Escolha uma Página
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Claudio Lovato

EU, O CRUZEIRO VELHO, O FUTEBOL E A SAUDADE

por Claudio Lovato


Estou morando no Cruzeiro Velho, depois de dois meses e meio alojado na Asa Norte. O Cruzeiro Velho é o “bairro dos cariocas” aqui em Brasília. É onde se instalaram quando vieram participar da construção da nova capital federal.

Para mim, gaúcho morador do Rio durante 20 anos, esse será um fator de peso para que eu logo passe a me sentir em casa.   

Eu chamo o Cruzeiro Velho de “bairro”, e ainda vou chamar assim por algum tempo, por mais que o pessoal que está aqui de longa data insista em me dizer que o Cruzeiro é a “cidade-satélite mais próxima do Plano Piloto”, e não um bairro.  

O Cruzeiro Velho é uma mistura de Copacabana sem praia com a Tijuca sem a Praça Saenz Peña e sem o Curso Oxford. Digo isso para os amigos do Rio. Para os amigos de Porto Alegre digo que é um mistura do Bom Fim com a Cidade Baixa, o que dá quase no mesmo.


No domingão, meu segundo dia oficialmente instalado na casa do Cruzeiro Velho, fui ao quiosque “De bobeira”. Vi Fluminense 4 x 0 Bangu. Vi o começo do clássico Flamengo x Botafogo, no Engenhão. A galera foi chegando devagarzinho, e o assunto era um só.

Estou sozinho em Brasília. A família chegará em breve. Que assim seja. Ô!

Na TV do quiosque, o canal Premiere seguia emitindo doses maciças de emoção. Meu irmão Rogério Nunes me dizia pelo WhatsApp que o tiro estava comendo do lado de fora do Engenhão. Falei para ele ficar esperto, se cuidar e mandar a garotada do FutRio ficar esperta.

Terminei minha última cerveja vendo o Flamengo em cima e o Botafogo acuado. Fui.

Minha casa fica perto do quiosque. Cheguei e me recostei numa das duas únicas cadeiras de plástico disponíveis, compradas no Walmart, e puxei o pôster do “Correio Braziliense”, edição de 8 de dezembro, com a foto de página dupla do meu Grêmio pentacampeão da Copa do Brasil. A final contra o Galo foi o primeiro jogo do meu tricolor que assisti na condição de morador do DF.


Mandei mensagem para a patroa. Ela me diz que está tudo bem na nossa casa (praticamente ex-casa), lá em Floripa; tudo bem com ela e com os nossos filhotes, confirmando a informação que ela já havia me dado algumas poucas horas antes, por telefone…  

A saudade é uma faca cega que insiste em te cortar em fatias finas.

Floripa, Cruzeiro Velho, Engenhão, todo mundo tocando a bola pra frente.

Fui me deitar agradecendo ao futebol, que vai dando o seu jeito de contribuir para a minha salvação, mais uma vez. 

A SABEDORIA DO GUILHOTINA

por Claudio Lovato

O Márcio Ribeiro, mais conhecido no mundo das peladas do jornal como Marcinho Guilhotina Cega, não era, digamos assim, dotado de muitos recursos técnicos; fazia o feijão com arroz – isto quando estava inspirado.

Fim de ano, dia da mais tradicional pelada do jornal. Carne queimando na churrasqueira do bar do Cuiabá, quadra do campo de futebol soçaite cercada pelo povo da redação, do administrativo e de todos os outros setores, tudo como mandava o figurino. E Aninha Paula, razão de viver do Marcinho (depois do futebol, registre-se), estava lá.

Bola rolando, Marcinho no banco, procurando Aninha com os olhos e já pensando na cervejinha do pós-jogo.  Ele estava de colete, calção novo, meia erguida até os joelhos, chuteira lustrada, na estica boleira, mas tinha em mente que, para fazer boa impressão de verdade, era melhor não entrar em quadra. “É preciso ser realista” era seu lema, para futebol e para a vida.

Mas eis que, lá pelas tantas, os que estavam em campo resolveram dar chance para os que estavam no banco, com a generosidade extra de fim de ano, aquela coisa. E então Marcinho foi chamado para campo.

Ele olhou para os lados onde estava Aninha e entrou.

– Vai, seu Marcinho! Decapita eles! – gritou Mariano, o boy, presidente e único integrante do fã-clube do Marcinho, sem se esquecer do “seu” antes do nome, porque, afinal de contas, respeito é bom e todo mundo gosta.

E lá se foi o Marcinho.

Corre pra cá, corre pra lá, levanta o braço pedindo a bola, a bola não vem, aquele negócio de sempre, quando, de repente, a redonda é lançada pra ele com o carinho e a precisão de um tiro de fogo amigo.


