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claudio lovato filho

NÓS VOAMOS CONTIGO

por Claudio Lovato Filho


Aquele gol. 

Aquele gol!

Eu tinha 12 anos, mas me lembro de tudo como se fosse hoje. E como esquecer?

O corta-luz de Tadeu Ricci para Iúra, a enfiada de bola de Iúra para André, o facão pelo lado esquerdo de ataque, o chute de direita, pé trocado, a bola no ângulo de Benítez, a torcida azul-preta-e-branca enlouquecida num Estádio Olímpico completamente lotado…

(“Dominei com a perna direita e com a perna direita mesmo foi, de três dedos”.)

… e então a comemoração do gol, a cambalhota no ar que não se completaria por causa de uma fisgada na virilha…

(“Bem na hora senti o rasgão”.)

… e lá está ele, flutuando, pairando no ar, e o fotógrafo Armênio Abascal Meireles no lugar certo e na hora certa, atento e a postos, produzindo uma das imagens mais representativas de comemoração de gol do futebol brasileiro em todos os tempos, um registro clássico.

Aquele gol. Aquele time. Aquele título. 

André foi o último a chegar, e com a chegada dele ficava completo aquilo que para os gremistas não é apenas uma escalação, é um poema épico: Corbo, Eurico, Ancheta, Oberdan e Ladinho; Victor Hugo, Tadeu e Iúra; Tarciso, André e Éder. 

André veio por insistência de Telê, dono de abençoada teimosia, e por decisão de Hélio Dourado, um dos maiores presidentes que o Grêmio já teve.

Em 13 de julho de 1977, ele chegava a Porto Alegre. No Aeroporto Salgado Filho, ao desembarcar, afirmou ao jornal “Folha da Tarde”, como relembra Daniel SperbRubin em seu magnífico livro “Heróis de 77”: “Preciso ser campeão aqui pelo Grêmio. Sei que o time não é campeão há oito anos, mas venho para fazer força e conseguir esse título”. 

Quis o destino, ou quiseram os deuses do futebol, ou simplesmente quis a vida, ou como se queira nomear, que apenas três meses depois de seu desembarque, André fizesse o gol de um dos títulos mais importantes da história do Grêmio, aquele que abriu caminho para a conquista do país, do continente e do mundo.

Entre o aeroporto e o gol de pé trocado no Gre-Nal235, em 25 de setembro de 1977, André ganhou do locutor Haroldo de Souza o apelido de Catimba. Por quê? Porque nenhuma zaga tinha vida fácil com ele, porque ele era ruim de ser marcado, porque não tinha medo de porrada, porque apanhava, mas dava o troco, porque sabia fazer o tempo passar lá na bandeira de escanteio, se fosse preciso. E sempre estufando as redes, artilheiro habilidoso e inteligente que era. 

Sempre foi assim, desde os tempos do Ypiranga, seu primeiro clube. No Vitória, para onde foi depois de passar pelo Galícia, formou um trio de ataque histórico com Osni e Mário Sérgio. No Bugre foi o antecessor de Careca. Chegou ao Grêmio já experiente, com 30 anos, para assumir o comando do ataque em lugar do veterano Alcindo, o maior artilheiro da história do clube, que havia retornado ao Olímpico, mas enfrentava frequentes problemas de lesão. 

André jogou no Olímpico até 1979, quando conquistou outro Gauchão.  Fez no total 67 gols com a camisa tricolor.

Nascido em Salvador em 30 de outubro de 1946, Carlos André Avelino de Lima, o eterno André Catimba, está completando 74 anos nesta sexta-feira. Feliz aniversário, centroavante! A nação tricolor te saúda. Comemoramos contigo esta data – tu aí na tua amada Salvador; nós, espalhados pelo Rio Grande, o Brasil e o mundo.   

Nós te vimos pairar no ar, enquanto nossa história mudava.

O CARRINHO SEM BOLA DO TEMPO

por Claudio Lovato Filho


(Foto: Marcelo Tabach)

Quem os conforta

Quando se dão conta de que jamais terão aquilo de novo:

O estádio lotado por causa deles

Os refletores

A adrenalina atingindo o pico no vestiário?

Quem os conforta

Quando acordam no meio da noite

Sobressaltados porque sonharam

Que tudo aquilo ainda lhes pertencia

Ainda lhes acontecia?

Quem os conforta

Quando em alguma resenha de TV

O pessoal da bancada se esquece de mencionar seu nome ao falar do time do ano tal

Campeão do torneio tal

Conquista que foi um dos maiores motivos de orgulho da vida?

Quem os conforta

Quando bate a saudade

Dos pedidos de autógrafo

Dos pedidos de entrevista

E até dos pedidos dos oportunistas que estavam sempre em volta, orbitando? 

