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claudio lovato filho

MINHAS COPAS DO MUNDO (NUM POEMA PERNA-DE-PAU)

por Claudio Lovato Filho

Em 1966 eu tinha um ano de idade
Mas segundo aqueles que nos viram jogar lá na Inglaterra
Fui poupado de muita bagunça e deslealdade

O Tri conquistado em 70 é meu, é seu, é de todos nós
Incluindo os que ainda não haviam nascido
E os que há muito já haviam se ido

Em 74 fiquei triste com a nossa eliminação
E depois mais triste com a derrota da Holanda
Mas havia Johan Cruyff para abrir as portas da percepção

Então veio a Argentina da ditadura
O Peru entregando o ouro e o nosso time campeão moral
Mas teve aquele gol do Nelinho no jogo do tchau

Falcão, Cerezo, Sócrates e Zico
Leandro, Júnior, Éder Aleixo
Chorei, chorei – mas não me queixo

Em 86, os franceses nos interromperam a caminhada
Platini, Tigana, Giresse, Rocheteau
Desejaram merde para eles e acho que isso bastou

Itália, Bela Itália, terra dos meus ancestrais
Um gol do meu xará cabeludo
Com um passe de quem sempre foi simplesmente demais

Com 24 anos de seca desembarcamos nos EUA
Bebeto e Romário chamaram a responsabilidade
E levantaram a taça da qual me orgulho com sinceridade

Em 98, aquela semi com a Holanda levou todo nosso gás
Sim, houve convulsões e um deus-nos-acuda
Quando as coisas conspiram contra não há o que dê paz

A forra na bola e na vida veio na Coreia e no Japão
Que time, senhoras e senhores, que time
Que coreografia, que sinfonia, que poder de destruição

Deixemos pra lá 2006 (só o Zé se salvou)
E também 2010 (gol de cabeça do baixinho holandês)
E em 2018, na Rússia, a Bélgica nos dando em show

E assim chegamos até aqui… Opa, mas uma faltou
Faltou 2014, a Copa dos sete a um, nosso Apocalypse Now
Se pelo menos tirássemos lição tudo seria menos mal

Agora é o Catar e, mais uma vez, ligados estaremos
No futebol como na vida, a esperança é a última que morre
E, quando morre, não morre: dá uma piscadinha e diz “logo nos vemos”.

JÔ E O FUTEBOL

por Claudio Lovato Filho

Humorista, apresentador, escritor, colunista, roteirista, ator e diretor, homem da música e das artes em geral, Jô Soares também era um cara do futebol. Amava o futebol.

Torcedor do Fluminense, conhecia a fundo história do Tricolor das Laranjeiras, mas, quando achava necessário, fazia suas críticas ao clube pelo qual era apaixonado desde a infância. Foi assim, por exemplo, quando o Fluminense liberou Gustavo Scarpa. Jô ficou inconformado e se manifestou. O tempo provou e continua provando que Jô tinha razão.

Como esquecer o personagem Zé da Galera, criado por Jô às vésperas da Copa de 82, para o programa Viva o Gordo? “Falando” com o técnico Telê Santana de um orelhão, Zé da Galera enunciava aquele que provavelmente foi o bordão mais repetido no Brasil naqueles tempos: “Bota ponta, Telê!” Jô achava que Renato – o Portaluppi, o Gaúcho – deveria estar ali. Jô sabia tudo.

Presente à final da Copa de 50, o Maracanazo, aos 12 anos de idade, Jô voltaria a ver o Brasil em campo na Copa seguinte, na Suíça. As memórias dessas experiências vividas quando ainda era tão jovem foram a base para a sua participação no livro “A Copa que ninguém viu e a que não queremos lembrar”, escrito em parceria com Armando Nogueira e Roberto Muylaert.

“Em 1950 eu tinha doze anos, mas participei intensamente da IV Copa do Mundo. Era um evento que mexia com o Brasil todo, mas muito especificamente com o Rio de Janeiro por causa da inauguração do Maracanã como o maior estádio de futebol do mundo, uma coisa monumental, um negócio extraordinário”, escreveu Jô. Sobre a final, relatou: “Eu saí chorando. Meu pai ficou triste, mas achou curioso e até um pouco engraçado um menino de doze anos ficar emocionado e chorar assim aos borbotões, por causa de um jogo de futebol. Para mim aquilo não era um jogo de futebol, era a minha primeira afirmação do Brasil como primeiro em alguma coisa. Qualquer afirmação de brasilidade lá fora me emociona, por mais boba que seja”.

