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Claudio Lovato

OBRIGADO, TARCISO!

por Claudio Lovato


Vai, Tarciso, vai descansar em paz, Flecha Negra.

Correste muito, correste demais, voaste.

E agora vais encontrar repouso no lugar de teu merecimento.

Enfrentaste tudo e superaste tudo.

Chegaste ao Grêmio numa época difícil, tempos de muitos vendavais, nos quais nós todos tivemos de ser fortes, especialmente fortes.

Persististe, sempre.

Em 1973, ano da tua chegada, eu tinha 8 anos. Desde então e por muito tempo depois, eu estava lá na arquibancada do Olímpico, te vendo em campo sempre assim: o tempo todo lutando, na vitória ou na derrota, sem jamais esmorecer, sem nunca se dar por satisfeito, correndo, voando, lutando, sendo Tarciso, sendo gremista.

Não te intimidaste com as cobranças da torcida, impaciente e ansiosa, naqueles anos 70 de poucas conquistas.


Não te amedrontaste nem mesmo com as cotoveladas assassinas que frequentemente atingiam teu rosto nos jogos contra nosso arquirrival.

O Tarciso que, com humildade, ouviu Telê e acabou formando com André e Éder um dos melhores trios de ataque que o mundo do futebol já viu.

Isso foi em 1977. Um ano depois, eu estava na Escolinha do Grêmio e então a coisa ficava séria quando os jogadores profissionais apareciam para nos ver jogar, e o Tarciso sempre aparecia, e eu sou grato à vida por momentos como aqueles. 

O Tarciso que deu início à nossa estirpe de grandes ídolos guerreiros da camisa 7.

O Tarciso que queria vencer Grenais e o Tarciso campeão do mundo.

O Tarciso injustiçado pela CBF (seria tua, a Copa de 78; seria nossa!) e o Tarciso que um dia arrancou o aplauso libertador de toda a América. 

O jogador que mais vezes vestiu a camisa do Grêmio.

O segundo maior goleador da história do clube.

O Tarciso mineiro, que veio do América do Rio e se tornou gaúcho, porto-alegrense.

Porto-alegrense, gaúcho, brasileiro, sul-americano, do mundo – como o teu Grêmio.

Tão destinado ao Grêmio que nasceu no mesmo dia em que o Tricolor foi fundado.

Salve 15 de setembro!


Em Porto Alegre, virou vereador e elegeu suas causas: a escola com turno integral e o esporte como instrumento para evitar que os jovens caiam nas garras do crime.

Nas minhas definições de “herói”, tu serás sempre muito mais que um verbete; serás personificação e exemplo.

Correste muito, voaste. Fizeste muita gente feliz.

Fizeste muita gente entender que persistir é questão crucial – no futebol e na vida.

Obrigado por tudo, José Tarciso de Souza.

Flecha Negra.

Tarciso.

MATURIDADE

por Claudio Lovato


O menino estava sentado entre o pai e o tio. Dois irmãos em guerra no estádio quase lotado.

O menino chegou a achar que eles não viriam juntos para o jogo, temeu que eles desistissem, o que faria com que ele tivesse que se contentar em assistir à partida pela TV.

O pai e o tio gritaram um com o outro, em pleno almoço de domingo, na frente do vô e da vó.

O pai e o tio brigaram por causa de política.

Apoiam candidatos diferentes a presidente da República. Aliás, completamente diferentes.

O pai disse que o tio era um “babaca reacionário”.

O tio chamou o pai de “comunista demente”.

A mãe e a tia do menino repreenderam os maridos. Elas repetiam o nome deles.  

O pai falou que o tio era um “direitão baba-ovo de milico”.

O tio não gostou nada dessa e xingou o pai de “bundão metido a intelectual”.

Foi quando o vô, que nunca batia na mesa, nunca gritava e nunca dizia palavrão, bateu na mesa, gritou e disse palavrão: “Porra! Vocês parecem duas crianças!”


O menino nunca tinha visto o vô irritado daquele jeito.

O pai e o tio ficaram quietos, mas parecia que iam saltar por cima da mesa e sair no tapa a qualquer instante.