Não há conforto.

Mas há o sorriso largo

A risada sincera 

Quando a família está em volta

A companheira de tanto tempo, os filhos (e para alguns, já há netos!)

Sim, agora existe tempo para a família

E também para os velhos amigos, poucos mas verdadeiros, camaradagem antiga  

Então, vez por outra,

Vem a satisfação de ser lembrado e homenageado

Por aqueles que amam o futebol de verdade

Por aqueles que cultuam a história do futebol


Gente que não esquece os ídolos

(Salve o Museu da Pelada)

Conforto, não há. 

Mas existe a memória

A lembrança do que se fez (e sempre se fez muito)

A alegria de recordar

Toda aquela alegria que se proporcionou a tanta gente de escassas alegrias

Quem os conforta?

Não, não há conforto.

Só há a vida que segue.

E de todos os milagres

E de todas as vitórias

E de todos os motivos de celebração

Talvez seja esse o maior deles

Por fim e definitivamente compreendido.    

O RETORNO

por Claudio Lovato


Os dois times entram em campo e são recebidos por um imenso silêncio – um silêncio de cimento e plástico.

O menino com o pai nas cadeiras perto do campo não tira fotos com seu celular nem o pai olha para ele, sorrindo, compreensivo, sensibilizado, porque nenhum dos dois está ali.  

Os amigos que há mais de trinta anos vão juntos aos jogos, sempre gozando da cara uns dos outros, sempre relembrando aventuras e elogiando os “nossos tempos”, também não estão ali.

As torcidas organizadas não entoam seus cantos nem fazem tremular suas bandeiras nem agitam suas faixas e seus trapos porque igualmente não estão ali.

Em suas casas, os torcedores assistem ao jogo na TV, pelo pay-per-view, no celular, no tablet, no desk top, e alguns se socorrem no rádio e nas transmissões minuto-a-minuto. Não são permitidas aglomerações no entorno do estádio.

O primeiro gol é do time da casa, um gol bonito, diga-se; um voleio da entrada da grande área, mas os jogadores não comemoram. Não como antes. Agora apenas dão sorrisos tímidos, fazem sinal de positivo com o polegar, batem palmas e então voltam para seu lado do campo.

No intervalo, na saída dos jogadores para o vestiário, é possível perceber o semblante de cansaço e tensão de alguns deles. Não conversam entre si, sequer se olham.    

Mais adiante, por longos instantes, por ordem ou por distração do diretor de TV, vão ao ar apenas imagens de cadeiras vazias, setores inteiros vazios, o estádio vazio.

Nas entrevistas do intervalo, feita por meio de um aplicativo de reuniões virtuais, um ex-jogador com duas Copas do Mundo no currículo diz que “os donos do poder estão aproveitando a situação para aprofundar o processo de transformação do esporte mais popular do planeta num espetáculo unicamente televisivo” e que “futebol é povo no estádio, aliás, como antes mesmo da pandemia já não estava se vendo mais” e que “o futebol, assim como todo esporte, é celebração da vida e da saúde e que deveria haver mais preocupação com os jogadores, os integrantes das comissões técnicas e os funcionários dos clubes e suas famílias”. Um ex-técnico que participa do programa pondera que o futebol tinha que voltar mesmo, “porque se demorasse mais os clubes poderiam quebrar, alguns não conseguiriam se reerguer”, e outro ex-jogador argumenta que “o que mais importa agora é que os protocolos sejam seguidos com todo o rigor” e o jornalista que conduz a entrevista encerra a conversa dizendo “bom, é assim que estamos por ora, é assim que será por enquanto, isso vai passar, gente, daqui a pouco vamos ter estádios lotados de novo, vamos botar fé”, e, depois de um break comercial, voltam à tela imagens do estádio.

O segundo tempo é lento e burocrático, fato atribuído à forma física dos jogadores, que ainda precisa melhorar de forma considerável. O jogo termina um a zero e, sem entrevistas de beira de campo, a TV logo passa a exibir os melhores momentos da partida. Em seguida, a transmissão vai para o estúdio, onde os comentaristas tentam explicar aos telespectadores o novo momento que está se vivendo. Fazem um nítido esforço para justificar a decisão de retomar o futebol neste exato instante. Há quem concorde e há quem discorde em medida praticamente igual, conforme mostram os números da participação dos internautas na enquete que acaba de ser feita no ar. Então partem para a análise do jogo, com entradas ao vivo feitas por repórteres usando máscaras e a repetição dos lances do jogo até o início da madrugada.

   

ACHADOS

por Claudio Lovato Filho


Nestes tempos de isolamento social, ele tem feito um verdadeiro trabalho de arqueologia em velhas caixas de sapato, pastas de papelão e sacos de lixo transformados em arquivos.

