descalabro.

Fico imaginando – vício de ficcionista, me perdoe – um papo entre o Tite e o Rinus Michels, com o brasileiro tentando explicar ao técnico da grande Holanda de 1974 (cuja morte está completando 13 anos neste mês de março) o porquê de não levar Luan para a Copa de 2018:

– Rinus, não dá para saber onde ele joga! Ele joga pelo meio? Pela esquerda? Pela direita? É armador? É atacante? Pô, não dá!

– Mas isso não é bom, Tite? Isso não dificulta a marcação para o adversário? Os caras não ficam desesperados procurando por ele em campo e quando se dão conta ele está colocando um companheiro em condições de finalizar? Foi o que eu ouvi.


– É, pode ser, mas isso pode confundir os companheiros também!

– Bom, e me perdoe pelo que vou dizer agora, mas aí é que entra a mão do treinador. Eu tive sob meu comando uns caras que também não guardavam posição e, olhe, acho que dá para dizer que provocamos algumas dores de cabeça em nossos oponentes.

– Mas temos que encaixar as peças direitinho, Rinus! Organização é tudo! Você sabe disso!

– Eu sei. Organizei o time de pelada mais bacana de todos os tempos.

– Então?!

– Mas não seja tão certinho, amigo!

– Cada jogador tem que saber onde jogar e cumprir à risca o combinado. Senão, a engrenagem não funciona. Até o Neymar sabe que tem que ficar no quadrado dele!

– Engrenagem. Por isso é que eu ficava contrariado, para não dizer outra coisa, quando nos chamavam de Laranja Mecânica”.

– O coletivo acima do individual, Rinus!

– Você está dizendo isso para mim?

– Me desculpe, não quero parecer presunçoso.


– Tite, me diz uma coisa, com sinceridade e humildade: você ainda não conseguiu entender o futebol do garoto, é ou não é?

– Claro que entendi! Só não vejo como colocar ele no time!

– Não, amigo, então você não entendeu.

– A ideia de time! A inexorabilidade da supremacia do conceito de coletividade!

– O que faz o todo é a soma das partes. E quanto melhores as partes que você tiver em mãos, melhor. Organize-as e depois dê o máximo de liberdade para que rendam tudo o que podem.

– O futebol de hoje não permite essas coisas, Rinus! Por favor!

– Pelo contrário! O futebol de hoje exige exatamente isso, talvez como nunca antes! Disciplina tática com liberdade para os jogadores! Ocupação de todo o campo, troca de posição, posse de bola, e então passe, passe e passe. Pelo que sei, esse rapaz do Grêmio se dá muito bem num esquema assim.

– É assim que já jogamos na Seleção!

– Mas pode ficar muito melhor. Pode ficar mais complicado para o adversário!

– Não sei se é necessário.

– Você é quem decide. Mas se eu posso pedir alguma coisa, é isto: considere levar o garoto pelo menos entre os 23.

– OK, vou considerar, Rinus.


– Sucesso para o Brasil lá na Rússia. Você tem ótimos jogadores. Mas talvez precise de alguém para bagunçar o coreto de vez em quando.

– Vou pensar, Rinus, vou pensar…

– Boa sorte. Abraço.

– Outro. Ah, sim, antes que eu me esqueça: o que o Cruyff acha disso?

– Melhor eu nem lhe dizer, Tite.

HERDEIROS

por Claudio Lovato


Airton e Ênio Rodrigues, nos anos 50 e 60, parceria longa e vitoriosa, fundamental para que uma coleção de taças tivesse como destino o Olímpico.

Ancheta e Oberdan, juntos naquele inesquecível 1977 em que o Tricolor, sob o comando de Telê Santana, abria caminhos para conquistas além-fronteiras.

Baidek e De León, a dupla que ajudou o Grêmio a conquistar a América e o Mundo, em 1983.

Rivarola e Adilson, nos anos 90, os beques sem medo de nada naquele Grêmio que ganhou tudo.

As grandes duplas de zaga são uma parte especialmente marcante da História do Grêmio. Sempre tivemos muito orgulho dos nossos guerreiros da defesa e das duplas que eles formaram.


Em sua maioria, não por acaso, capitães. Líderes. Ídolos. Lendas.     

E então chegou a hora e a vez de Pedro Geromel e Walter Kannemann. E todos nós, gremistas, agradecemos aos deuses do futebol por esse presente.

Geromel e Kannemann, o centurião paulistano, magro como espeto, vindo da Alemanha, e o viking argentino nascido em Concepción del Uruguay que estava no México no aguardo de um chamado do destino emitido de Porto Alegre.

Pedro Geromel é um só? Parece que não, a julgar pelo fato de que está em vários lugares do campo o tempo todo, sempre no lugar certo. É invariavelmente dele o pé salvador. E, volta e meia, vai pra cima, brincar (a sério) de ponta-direita. Zagueiro craque. Bola no pé.

Walter Kanemman tem noção do que seja o perigo? Parece que não, porque jamais coloca menos que 100% de vontade em qualquer disputa de bola, por baixo ou por cima, em partidas eliminatórias ou (sic) jogos amistosos. Futebol simples, essencial, sem temores, às vezes quase suicida. Bola no pé; sim, senhor, ele sabe tratá-la muito bem – à sua maneira.   


São donos da área, têm completa sintonia entre si, exercem e compartilham liderança, são referência para os companheiros e paradigma para a torcida.

Pedro e Walter, o manto Tricolor lhes cai bem. E como vocês sabem honrá-lo!

Vocês estão dando continuidade a uma lendária linhagem de heróis.

Vocês, que se imbuíram do espírito do Grêmio, são dignos herdeiros de uma nobre estirpe.

E isso é para sempre.  

 

O PERDÃO QUE EU PEÇO

por Claudio Lovato


Gabriel García Márquez escreveu certa vez: “Quem não tiver Deus que tenha superstições”.

Puxa vida, mestre querido, não dava para ter dado uma aliviada nessa?

Não dá para ter as duas coisas, não?

Que Deus me perdoe, mas faço minhas coisinhas quando meu time entra em campo.

E também quando as coisas no jogo estão complicadas.

E principalmente para que as coisas não se compliquem demais.

E para que se resolvam quando complicarem. 

Não posso revelar que coisinhas são essas, porque o segredo é parte fundamental nesse negócio. Todo mundo sabe disso.

Gabo, mestre Gabo, por que tratar esse assunto de forma tão, digamos assim, excludente? Hein? Hein?

O João, que certamente está aí contigo, no lugar maravilhoso em que vocês merecem descansar (descansar coisa nenhuma), disse um dia: “Se superstição ganhasse jogo, o Campeonato Baiano terminaria empatado”.

O João sabia das coisas, assim como você.

Vocês bancavam os céticos, mas viviam nos emocionando com o que falavam e escreviam.

E a gente querendo posar de bacana, tentando dar pinta de que estava entendendo tudo o que vocês estavam falando e escrevendo.

Tudo isso me vem à cabeça agora porque a minha senhora disse hoje:


– Esta tua camiseta do Grêmio não dá mais pra usar! Tá até rasgada debaixo do braço!

E eu, mais que rapidamente, peguei a camiseta da mão dela e a guardei em lugar seguro e só por mim conhecido.

Essa referida camiseta… Desculpem, não posso falar mais.

Que Deus me perdoe.

Que Gabo releve.

Que João não me condene.

Essa camiseta me dá sorte.

Essa camiseta nos dá sorte.

Que assim continue.

Que assim sempre seja.

Sempre será.

Amém.