Foto: Cézar Alves

Até hoje ele não sabe se foi por puro instinto ou decorrência do mais frio raciocínio calculista. O fato é que ele matou a bola com a parte interna do pé direito (como nunca antes), deixou a bola beijar a grama, deu um corte no marcador que chegava pelas suas costas (num movimento que ficou conhecido como “o migué do surfista”), e, percebendo o goleiro adversário adiantado, mandou a bola por elevação, lá do meio do campo. Um golaço sensacional, muito festejado pelos companheiros de time. Recebeu abraços e tapinhas nas costas, coisa rara para ele (raríssima; na verdade, nunca acontecia).

– Aí, seu Marcinho, andou se preparando, hein?! – gritou o Mariano lá do alambrado, no que foi seguido por aplausos e assovios da assistência, e Aninha nitidamente era uma das mais entusiasmadas, isso ninguém podia negar.

O jogo recomeçou e, de repente, Marcinho colocou a mão atrás da coxa esquerda. Começou a fazer careta e mancar e, por fim, fez o clássico sinal de substituição para o banco. No total, ficou em campo seis minutos. Em seu lugar entrou o Gabriel, da Economia.

De volta ao banco, Marcinho, que nunca estivera com a musculatura da coxa em melhor estado, pensou: “É preciso saber a hora de sair de cena”.

Lá do alambrado, perto de um dos gols, Aninha sorriu para ele e mostrou o copo de cerveja cheinho até a boca, num gesto que simulava um brinde.

Discretamente, caprichando no passo manco, ele se levantou e saiu da quadra.

No caminho até onde estava a bela Aninha, foi cumprimentado pelos colegas de jornal, e um deles, o Marcelão, subeditor de Política, chegou a dizer:

– Tava escondendo o jogo, esse safado!

Mariano, o boy, ao ouvir isso, balançou a cabeça de um lado para o outro e riu como se não fosse haver amanhã.

Mas haveria. E seria dos melhores para o Márcio Ribeiro, que, depois daquele episódio, passou a ser conhecido apenas como Guilhotina (sem o complemento), e que, com frequência cada vez maior, dizia-se impossibilitado de jogar em razão de problemas musculares.

“É preciso fazer o momento de glória durar”, ele pensava, enquanto Aninha, de short e camiseta regata, pintava as unhas dos pés no sofá ao lado dele. 

O CARA

por Claudio Lovato


O veterano jornalista estava a passeio em Madri.

Mais faceiro que formiga em tampa de xarope, lá se ia o gaúcho de Taquara pelas ruas e vielas do centro madrilenho. 

E dá-lhe Puerta del Sol, dá-lhe tapas, ô, Madri!

Até que surgiu no caminho uma loja de artigos esportivos. Uma baita loja. O jornalista entrou.


Camisas de todos os grandes da Europa. E de alguns médios. E de alguns pequenos também.

Curioso, o calejado repórter, que inspirou muita gente por onde passou, avançou, investigou, xeretou, e lá pelas tantas, lá no fundão, num canto com toda a cara de canto, ele viu as camisas do Vasco da Gama e do… Avaí.

De clubes brasileiros, apenas essas duas. E só. 

Incapaz de resistir ao espanto e ao impulso, o experiente e sempre bravo homem de imprensa localizou o dono da loja.

Apresentou-se, saudou, foi saudado, riu, fez rir, e, por fim, perguntou, sem conseguir esconder o desconcerto que não parava de aumentar.

– A camisa do Vasco, tudo bem, eu entendi. O Vasco já foi campeão brasileiro, tem projeção internacional, coisa e tal, mas por que a do Avaí, a azul?

O espanhol olhou-o nos olhos. Ar reflexivo, parecia estar escolhendo as palavras, uma a uma. Por fim, respirou fundo, colocou as mãos para trás, pigarreou e então, num tom muito sério, muito reverencial, disse, com sua voz grave de comerciante do centro de Madri:

– Esta es la blusa del tenista, señor.


Guga comemora um título do Avaí

Texto dedicado ao jornalista Arthur Monteiro, mestre e amigo hoje radicado em Brasília, que me contou este episódio, do qual foi o protagonista. 

O SORRISO QUE SUMIU DAS RUAS

por Claudio Lovato


(Foto: Nelson Almeida / AFP News Agency)

Na terça-feira de manhã, pouco tempo depois de saber da queda do avião que transportava a delegação da Chapecoense e um timaço da imprensa esportiva brasileira, saí às ruas do centro de Florianópolis, onde moro.

Saí porque não consegui ficar em casa trabalhando. Saí porque precisava saber se aqueles relatos escabrosos que eu acabara de ler na internet eram totalmente verdadeiros. Saí porque senti uma ânsia irrefreável de me misturar à multidão e estar bem no meio dela se e quando eu descobrisse (e me convencesse intimamente) que aquilo realmente tinha acontecido lá nas montanhas dos arredores de Medelín.

Estou na minha segunda passagem por Florianópolis e essa foi a primeira vez – e, espero, a última – em que andei, andei e andei e não vi ninguém sorrir. Ninguém. Na verdade, quase não ouvi ninguém falar, embora as ruas já estivessem abarrotadas de gente. 


