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Claudio Lovato

JOÃO FELIPE

por Claudio Lovato 

É um garoto alto e de olhos arregalados, como se estivesse em permanente estado de espanto. 

Tem 16 anos recém-completados, se chama João Felipe e neste exato instante está curvado sobre a mala aberta em cima da cama em seu pequeno quarto na casa pobre de madeira em que sempre viveu.

A mãe o observa, da porta, com os braços cruzados e uma cara de quem está vivendo uma tragédia.

O pai permanece na sala, sentado em sua poltrona, vestindo seu melhor traje, aguardando o visitante que chegará a qualquer momento.

Um carro estaciona em frente à casa. “Jurandir”, todos pensam ao mesmo tempo, sem engano.

Mais alguns instantes e há uma batida na porta, e o pai a abre e os dois homens se cumprimentam com vozes graves e empostadas, há um tom solene naquilo.

A mãe aperta o terço que usa no pescoço, depois alisa o tecido do velho vestido estampado, presente do marido num tempo em que ainda havia presentes entre eles.

O pai vem pelo corredor e chega àporta do quarto e coloca uma das mãos sobre o ombro da esposa e pigarreia.

“Tá na hora de ir”, ele diz, olhando para o filho.

João Felipe coloca na mala a sacola de supermercado com escova de dente, escova de cabelo, saboneteira, desodorante, xampu e cortador de unhas, e então a fecha. É uma mala surrada, cor de vinho, com um cinto passando em volta e uma fivela grande, uma mala usada tempos atrás pelo pai, quando ele viajava pelo interior vendendo equipamentos agrícolas e roupas e chocolates e laticínios e o que mais lhe caísse nas mãos; quando o pai ainda trabalhava de verdade.

O garoto alto e magro que tem um chute forte de canhota e um domínio de bola que impressiona a muitos veteranos observadores do futebol, coloca a mala no chão e pega o boné em cima da mesa de cabeceira.

João Felipe vai embora, vai para a capital, vai morar no estádio.

Ele olha para os pais e se sente dominado por um sentimento até então desconhecido, um sentimento que mistura alegria e tensão, entusiasmo e medo; há excitação contida e melancolia antecipada. Uma confusão.

João Felipe então agarra a alça da mala com a mão molhada de suor e vai ao encontro de “seu Jurandir”, vai ao encontro do que a vida tem para ele longe dali, em outro mundo, vai em busca do que ele imagina que terá que arrancar da vida de um jeito ou de outro e, mesmo que não saiba o quanto realmente quer isso, vai em frente, apenas vai, porque não há outra coisa a fazer, porque ele, em termos muito realistas, não tem escolha, não mais.

 

 

Esta cena – em parte – ocorreu, segundo o que me foi relatado, numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, no começo dos anos 90. De acordo com outros relatos, João Felipe foi dispensado quando ainda estava na base do clube para o qual foi levado por Jurandir. Na sequência vagou por clubes do interior do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, alguns pertencentes à segunda divisão do futebol desses estados. Hoje é dono de uma pequena loja de material de construção na cidade onde nasceu e na qual trabalham seus dois filhos – um canhoto e o outro destro, ambos com um assombroso domínio de bola.    

PARABÉNS, ZAGUEIRO

por Claudio Lovato


Entre os muitos motivos de orgulho que todo gremista tem, um dos mais cultuados se refere à linhagem de grandes duplas de zaga que defenderam o clube ao longo de sua história.

Airton “Pavilhão” Ferreira da Silva e Ênio Rodrigues formaram, nos anos 50 e 60, uma “linha maginot” que transformava o objetivo de fazer gols no Grêmio em uma missão das mais árduas. Airton foi o marcador mais difícil que Pelé teve na carreira – segundo o próprio Rei do Futebol. 

Na década de 70, Ancheta e Oberdan foram responsáveis por, entre outros feitos, liderar o Grêmio na conquista de um título de fundamental importância para o futuro do clube: o Campeonato Gaúcho de 77, que abriu caminho para tudo o que viria depois. Quando parou de jogar, em 1978, Oberdan foi sucedido por Vicente, outro beque de excelente cepa. 

Em 1981, conquistamos nosso primeiro Brasileiro, em cima do São Paulo. E lá estavam Newmar, jovem zagueiro que ganhara a posição do veterano e vitorioso Vantuir, e De León, “El Capitán”. 

Luis Eduardo e Edinho, capitão do time, craque de três Copas do Mundo, foram o central e o quarto-zagueiro do Grêmio na conquista da primeira edição da Copa do Brasil, em 1989. 