A vó se levantou e foi para o quarto. Todos viram que ela tinha começado a chorar. A mãe e a tia do menino foram atrás dela. Antes, a tia disse:

– Estão satisfeitos?

A vó não era de chorar. A vó era mais do tipo “braba”. O menino estava surpreso.

Então, não deu outra.

A vó voltou do quarto com as duas noras atrás dela, chegou ao lado do pai do menino e o segurou pela orelha.

– Levanta! – ela mandou.

Ele resmungou, mas obedeceu. Ela fez a volta na mesa, com o pai do menino de arrasto, e agarrou a orelha do tio, que tentou escapar do “alicate”, mas não conseguiu.

A vó rebocou os dois para a área de serviço, e o que ela disse lá só os três sabem.

Agora estão ali, sentados, cada um com uma orelha latejando, com o menino entre eles.

O menino diz:

– Vou ao banheiro. Querem alguma coisa do bar?

Os dois balançam a cabeça de um lado para o outro, mal-humorados, emburrados, beiçudos. 

– Já volto. Não briguem. Se comportem. Eu não demoro.

E lá se foi ele, escadaria acima, carregando nas costas todo o peso dos seus 12 anos de idade e toda a responsabilidade que lhe coube assumir.

É O MESMO CARA?

por Claudio Lovato


É o mesmo cara ou não é?

Claro que sim.

Lógico que não.

Sim, senhor.

Não mesmo.

Foi craque, jogou na seleção, disputou Copa do Mundo, encerrou a carreira há trinta anos.

E, agora, cabelo grisalho, sobrepeso, marcas do tempo espalhadas pelo rosto.

É o mesmo cara ou não é?

Só é.

De jeito nenhum.

O sorriso de quem fez tudo o que havia para fazer na condição de ídolo de várias torcidas, os gestos que já não guardam tanta energia, as palavras de poucas ênfases.

Mas o olhar.

É o mesmo cara ou não é?

Claro que é.


Dá pra sacar pelo olhar.

O olhar de quem ainda solta bombas na lembrança. (E ainda tentaria mandar algumas hoje mesmo se fosse chamado a fazê-lo.)

De quem encobre goleiros na imaginação. (Sendo que nenhum desses devaneios supera o que ele fez na realidade quando era jovem, magrinho, cabeludo e feliz proprietário de um canhão na perna esquerda.)

O olhar de quem levou exércitos de meninos a decidir ser jogadores de futebol. (Sim, ele, figura maior na galeria pessoal de cada um daqueles para os quais sempre será o mais referencial e inspirador dos mestres.)

O olhar de quem sabe que fez milhões de torcedores se sentirem fodões-soberanos-donos-do-pedaço dentro do ônibus e depois na firma na segunda-feira de manhã.

Sim, é o mesmo cara.


Sentado no sofá do apartamento de três quartos, a cerveja colocada na mesa de centro pela companheira de muito tempo, o pensamento longe, um herói temendo o esquecimento em seu descanso tão merecido quanto indesejado.

Mas o mesmo cara.

ALMOÇO EM FAMÍLIA

Ao querido mestre e amigo Arthur Monteiro (in memoriam)

por Claudio Lovato


Estão almoçando na casa que agora parece grande demais, silenciosa demais, escura demais.

Mas não hoje. Hoje resolveram que a tristeza vai ficar lá fora.

A companheira que Deus lhe apresentou sob o céu do Cerrado brasileiro, os dois filhos e suas famílias, a filha, todos muito amados.

Todos em torno da mesa.

Paulinho da Viola está cantando (porque o samba não poderia faltar):  “Eu sou assim/Quem quiser gostar de mim/Eu sou assim”.

O adeus foi há uma semana. Uma semana e um dia.

O filho mais novo relembra um caso. Todos riem. 

– Era desbocado! – diz o filho mais velho.

E também atento, astuto. Homem das redações e das ruas, eterno repórter, cronista da vida. Mestre.

Engraçado, iconoclasta. Afetuoso no sentido que mais importa: da presença, do apoio, do não deixar que um dos seus – familiar ou amigo – se sentisse sozinho.

