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Claudio Lovato

BEM-VINDO, CENTROAVANTE

por Claudio Lovato

Em 1972, no comecinho do ano, eu e minha família chegávamos a Porto Alegre, vindos de Santa Maria, minha cidade natal, situada no exato centro geográfico do Rio Grande do Sul. Eu tinha 6 anos. Eu não me lembro de quantos dias se passaram até que eu e meu velho entrássemos num táxi e nos colocássemos no rumo do Olímpico – só sei que foram poucos. Afinal, se o nosso primeiro endereço, o residencial, era na Rua João Manoel, no centro da cidade, o outro endereço, o do coração azul, preto e branco, ficava no Bairro Azenha, e era preciso tomar posse deste também, o quanto antes. E, claro, foi maravilhoso.

Nosso time tinha, entre outros heróis da gloriosa história tricolor, Espinosa, lateral-direito que se tornaria o técnico do nosso campeonato mundial conquistado em Tóquio 11 anos depois; tinha Everaldo, Flecha, Oberti, Loivo… E na zaga central, lá estava ele: Atílio Genaro Ancheta Weiguel, eleito o melhor em sua posição na Copa do Mundo de 70, no México. Uruguaio nascido em Florida. Ancheta foi e continua sendo um dos meus grandes ídolos no futebol. Aos 9 anos, ganhei uma camiseta do Grêmio com o número 2 às costas, o número do Ancheta. O Museu da Pelada publicou um conto meu chamado “O número 2 do Ancheta, costurado torto”, do qual muito orgulho e que segue me emocionando a cada releitura.

Nesta quarta-feira, dia 4 de janeiro de 2023, Ancheta estava lá, agora na Arena, entregando a camisa número 9 a seu compatriota Luisito Suárez, o artilheiro nascido em Salto, sob os aplausos de mais de 40 mil torcedores, que fizeram da recepção ao Pistolero um maravilhoso e inesquecível espetáculo.

Ancheta jogou no Grêmio entre 1971 e 1980. Ele foi um dos craques que mais contribuíram para que o menino de Santa Maria que o assistia da arquibancada tivesse a certeza de que se tornaria jogador de futebol. Isso não aconteceu, mas foi lindo acreditar que assim seria. Ainda é, até hoje, quando o guri da arquibancada se aproxima das seis décadas de vida.

Quase seis décadas de vida e os olhos molhados vendo as imagens da apresentação de Luis Suárez na nossa casa, hoje não mais situada na Azenha, mas no Humaitá. Mais de 40 mil pessoas cantando e aplaudindo o novo herói que chega. Muitas crianças, muitos adolescentes, mas também muitos representantes da velha-guarda, alguns dos quais presenciaram in loco a cena do zagueiro uruguaio, então com 29 anos, ao lado de Tarciso, André, Éder, Oberdan, Tadeu Ricci, Iúra e outras feras, levantando a taça do histórico campeonato gaúcho de 1977.

A chegada de Luisito Suárez é um presente que enche de alegria e orgulho o coração de todos os gremistas. Muitos de nós – e eu sou um destes casos – somos fãs de carteirinha do centroavante desde que ele surgiu para o mundo do futebol, no Nacional de Montevidéu, mesmo clube que formou Ancheta e outro de nossos grandes ídolos, Hugo De León, uruguaio de Rivera, o grande capitão da nossa primeira Libertadores e do nosso Mundial.

O abraço de Ancheta e Suárez no centro do gramado da Arena simbolizou a força e a constância de um sentimento que une uma torcida e seu clube através de gerações. Isso começou em 1903 e – os deuses do futebol já asseguraram – jamais terá fim.

Bem-vindo, Luisito. Estamos juntos, centroavante. Te queríamos muito entre nós e agora já és parte da nossa História.

ALGUMAS PALAVRAS SOBRE TÉCNICOS GAÚCHOS

por Claudio Lovato Filho

A simplificação excessiva e a generalização prejudicam a análise séria; se estiverem juntas, então, acabam com qualquer chance de uma contribuição qualificada para o bom entendimento do que quer que seja.

Afirmar que os treinadores gaúchos são contra o drible e outras ousadias em campo é um erro típico de quem, um dia, se enamorou de uma tese equivocada e não quer largá-la de jeito nenhum.

Existe no Rio Grande do Sul – e quem é de lá, ou conhece alguma coisa do futebol de lá, sabe disto – uma diversidade de pensamento tal entre os técnicos que é difícil até mesmo afirmar categoricamente que exista uma única “escola gaúcha”, ainda que pesquisemos os primórdios do futebol no estado.

Por acaso Otto Bumbel, Oswaldo Rolla, Ênio Andrade, Carlos Froner, Valdir Espinosa, Paulo Cesar Carpegiani, Mano Menezes, Oswaldo Brandão, Tite, Otacílio Gonçalves, Daltro Menezes, Felipão, Cláudio Duarte, Ivo Wortmann, Renato Portaluppi, Dunga, Tiago Nunes e Roger Machado pertenceriam a uma mesma e única “escola”?