Em 1995, Adilson Batista e Rivarola deram sequência à lendária trajetória das duplas de defensores gremistas, conquistando a nossa segunda Libertadores. No fim daquele ano, ao enfrentar o Ajax (que era, acreditem, a Seleção da Holanda acrescida do genial finlandês Litmanen), o Tricolor de  Porto Alegre e do Mundo perdeu nos pênaltis a final do Interclubes, no Japão. Em 1996, ano do nosso bi-Brasileiro, chegou Mauro Galvão, que ora fazia parceria com Adilsom, ora com Rivarola. 

Hoje, Pedro Geromel e Walter Kannemann se encarregam de deixar claro que a saga das grandes duplas gremistas continua a todo vapor, firme e forte. Geromito e o Viking.  Falando em motivo de orgulho…

Todos eles heróis tricolores.

Então alguém pode se perguntar: mas esse cara não vai falar da primeira Libertadores e, principalmente, do Mundial, em 83?

Ficou para o fim, porque é nessa hora que entra em cena, nesta bela onda de recordações e homenagens, o nome de Jorge Baidek, aniversariante deste 16 de abril.

Nas batalhas de La Plata, Montevidéu, Porto Alegre e Tóquio, e nas outras antes destas, naquele épico e transcendental ano de 1983, era ele quem estava lá, ao lado de Hugo de León, defendendo o Grêmio com uma devoção e uma coragem que só os grandes guerreiros têm.

Prata da casa gremista, ele jogou na base entre 1977 e 80, subiu para os profissionais em 81 e ficou no clube até 90, quando foi para Portugal, onde teve passagem pelo Belenenses. Encerrou a carreira em 95, ano em que jogou no Madureira e, por fim, no CSA.

Jorge Baidek, nascido em 16 de abril de 1960 na cidade de Barão do Cotegipe, no norte do Rio Grande Sul, está de aniversário. São seis décadas de vida completadas hoje. Parabéns, zagueiro! Tudo de bom. Muita saúde e muitas alegrias ao lado dos teus! A nação gremista te agradece por tudo o que deixaste em campo por nós, e por tudo o que dele trouxeste para nós.

O PRESENTE

por Claudio Lovato


“Quase que não consigo!”, ele diz para si mesmo, esbaforido, num sussurro de alívio, de pé no metrô, a caminho de casa. “Caraca”.

Véspera de Natal, quatro e meia da tarde, e só agora ele conseguiu tomar o caminho de casa. 

A saída apressada da seguradora em que trabalha como auxiliar administrativo. A ida de ônibus para o estádio, para a loja do clube – porque a compra tinha de ser feita lá, na loja do estádio. 

Compra parcelada em seis vezes no cartão de crédito que ele vinha cuidando de manter rigorosamente em dia desde setembro. 

Do estádio para o metrô, que chacoalha. Ele se preocupa com a sacola que tem o distintivo do clube em tamanho grande, quase gigante; cuida para que ninguém, na aglomeração do trem lotado, amasse ou rasgue ou suje aquela embalagem que, por si só, já significa muito, já é praticamente o presente.

O metrô chega à estação de todo o final de dia, e ele, saindo do vagão, olha para dentro da sacola, para checar se o conteúdo ainda está ali. (E se não estivesse? Não, ele não consegue nem por um segundo pensar nessa hipótese.) 

Na praça, a duas quadras de casa, ele sente que conseguiu, sente uma inédita onda de euforia que faz com que tenha vontade de sorrir e apressar o passo, correr.

Agora ele está quase correndo mesmo, a sacola com o distintivo do clube bem segura na mão direita, e, quando vira a esquina e vê que o menino está na porta da casa, tenta se controlar, tenta aparentar o pai que é, ou o pai que imagina ser, e então reduz a velocidade e contém o sorriso e respira fundo, mas é tudo muito forte, um fluxo de emoção potente demais, de maneira que só o que ele consegue fazer quando chega diante do menino, a menos de um metro dele, é dizer “toma, é o teu presente”, e o menino abre a sacola e de dentro dela tira uma camisa oficial do clube, o clube que aprendeu a amar indo ao estádio e vendo jogos na TV com aquele homem que está ali à sua frente, seu pai. E é nesse exato momento que, lá dentro da casa, assistindo a tudo, uma mulher – esposa, mãe – sente uma onda de profundo amor que é maior do que tudo que já sentiu na vida.

UM JOGO QUE AINDA NÃO TERMINOU

por Claudio Lovato


O velho repórter chegou à casa do ex-craque exatamente na hora marcada. Abriu o portão de dobradiças enferrujadas, percorreu o caminho de brita e cascalho que levava até a porta e tocou a campainha. Nada. Bateu de novo. Nada. 