Quatro anos depois, lá estava ele, na Copa da Suíça. Havia ido estudar no país em 52 e morava em Lausanne. Testemunhou a Batalha de Berna, em que o Brasil foi derrotado pela Hungria de Puskas. Voltando a 52, ano de seu desembarque na Suíça, Jô relembrou no livro papos com os novos colegas sobre o Maracanazo, o Rio e o Brasil. “(…) inventei uma história: garantia que, mesmo com 200 mil pessoas no estádio, não havia medo de invasão de campo. ‘Porque’, eu dizia, ‘há um fosso em torno de todo o campo com água e crocodilos’. Os moleques do colégio acreditavam. Alguns adultos também. O Brasil era uma coisa tão distante que as pessoas acreditavam em qualquer coisa. Pra eles, havia cobra nas ruas do Rio e de São Paulo. Dependendo do grupo, eu confirmava: ‘Claro. Mas não das venenosas’”.

Salve Jô Soares! Viva o Gordo!

REFLETORES

por Claudio Lovato Filho


De suas primeiras vezes num estádio de futebol, uma das que ele se recorda com mais nitidez (coisa de memória, coração e, claro, também um tanto de imaginação) foi uma noite de casa cheia, uma noite de arquibancadas e almas iluminadas, com os refletores nas seis torres de iluminação fazendo tudo parecer tão irreal (coisa de sonho) e ao mesmo tempo tão verdadeiro (coisa da vida exatamente como ela é).

Nessa noite (e não haveria de ser diferente, como poderia?), o time, no campo, foi tudo aquilo que ele imaginava e esperava e queria, e deixou a ele e ao pai – que o levara ao estádio – orgulhosos e felizes. Felizes como nunca (como nunca mais, não do mesmo jeito).

A torcida, os cantos da torcida, as faixas e as bandeiras, tudo azul, preto e branco; os vendedores de amendoim, pipoca, uísque e conhaque; o vento e o frio; a narração que vazava dos rádios de pilha… E os refletores. O time saindo do túnel e entrando em campo. E depois a luta, a insistência, os erros, os acertos. E os gols.

Como se tira isso de alguém? Como achar que isso pode ser abandonado ou esquecido em algum ponto da vida? Não, não mesmo. É coisa para a vida toda.

Hoje, mais de 50 anos depois daquela noite iluminada, as imagens e as lembranças e as sensações permanecem, processadas pelo tempo que deixa suas marcas no cabelo grisalho, nas guerras perdidas, nas dores acumuladas – dores do corpo e do espírito –, mas também nas batalhas vencidas e nas conquistas que dão sentido ao que, por vezes, parecia se perder no redemoinho do aleatório, do caótico e do despropositado.

Daquela noite no estádio, de tudo o que viveu e sentiu, ele segue extraindo força e alegria. Aquela noite no estádio – não é exagero dizer – o ajudou a chegar até aqui. Ajudou? Mais que isso: aquela noite, de certa forma, foi exatamente o que o trouxe até aqui como o ser humano que ele é e não o que poderia ser.

Aquela noite no estádio – isto também é certo – o ajudará a seguir em frente, porque faz com que o homem maduro de hoje entenda que também precisa se deixar conduzir pelo menino; o menino que ajuda a iluminar o seu caminho e a fazer com que cada passo simplesmente valha a pena.

UMA HISTÓRIA DE FUTEBOL E HEROÍSMO

por Claudio Lovato Filho


Um dos livros de futebol que mais emocionaram se chama “Futebol & Guerra – Resistência, triunfo e tragédia do Dínamo na Kiev ocupada pelos nazistas” (Jorge Zahar Editor, 2004), do jornalista escocês Andy Dougan. No momento em que o mundo assiste à invasão da Ucrânia pela Rússia, a leitura desse livro pode ser especialmente interessante ao apresentar um episódio histórico que revela muito do espírito do povo ucraniano.

Essa obra extraordinária (e extraordinária não apenas para os amantes do futebol como nós, aqui reunidos na famiília Museu da Pelada) tem como contexto a invasão nazista à União Soviética, em 1941 – mais especificamente, à Ucrâniae à capital Kiev. 

Entre os prisioneiros feitos pelos alemães estavam muitos jogadores do Dímano, considerado o melhor time da Europa pré-guerra. Eles haviam se alistado no Exército para combater os invasores nazistas e acabaram sendo capturados. Com a capitulação de Kiev foram deixados à própria sorte, enfrentando a fome, a doença e o frio nas ruas devastadas da cidade. 

Um a um foram sendo acolhidos pelo dono de uma padaria,e, liderados pelo goleiro Trusevich,  reformularam o Dínamocomo F.C. Start. O time venceu todos os jogos que disputou– contra times húngaros, romenos e de unidades militares alemãs –, o que foi fudamental  para levantar o ânimo da população de Kiev.


Sim, o Dínamo/Start venceu todas as partidas que disputou, inclusive a partida final, contra um adversário que, todos sabiam antecipadamente, não aceitaria a derrota: o time da Luftwaffe, a força aérea alemã, num jogo que teve um oficial da SS como árbitro. As consequências desse ato heróico dos ucranianos teve consequências brutais, descritas em detalhes por Andy Dougan. 

