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Claudio Lovato

O TERÇO

por Claudio Lovato


“Toma, filho”, ela me disse. “Comprei na Catedral de La Plata”. 

Era um terço de madeira. 

“Madrinha…”, eu comecei a falar, mas ela me interrompeu com suavidade: 

“É só usar, meu filho. Não precisa acreditar”. 

Coloquei o terço no pescoço, como se fosse um colar, e, por causa da gola folgada da camiseta, boa parte dele ficou exposta. Eu estava atendendo a um pedido dela e isso era o mais importante. 

“Obrigado, madrinha”.

Ela me olhou daquele jeito doce. 

“Não desanima, não, meu filho. Tá bom?” 

Fiquei olhando para ela sem dizer nada. 

“De uma hora para outra, as coisas mudam. A vida é assim”, ela disse. 

Eu sorri e abaixei a cabeça. 

“Usa o terço, filho. Usa ele sempre. Tá bom?” 

Quando estávamos nos despedindo, na varanda da velha casa de alvenaria, ela segurou uma das minhas mãos entre as dela.

“Eu e o seu padrinho estamos com você. Eu, aqui. O seu padrinho, lá em cima”. 

“Eu sei disso, madrinha”. 

“Vai com Deus, filho”. 

Eu nunca soube como responder a isso. Eu sabia que o mais comum seria dizer “E a senhora fique com Deus também”, algo desse tipo, mas eu não conseguia.

“Qualquer coisa, me liga, madrinha”, eu disse, e comecei a andar em direção ao portão de ferro que fazia parte da coleção de imagens da minha infância e adolescência. Fechei-o atrás de mim e comecei a caminhar em direção à parada de ônibus. 

Estou sem clube há quatro meses. Parado. Só academia, corrida na praia e a pelada com os amigos. Porra, não fosse a pelada com a gelara acho que eu já teria ficado maluco!

O pessoal me dá muita força. Quase todos são meus amigos de infância. Ninguém fica me perguntando o tempo todo se apareceu algum clube interessado, se eu estou falando com as “pessoas certas”, essas coisas. Eles não querem aumentar a pressão em cima de mim. Sabem que a hora da pelada é o meu momento de maior prazer e não querem estragar isso. Meus irmãos.

Hoje é dia. Segunda-feira. A bola começa a rolar às 8 da noite, mas o pessoal chega às sete, sete e pouco, para a resenha. É quando eu consigo melhorar o meu astral. 

Estar parado há quatro meses é ruim demais, mas pior é a falta de perspectiva. Eu era goleiro de um time da segunda divisão estadual. Fui bem no último campeonato, nosso time quase subiu, dois dos quatro grandes clubes do estado se interessaram por mim. Eu já estava no céu, me imaginando naquela vida de boleiro de clube grande, mas o interesse ficou no papo, o cara que estava me ajudando a conversar com os clubes sumiu do mapa e a coisa ficou por isso mesmo, não deu em nada, e aqui estou eu. 

A turma vem, brinca comigo, vamos todos para o campo e a bola rola. Nesta noite estou muito a fim de jogo e pego tudo, e olha que tem gente boa nas nossas peladas, caras que jogam mais do que muito profissional por aí. Fecho o gol. Não levo nem unzinho. 

Ainda no campo, percebo que tem uns caras diferentes lá no bar. São três, todos de calça jeans e blazer, e ao menos dois deles estão sempre no celular ao mesmo tempo. Vejo que eles estão olhando em minha direção. Finjo que não é comigo. 

Quando o jogo termina fico para trás, sou o último a sair do campo. Então não há mais dúvida, o negócio é comigo mesmo, os três sujeitos começam a andar em minha direção. Eu ainda estou pisando na grama quando um deles sorri e diz meu nome. Eu paro. Os três vêm em minha direção, falam o nome do clube em que trabalham, meu coração dispara, depois paralisa, então dispara de novo. Eles me perguntam se eu topo ir jantar com eles, para tratar de um assunto que pode me interessar. O cara diz assim mesmo: “Um assunto que pode te interessar. A gente espera que te interesse!” Eu digo que tudo bem, que vou jantar com eles, peço apenas um tempinho para tomar uma chuveirada. 

No caminho para o vestiário, minha mão procura o terço que a madrinha me deu. Tateio por cima da camisa e o localizo, a cruz bem no meio do meu peito. Eu penso na madrinha e também no meu padrinho, que foi, para mim, muito mais que um pai. Agradeço a eles e sinto vontade chorar, mas me controlo. Decido não olhar para a rapaziada, porque sei que, a esta altura, todo mundo está de olho em mim, quase explodindo de alegria por minha causa. Meus irmãos. 

Eu aperto o terço por cima da camiseta suada e entro no vestiário. 

E me dou conta do quanto realmente quero que as coisas deem certo.

DOIS GOLAÇOS DE ESCRITORES

por Claudio Lovato

PÊNALTI PERDIDO


Hemingway dizia que o escritor devia escrever sobre aquilo que conhece. Marcus Borgón, em seu livro de estreia, “Pênalti Perdido”, lançado no começo deste ano pela P55 Edições, escolheu como tema o futebol porque entende de futebol num sentido bastante amplo e profundo. A aparente singeleza da história do menino Marcelo e seus camaradas cativa o leitor e o coloca, de repente, diante de assuntos essenciais como a capacidade de enfrentar dificuldades, viver mudanças, sobreviver aos próprios fracassos e aprender com eles. Recomendo aos amigos. Marcus só precisa me explicar uma coisa: como é que um carioca, radicado desde a infância em Salvador, vira torcedor fanático da Ponte Preta? Saudações!!