Os quadros nas paredes da sala e da cozinha. Artista.

A netinha pergunta sobre o lugar onde ele está agora.

– Cuidando de nós. O vovô está cuidando de você! – diz a esposa. 


Na parede da sala, ao lado da porta da entrada, a bandeira do clube que ele ensinou seus filhos a amar. A bandeira tricolor.

Ele viu Oswaldo Rolla, o Foguinho, fazer os caras subirem e descerem as escadarias do Olímpico como parte da preparação física naqueles tempos em que ele, garoto, assistia aos treinos do time.

O almoço em família prossegue entre risos e lágrimas e episódios recordados.

A dor que vai arrefecendo aos poucos, a dor se transformando em algo suportável. Negociação íntima a cargo de cada um e que, ao mesmo tempo, necessita de um acordo coletivo entre todos eles para se concretizar.

O tempo como sempre se encarregará de tudo que for necessário para que a vida siga.


Paulinho da Viola agora canta assim: “Não sou eu quem me navega/Quem me navega é o mar/É ele quem me carrega/Como nem fosse levar”.

Alguém abre outra garrafa, as taças são servidas.

Há lágrimas misturadas ao vinho.

– Tá chorando por que, porra? – diz de repente o filho mais novo, imitando a voz dele, e todos riem.

Neste momento eles são isto: espera.

Pelo tempo. Pelo passar do tempo.

Pela paz trazida por um legado que é fruto direto e poderoso do amor.

TRÊS VELHOS NA COPA DO MUNDO

por Claudio Lovato


São três velhos realizando seu sonho de meninos: ir a uma Copa do Mundo em terra estrangeira.

Três velhos que se conhecem desde a infância.

Passaram juntos pela experiência dos primeiros anos de escola, dos primeiros porres, dos primeiros namoros, dos primeiros empregos, e depois foram padrinhos de casamento uns dos outros e padrinhos dos filhos uns dos outros e por último se tornaram avós emprestados dos netos uns dos outros.

Três velhos que são irmãos desde sempre e para sempre.

Agora estão juntos no país distante onde acontece a Copa do Mundo.

A saber:

Já viram, no estádio, a poucos metros do campo, a Seleção empatar uma vez e vencer três.


Já tomaram um pileque cada um, mas combinaram que só um passaria do ponto de cada vez: lugar estranho, prudência máxima.

Um deles (sem influência da birita) aceitou que colorissem sua barba de verde e amarelo.

Um se perdeu dos dois outros numa suntuosa e gigantesca estação de metrô; só se reencontraram duas horas depois.

Um deles pegou uma gripe que quase o levou para o hospital.

Outro recebeu um bilhete escrito num guardanapo, com marca de batom (a assinatura era um beijo e um número de telefone), o que reforçou sobre sua fama de eterno galã.

Outro arranjou briga com um jornaleiro e, no mesmo episódio, tomou uma dura de um policial, sem fazer a menor ideia do porquêde tudo aquilo. (E decidiu que dali em diante não confiaria mais nas traduções do Google.)

Experimentaram todas as comidas que apareceram pela frente, colocaram flores no túmulo de um soldado morto na Segunda Guerra (um deles chorou ao fazer isso) e visitaram o museu mais espetacular que tiveram a oportunidade de conhecer.

Um deles está escrevendo um diário com o relato dos principais momentos da aventura que estão vivendo.

Outro decidiu que vai voltar com a família a esse país sensacional assim que possível. (E, de preferência,na companhia dos outros dois e suas famílias; já existe um início de pacto com relação a isso.)

No jantar, depois do quarto jogo, falaram da morte.

Da proximidade da morte. Da finitude da vida. Do que tempo que lhes resta. Do que ainda gostariam de fazer.

Depois, quando a conversa já estava ficando muito pesada, falaram da alegria de poderem estar onde estão, com as pessoas com quem estão, irmãos desde sempre e para sempre.

E então se congratularam por – acordo antigo firmado entre eles – se recusarem a abandonar o menino que vive em cada um deles e que os levará pela mão para a próxima estação, para o próximo jogo e para tudo o que estiver mais adiante.