(Foto: Alan Pedro)

Andei pelo centro de Floripa, percorri a Felipe Schmidt inteira, da Beira-Mar à Praça 15, depois a Conselheiro Mafra, e então a Deodoro (onde cruzei por um casal de idosos, ele com a camisa da Chape, de braço dado com a esposa, ambos olhando para o chão) e a Tenente Silveira e a Esteves Júnior e a Bocaiúva e, por fim, a Almirante Lamego, onde resido, e tudo o que vi e ouvi nesse trajeto foi tristeza e silêncio, algo que não combina em nada com esta cidade falante e ensolarada, com este estado alegre e otimista que ama o futebol e faz dele uma de suas principais formas de celebração da vida.

Há coisa de três ou quatro semanas recebi do Sérgio Pugliese um desafio: entrevistar alguém da Chape para o Museu da Pelada. Moro em Floripa, como já expliquei, Chapecó fica no Oeste Catarinense, e essa distância física, aliada a compromissos profissionais e familiares, terminaram por me impedir de fazer o processo andar na velocidade em que eu gostaria. Chegaríamos ao intento, com certeza. Com certeza! Pois é.

Na quarta-feira, dia em que escrevi estas linhas, saí de novo às ruas de Floripa. Praticamente repeti o trajeto feito no dia anterior. Os sorrisos já começavam a voltar. Tímidos, sim. A célebreexpansividade dos “manezinhos” dava os primeiros sinais de regresso. Muito de leve. Não será de um dia para o outro. Não poderia ser.

No começo do ano fui ao estádio Orlando Scarpelli para assistir Figueirense x Chapecoense pelo Campenato Catarinense. Empate de 1 a 1. Finalizada a partida, acompanhando parentes e amigos que torcem pelo Figueira, fui saindo do estádio no meio da torcida do clube da capital, e, por várias vezes, ouvi comentários que variavam nas palavras, mas mantinham o mesmo sentido: “Essa Chapecoense não é fácil!” Havia respeito, simpatia e admiração. Que agora – para os torcedores do Figueirense e de todos os outros clubes do Brasil – se transformarão numa saudade fraterna. Lindamente fraterna.    

Eu gostaria de escrever um final mais positivo e alentador para este texto, mas o que dizer? Vamos em frente? Sim, vamos em frente! Vida que segue? Claro, vida que segue, sempre! Bola para frente? Opa, lógico, bola pra frente! Mas com o tempo.

Com o tempo.

Só com ele.

O ANDARILHO

por Claudio Lovato


Foto: Max Rocha

Pode acreditar: ontem, quando cheguei ao estádio para a minha apresentação no meu novo clube, demorei para responder quando um repórter me perguntou em quantos times eu já havia jogado.

O cara perguntou de repente, tive que fazer um esforço, acho que ele teve até vontade de rir. Ainda bem que era uma entrevista para jornal, porque se fosse para TV ou para o rádio, num programa ao vivo, eu estaria sendo chamado de comédia, teria virado piada. 

Foram 14 clubes.

É, 14.

Saí de casa com 16 anos. Assinei meu primeiro contrato como profissional aos 18. Faço 35 daqui a dois meses. Rodei muito.

Pois é. O meu décimo quinto clube. Fechamos um contrato de dois anos, coisa rara para um jogador da minha idade. Eu tenho sorte. Mas também tenho meus méritos: sempre me cuidei, sempre agi com profissionalismo, nunca me meti em roubada, esquemas para derrubar técnico, essas coisas. Só me preocupei em jogar bola para quem estivesse pagando o meu salário.

Hoje, o Caio Lúcio, meu filho mais velho, me perguntou:

– Pai, você sente a mesma coisa por todos os clubes em que jogou?

Aquela pergunta me perturbou, confesso. Pensei nas minhas entrevistas de apresentação, sempre com beijo nos escudos, pensei nas minhas comemorações de gol com a batida de mão aberta no peito.

– Mais ou menos, filho.


Ele não se deu por satisfeito.

– Mas o seu primeiro clube foi o mais importante, não foi?

Fiquei olhando para a TV enquanto ele aguardava a minha resposta.

– O mais importante foi o que veio antes do primeiro! O time lá do bairro. Depois de lá virou outra coisa! – eu disse, sem pensar muito.

– O time do vô Alberto?

– É. O vô Alberto organizava tudo.

Senti a garganta apertar.

– Quando você parar, você podia organizar um time pra mim, não podia? Que nem o vô Alberto fez pra você? – ele perguntou.

De repente, naquele exato instante, eu me convenci de que queria fazer aquilo mais que qualquer outra coisa na minha vida. 

– Então, ué! – eu disse.

– Ué! – ele disse, e batemos as mãos, num “cinco” bonito.

Nosso papo, nossos códigos. Eu e o velho Alberto também tínhamos os nossos. Tudo tão diferente e, ao mesmo tempo, tão igual. Nostalgia e expectativa, sempre se revezando. Derrotas e voltas por cima. A próxima chance! Arrependimentos e autocongratulações. Passado, presente e futuro no mesmo pacote. A vida.