 

DALI O JOCA NÃO PERDE


Nosso grande colaborador de Minas Gerais, Victor Kingma está prestes a fazer mais um gol de placa!! No dia 19 de junho, de 14h às 16h, o escritor estará na 1ª Bienal do Livro de Juiz de Fora, no Independência Trade Hotel, com o livro “Dali o Joca Não Perde”. Com o prefácio escrito pelo craque Zico, a obra conta com 100 divertidas histórias e causos do futebol!! Imperdível!!
Valeu, Victor!!

DE VOLTA

Por Cláudio Lovato Filho, de Santa Catarina

Ele estava fora havia sete anos, por força de uma transferência para o exterior determinada pela empresa de bebidas na qual ingressara como trainee. E exterior longínquo: primeiro o Vietnã, depois a Tailândia. Nas vindas ao Brasil, de férias, as viagens com a família e as visitas aos parentes sempre lhe tomavam todo o tempo. Era a primeira vez, em sete anos, que ele voltava ao campo das peladas de outrora para rever os camaradas de bola, seus companheiros de momentos pra lá de prazerosos e, com impressionante frequência, antologicamente hilários. 

Ele chegou acompanhado de Gilson Anarquista, seu antigo vizinho de prédio e responsável por sua inserção no grupo. Chegou devagarinho, mãos no bolso da bermuda. Gilson, que caminhava, rindo, às costas dele, não havia avisado o pessoal. Era uma visita surpresa.

Dalvo Marreta foi o primeiro a avistá-lo. Soltou um “não acredito!” e, no mesmo instante, Beto Cegonha já estava trotando em direção ao recém-chegado para saudá-lo com sua proverbial efusividade.


Autor do texto, Cláudio Lovato mexe na máquina Olivetti Studio 46, presente do pai

Autor do texto, Cláudio Lovato mexe na máquina Olivetti Studio 46, presente do pai

Estavam todos lá: Toni Paraquedista, Jorge Marechal, Márcio Mandrake, Juarez Viking, Fernandão Ruim de Curva, Albertinho Cara de Bebê, Cleber Verminoso e todos os outros. Eles o receberam como se ele tivesse regressado de uma guerra longa e quase perdida. Relembraram, riram, riram mais, e até jogaram bola. Ele usou as chuteiras emprestadas por Tonho Ostra, que calçava seu número e que disse que não iria jogar porque a hérnia de disco estava “perigando começar a querer incomodar, uns ‘ameaço’”. Quando alguém disse, “Pô, e logo hoje não vai ter nenhuma carninha pra gente botar no fogo!”, Gilson saiu-se com esta: “E vocês acham que o Anarquista aqui ia deixar faltar carne numa noite assim?” Depois foi até o carro e voltou com o isopor a tiracolo.

Lá pelas tantas, depois de ter batido a bolinha (não conseguiu dar sequência às jogadas, errou gol feito, cansou, riu, foi motivo de riso) e antes do churrasquinho, ele pensou: “Como eu gosto disso aqui!”, e sentiu a saudade daquele velho e pequeno prazer – a pelada com os amigos – bater sem dó nem piedade no peito.

Foram embora quando já era quase meia-noite, depois de o velho Lopes, zelador do pequeno conjunto formado pelo campo e por duas quadras, dar o ultimato, bem ao seu estilo polido e diplomático: “Chega, seus malucos! Vamos meter o pé!”

Ele foi embora sentindo-se leve como havia muito tempo não conseguia se sentir. Achou que, naquela noite, tinha rejuvenescido uns 15 anos. Abraçou um por um dos companheiros, prometeu nunca mais ficar tanto tempo sem aparecer e despareceu rua abaixo e noite adentro, ao lado de Gilson.

Foi o próprio Anarquista quem trouxe a notícia, um mês e meio depois daquela visita. Sim, o amigo estava voltando ao Brasil. Sim, sim, para a cidade deles. “Ele disse para o chefe que queria voltar”, relatou Gilson. E prosseguiu, com detalhes: “O chefe disse: ‘Rapaz, você sabe que, se voltar, vai ganhar menos. E também não posso lhe dizer que a carreira na empresa vai ser tão bonita quanto poderia ser’. E ele disse para o chefe: ‘Tudo bem’”.  Anjo Gabriel, perplexo,  quis a confirmação: “Ele disse ‘tudo bem’? Assim mesmo?” Tadeu Badulaque observou, com toda a autoridade que seus conhecimentos de geografia lhe conferiam: “Morar na Oceania não é fácil, não, rapaziada!” Moraizinho Sem Pescoço comentou: “A família não devia estar aguentando mais essa história de morar no Sudeste Asiático”, e aproveitou para dirigir a Tadeu um sorrisinho irônico.

Exatos 37 dias depois desse comunicado ao grupo, ele reapareceu para jogar. Estava de volta ao país, à cidade que amava, à pelada sagrada de todas as segundas-feiras.  Quando um dos amigos lhe perguntou se realmente achava que tinha tomado decisão certa, ele respondeu: “Uma vez ouvi um cara dizer que felicidade é se sentir completamente vivo. Eu estou feliz, amigo”.