“Não vai adiantar o senhor bater”, disse uma mulher, escorada no portão, com um cigarro entre os dedos da mão direita. “Ele foi embora ontem”.

O velho repórter fez o caminho de volta até o portão.

“A senhora sabe para onde ele foi? Ele disse alguma coisa?”

“Disse que estava indo para um lugar onde lhe deixariam morrer em paz”.

Depois de quase um ano de investigação, o velho repórterconseguira localizar o ex-craque. Sete cidades, quatro estados. Gastando suas economias.  Contando com a interminável compreensão (e o sacrifício) da esposa. E agora isso. 

“Ele não disse mais nada?”

A mulher jogou a bagana no meio-fio, afastou da testa uma mecha de cabelo grisalho e disse:

“O senhor é o jornalista, não é? O que está escrevendo um livro…”

“Sou”.

“Ele me falou do senhor. Disse que só aceitou conversar porque o senhor tem respeito por ele e pelos companheiros dele”.

“Pois é, mas apesar disso não cumpriu o combinado comigo”, ele disse num tom pesado.  

“Venha comigo”, ela falou, e apontou o caminho.

A casa ficava a menos de uma quadra de distância. 

“O senhor não me leve a mal, mas o meu marido é acamado e…”

“Não se preocupe”.

Ela entrou no quarto e, pouco depois, voltou com uma sacola de feira. 

“Ele deixou umas roupas para o meu marido e esta fruteira para mim”.

O velho repórter olhou para as coisas que ela ia tirando da sacola.

“E isto aqui para o senhor”.

Ele viu nas mãos dela um envelope fechado com durex e o abriu ali mesmo. 

“Amigo, 

Eu lhe peço desculpas, mas não há nada que eu queira mais nesta vida que ser esquecido.

“Quando se vive de lembranças, o que se é?

“Eu e meus companheiros fomos derrotados na única oportunidade em que poderíamos sair do anonimato para encontrar, como se diz, um lugar ao sol. Queríamos muito isso, por nós, pela nossa torcida, por nossas famílias.

“Não foi covardia, não foi incapacidade. Apenas aconteceu. Perdemos. 

“Sei da sua admiração, sei do seu respeito, e por isso, no início desta carta, lhe chamei de ‘amigo’.

“Vamos deixar o passado no passado. Vai ser melhor assim.

“É um favor que lhe peço. Um pedido de amigo.

“Um abraço com estima”.

O velho repórter levantou os olhos e encontrou os da vizinha. Ela lhe ofereceu um cigarro. Ele aceitou. Ela foi até a geladeira, pegou uma cerveja e lhe entregou um copo.

“Você vai atrás dele?”, ela perguntou.

“Sim”.

“Ela tem uma irmã no Paraná. Acho que mora em Londrina… Ou em Maringá, não me lembro bem. Quando ele me contou,a gente estava tomando umas”.

Ele sorriu sem vontade. Apagou o cigarro no cinzeiro, tomou o último gole da cerveja e guardou a carta, dobrada, no bolso da camisa. 

“Diz para ele que a gente manda lembranças”, ela falou quando ele já estava na calçada.

“Pode deixar”, ele respondeu. “Vou dar o seu recado”, disse por fim, e então foi procurar um táxi que o levaria à rodoviária e à continuidade de uma busca que se tornara parte essencial de sua vida.

SOLITÁRIO

por Claudio Lovato


O técnico de futebol é um solitário, meu padrinho Ivan Miguel sempre dizia. Ele nunca foi técnico, nunca foi jogador. Meu padrinho Ivan Miguel era contador. Um torcedor de arquibancada.

Estou pensando nisso agora, nas palavras do meu padrinho, porque fiquei sabendo pelo Altair, meu auxiliar, que por sua vez ficou sabendo pelo Cidão, preparador de goleiros, que alguns jogadores estão querendo me derrubar. O Richard e o Neozinho estão liderando a coisa. 

O Richard é o meu jogador mais experiente, já disputou duas Copas, botei ele na reserva. O Neozinho, bom, este é o que se pode chamar de traíra. Eu o trouxe lá do fim do mundo, de um clube que, na melhor das hipóteses, vai ficar lutando eternamente para se manter na terceira divisão nacional. Trouxe o cara para cá, há mais de dois anos, o garoto foi recebido como um reizinho por minha causa, deram a ele todas as condições de mostrar o futebol que tem, e agora está aí, querendo me passar a rasteira. Quantas vezes o moleque veio me abraçar na beira do campo depois de fazer um gol… O pessoal aqui do clube, de sacanagem, dizia que ela era meu filho.