Certo dia encontrou seu time de botões, que ele acreditava que se extraviara na última mudança de endereço. Os botões foram presente de um velho amigo, um irmão a quem ele jamais tivera a coragem de informar a (suposta)perda.

 Naquele mesmo dia, em um dos sacos azuis de lixo, ele reencontrou o button de um dos clubes mais tradicionais da Inglaterra, lembrança de um jogo que assistiu no velho Wembley, em meados dos anos 90. Lembrou-se então da viagem a trabalho e da sorte que teve ao ser presenteado por um colega de empresa com um ingresso destinado a clientes e parceiros da companhia. O button estava dentro da revista produzida especialmente para o jogo. 

 Em outro dia, no fim da tarde, pôs as mãos e os olhos, depois de muito tempo, nos ingressos para os jogos que assistiu na Bombonera (Boca x Rosário Central), no Centenário (Peñarol x Nacional), no velho Alvalade (Sporting x Metz) e no Brígido Iriarte (Caracas x Deportivo Táchira).

 Foi em um sábado de manhã, entretanto, que ele encontrou uma foto que o fez interromper, naquele dia e nos outros dias que se seguiram, as buscas que vinha empreendendo. 

 A foto, guardada em umas daquelas pastas com elástico, mostrava um jovem, um garoto de 19 anos recém-completados, o rosto cheio de espinhas, o cabelo comprido, o sorriso de quem achava que havia compreendido todos os mistérios do mundo, ao lado de um senhor calvo, de óculos, barriga proeminente, pele bronzeada e o sorriso aberto e contagiante de quem estava pouco se lixando para os mistérios do mundo. 

Ali estavam, naquela foto em papel que já havia adotado a forma de canoa, ele e o avô, sob um céu muito azul, nas arquibancadas superiores do estádio que era então o maior do mundo. 

O avô que era apaixonado por futebol e pela vida, o avô que caminhava no calçadão da praia todo santo dia e, de 20 em 20 metros, encontrava um amigo, o avô que se foi aos 74 anos, levado por uma doença contra a qual todos os tratamentos e medicamentos pouco puderam fazer. O avô que nunca perdeu a alegria e a vontade de viver.

Naquele dia, ele recolocou a foto na pasta e então pensou,mais uma vez, que lidamos com forças muito superiores aos nossos desejos e às nossas certezas, que o “acaso” e o “aleatório” são apenas formas distintas de nomear essas forças e que a única resposta que cabe nisso tudo, a resposta que devemos dar para nós mesmos, é de que é preciso prosseguir, seguir, continuar indo em frente, tentando levar conosco apenas aquilo que dá sentido a essaininterrupta caminhada da qual somos partícipes e protagonistas, o supremo privilégio que nos foi concedido.

HOJE SONHEI COM UM ESTÁDIO

por Claudio Lovato Filho


No começo, ele estava lotado. Crianças, adultos e velhos. Cantos, batucada. Bandeiras, faixas e trapos por todos os lados. Uma festa.

Mas de repente começaram a surgir os clarões.

Primeiramente, pequenas áreas esparsas; depois, grandes espaços vazios em todos os lugares avançando como sombras sedentas de mais escuridão.

As bandeiras, faixas e trapos voaram, sugadas pelo céu cinza-chumbo.

Então o estádio desmoronou.

Foi assim: pedaço por pedaço, seção por seção, anel por anel – até não sobrar nada além de um vasto terreno descampado pedregoso, calcinado e deserto.

Nesse ponto acordei.

Um pouco mais tarde, com uma caneca de café na mão e o olhar preso no horizonte através da janela da sala, pensei numa passagem de “A Estrada”, de Cormac McCarthy:


Eu disse ao garoto que quando você sonha com coisas ruins significa que você ainda está lutando e que ainda está vivo. E quando você começa a sonhar com coisas boas é a hora em que você deve se preocupar”.

O dia prosseguiu em seu novo modo quarentena. Na minha cabeça e no meu coração se fortalecia o desejo de continuar sonhando com coisas ruins desde que isso signifique continuar tendo ao meu lado aqueles de quem preciso e que precisam de mim e fazer por eles o melhor que eu puder, colhendo de volta a possibilidade de, com eles, poder olhar para o céu à noite e falar da Lua, da brisa leve e das estrelas.

Mais adiante, quem sabe, conforme eu continuar a ter sonhos ruins, talvez eu possa ver acontecer coisas como o surgimento de novas e melhores formas de relacionamento entre as pessoas, junto com o retorno de velhas alegrias, coisas simples e maravilhosas como as caminhadas no parque, as confraternizações com os amigos do peito e os estádios lotados.