“Futebol & Guerra” é um relato fascinante e comovente; uma homenagem a 11 heróis e a uma nação por eles representada com bravura em um momento em que tudo parecia perdido e o fim parecia sempre muito próximo. 

 

UM QUILO DE ALCATRA

por Claudio Lovato Filho


A carne era tudo o que ele carregava. 

O açougueiro a havia cortado em bifes grossos e colocado no saco plástico com a etiqueta que informava o peso e o preço. No caixa rápido – para “10 volumes no máximo” – ele pagou pelos 987 gramas de alcatra usando o cartão do banco em que abrira conta havia menos de um mês e saiu do supermercado.

Saiu do supermercado, mas não conseguiu sequer chegar à esquina que lhe daria acesso à avenida que ele percorreria até chegar em casa, onde a mãe – ele sabia – ficaria de queixo caído e sem saber o que dizer assim que se desse conta daquela surpresa que ele havia preparado para ela.  

Ele não chegou à esquina porque uma viatura da Polícia Militar subiu na calçada e lhe interrompeu a passagem. Ele só teve tempo de arregalar os olhos e sentir o coração disparar antes que o PM que saiu do assento do lado do motorista começasse a gritar com ele.

“Na parede! De frente pra parede!”

“Solta a sacola!”

“Mão na cabeça!”

“Abre as pernas!”

Com o nariz quase encostado ao muro da escola pela qual ele tantas vezes havia passado na vidapercebeu a aproximação, à direita, de outro PM. Esse outro tinha uma voz arranhada, grossa, e o cheiro que vinha daquela boca lembrou a ele um bicho morto.

“Onde é que você arranjou dinheiro para comprar esta carne?” 

Ele conseguiu reunir calma e coragem para responder.

“Eu ganhei. No Castanheira. Eu jogo lá”.

“Cadê a nota fiscal?”.

“Joguei fora”.

O PM que havia se aproximado primeiro começou a enfiar as mãos e mexer nos bolsos da bermuda dele,até que os forros ficassem para fora. Com brutalidade, o policial tirou um chaveiro com o escudo do clube, ao qual estavam presas duas chaves (do portão e da porta de casa). Depois puxou uma carteira de plástico. Por fim arrancou do bolso de trás o celular com o protetor de tela rachado.

Esse mesmo PM examinava lentamente o conteúdo da carteira (havia uma nota de R$ 20, uma de R$ 10 e duas de R$ 2, a carteira de identidade, o cartão do banco, um bilhete do metrô e a carteirinha do clube com a foto dele e o registro como jogador das categorias de base), enquanto o outro se mantinha com a mão na coronha da pistola automática e com um dos coturnos encostado na sacola com a carne.

Então o que tinha o bafo de esgoto disse:

“Vira”.

Ele se voltou devagar até ficar de frente para os dois policiais.

O PM que havia revistado a carteira a devolveu. Devolveu também as chaves e o celular. O outro lhe entregou a sacola do supermercado. Os dois policiais se entreolharam.

“Tranquilo. Poder ir”, disse o primeiro PM.

E o outro:

“A gente recebeu uma informação e a descrição bate com uma pessoa com a sua… com a sua… aparência. Pode ir”.

Ele ouviu – não viu, porque não conseguiu olhar;apenas ouviu, de cabeça baixa e com os olhos fixos na calçada – os dois policiais entrarem no carro e irem embora.

Foi para casa como se fosse a primeira vez que estivesse andando naquela avenida e naquela cidade.

Quando chegou e entregou a compra à mãe, ela ficou sem saber o que dizer, apenas sorriu e ficou olhando para ele, exatamente do jeito que ele imaginou que seria.

“Vou fazer com ovo pra você, meu filho”, ela disse. “E batata frita”.

Ele tentou sorrir. Tentou deixar para trás o medo, ao mesmo tempo em que – agora, sim – sentia a raiva se apresentar com toda a força.

“Agora você é jogador profissional, meu filho. Você conseguiu. Vai ganhar o seu o dinheiro, vai ficar conhecido, vai ser respeitado, porque neste país só assim para uma pessoa como nós ser respeitada”.

Pensou no enorme esforço que teria que fazer para engolir aquela carne que a mãe já estava começando a preparar na cozinha. Seria mais uma luta que teria que empreender, uma luta pequena em comparação às tantas que já havia se acostumado a enfrentar desde muito cedo, desde sempre.

Mas foi só quando olhou para o irmãozinho, que assistia TV sentado no chão e sorria para ele de um jeito que só as crianças conseguem fazer, que as lágrimas finalmente vieram, e ele teve que correr para o banheiro porque não poderia deixar que nenhum deles visse em seu rosto a amarga materialização de todo o medo e de toda a desesperança e de toda a humilhação que naquele momento ele carregava dentro de si.