Mas o técnico de futebol é um solitário, como dizia o meu padrinho Ivan Miguel. E olhe que ele nunca entrou num vestiário, nunca ouviu uma preleção, nem esteve em concentração. Não tem jeito, eu sei: quando os jogadores querem derrubar o técnico, eles derrubam mesmo. É só questão de tempo. Estou sabendo que tem jogador que até gosta de mim, que não vê problema na minha permanência, mas estes, como sempre acontece quando o movimento está encorpado, quando o processo é comandado pelos caras certos, os que têm a tal da “ascendência sobre o grupo”, calam o bico, fingem que não é com eles, se fazem de mortos e consentem com tudo.

O presidente é um covarde que quer me demitir faz tempo. Só estou aqui até agora porque o diretor de futebol, responsável pela minha vinda para o clube, conseguiu segurar as pontas. Esse diretor, que é um sujeito decente (sou suspeito para falar, claro), também acontece de ser um tremendo conhecedor do futebol, coisa que esse canalha desse presidente não é nem nunca vai ser. O diretor sabe que o time é limitado, sabe que o fato de estarmos hoje na décima quarta colocação na tabela é um pequeno milagre, porque já era para estarmos matematicamente rebaixados nessa altura do campeonato, com o time que nós temos. Mas não adianta, não tem jeito. Esse presidente quer me usar como bode expiatório, quer jogar para a torcida. Um filho-da-puta.

É a primeira vez que passo por isso. Depois de 15 anos como técnico, oito clubes, cinco estados, enfim chegou a hora. E por quê?, eu meu pergunto. Errei onde? Não sei. Nunca fui de dar tapinha nas costas de jogador, nem de assar churrasco para eles. Mas também sempre deixei claro que não gosto de bajulação, nunca menti para jogador, nunca critiquei ninguém em público. Quando um deles perde a posição, eu mesmo chamo o cara para uma conversa olho-no-olho e informo a minha decisão. O jogador é o primeiro a ficar sabendo, e fica sabendo por mim, o treinador. Assumo os meus erros, não jogo a culpa pelos maus resultados em ninguém, sempre fui assim, quem me conhece sabe que tudo isso é verdade.

Então é isso. Um jogador vaidoso, que viu na perda da posição um insulto pessoal, uma tentativa de humilhação, partiu para o revide. Em momento nenhum fez autocrítica. O Richard não estava jogando nada havia pelo menos um ano. Porra nenhuma. Está acima do peso, é uma caricatura do centroavante de tempos atrás, hoje não consegue nem segurar a bola lá frente quando o time precisa ganhar tempo e fôlego num jogo difícil. 

E tem o covarde que os conselheiros desse clube tradicional e de bela história elegeram para a Presidência. Esse tipo de tumor só é extirpado quando o clube é rebaixado, quando a torcida vive um momento de completa vergonha e a instituição é achincalhada por todos. Aí o cara esse vira persona non grata, fica proscrito, a foto dele nem vai para a galeria de ex-presidentes. 

Mas o que mais me magoa mesmo, no fim das contas, é o envolvimento do Neozinho nessa sacanagem contra mim. O que será que o Richard botou na cabeça dele? Puta que pariu.

Você veja. A pessoa tenta levar a vida da melhor forma, da maneira mais correta possível, trabalha direito, se aprimora, não se afasta da ética em momento nenhum, é justo com quem está embaixo, respeitoso com quem está em cima, e então aparece um mau-caráter para complicar a sua vida. 

Olha aí o telefone tocando. Para mim? Quem é? O diretor de futebol? Atendo, claro. Sujeito muito decente, me trouxe para cá, segurou as pontas até onde deu. Boa gente, é do ramo. Passo aí já – é o que eu digo quando ele pergunta se eu podia dar uma chegada na sala dele. Lógico que eu já sei qual vai ser o assunto da conversa. E como ele é um sujeito direito, e como sempre me tratou com respeito e até com admiração, eu vou facilitar a coisa para ele, vou chegar dizendo logo que já sei do que se trata, que ele não precisa se preocupar, que eu já estava preparado, que foi um prazer ter trabalhado com ele etc e tal. E, depois disso, talvez me aposentar seja a única coisa sensata que me reste fazer. 

Mas talvez não seja nada disso. Pode ser que eu chegue lá e ele me diga que convenceu o presidente a afastar o Richard e o Neozinho do grupo e me manter no cargo. Vou caminhando do vestiário à sala da Diretoria de Futebol pensando nisso. E uma nesga de esperança se abre no meu peito. É porque, além de solitário, todo técnico de futebol, no fundo, é um otimista, mas isso não foi o meu padrinho Ivan Miguel quem disse.