Essa diversidade – “essas variações e até combinações”, como diz um amigo que conhece muito de futebol – é justamente o que faz o futebol gaúcho tão vitorioso.

Nessa relação de treinadores feita algumas linhas acima há formas de pensar o futebol e métodos de trabalho que são, em alguns casos, completamente diferentes. Uns, com mais apreço que outros pelas ousadias e liberdades individuais, pelo jogo mais ofensivo; uns mais preocupados que outros com a segurança defensiva, com a rigidez da marcação. Mas nenhum deles contra a demonstração de talento. Nenhum deles contra o craque. Jogadores como Airton Pavilhão, Milton Kuelle, João Severiano, Gessy, Alcindo, Everaldo, Tesourinha, Falcão, Mauro Galvão, Carpegiani e Ronaldinho Gaúcho não se tornaram o que se tornaram porque seus técnicos os proibiam de apresentar sua arte.

Mesmo considerando os técnicos gaúchos que mais recentemente dirigiram a Seleção Brasileira há uma expressiva diversidade de estilos. Mas é preciso querer ver isso e, por consequência, evitar análises precipitadas.

Todos buscando a vitória, cada um à sua maneira – mas sem tolher os craques. Ao contrário.

Em 2014, Felipão proibiu dribles? Sério? Bom, uma rápida olhada na lista de convocados, só para relembrar quem estava lá, deixa claro que se o nosso técnico não gostasse de dribles e de outras demonstrações de talento não teria levado quem levou.

Observem as listas. Relembrem as escalações.

Mesmo os ex-jogadores que criticam a assim chamada “escola gaúcha de técnicos” sabem que, no campo, quem toma as decisões relacionadas a ações individuais são os jogadores – sobretudo em equipes que contam com profissionais da elite mundial.

Alguém ouviu falar que o Tite vetou os dribles do Neymar, do Raphinha, do Anthony e do Vini Jr.? Se alguém ouviu, por favor, me envie os links.

Também não soube de proibições nesse sentido feitas por Mano Menezes a Marcelo, Daniel Alves, Hernanes, Douglas, William, Nilmar, Lucas, Neymar. Nem de Dunga a Daniel Alves, Kaká, Paulo Henrique Ganso.

Sou um gaúcho gremista orgulhoso da contribuição do Rio Grande do Sul ao futebol brasileiro. Nem por isso critico, tampouco condeno os que admiram técnicos originários de outros estados e que têm formas distintas da minha de pensar o futebol.

Grandes craques gaúchos já ficaram fora de Copas do Mundo simplesmente por não jogarem em clubes do Rio ou de São Paulo, e isso não começou com Falcão e Tarciso sendo “esquecidos” na Copa da Argentina. Quem conhece a história, por exemplo, de Airton Ferreira da Silva, o Airton Pavilhão, um dos melhores zagueiros que este país já teve, preterido na Copa de 62, sabe do que estou falando. Nem por isso deixo de respeitar os aportes que fizeram ao nosso futebol Cláudio Coutinho, gaúcho de Dom Pedrito que se mudou com a família para o Rio quando tinha 4 anos de idade, e o fluminense Aymoré Moreira. Nem acho que o mineiro Flávio Costa e o alagoano Zagallo, ambos desde jovens radicados no Rio, tenham que ser responsabilizados sozinhos por nossas derrotas para o Uruguai em 50 ou para a Holanda e a França em 74 e 98, respectivamente.

O futebol brasileiro é feito de uma grande conjunção de referências, visões, gostos, convicções e preferências, que interagem e se complementam. Somos o país que mais vezes conquistou a Copa do Mundo porque soubemos conjugar esses elementos diferentes e essenciais e ligá-los com a argamassa da paixão. A colaboração do Rio Grande do Sul – que conquistou o país, o continente e o mundo algumas vezes, com estilos diferentes e em circunstâncias as mais diversas – tem seu papel de destaque assegurado nessa caminhada.

O futebol brasileiro é arte e força. É alegria e competitividade. Malandragem e disciplina. Criatividade e concentração. Fantasia e objetividade. E nenhum desses elementos tem a marca de propriedade ou de rejeição de alguma unidade da federação. Isso é fruto de soma, de convívio, de conexão – jamais de ranço bairrista e discriminatório. Essa integração é o que faz o nosso futebol ser o que é. É o que nos faz ser o que somos.

HOJE TEM PELADA

por Claudio Lovato Filho

Hoje ele vai dar um tempo para os perrengues (presentes e futuros, reais e imaginários).

Hoje ele vai deixar que eles fiquem a cargo do seu São Sebastião-querido-de-todas-as-horas e (claro) dos deuses do futebol.

Hoje tem pelada.

A pelada amada de todas as segundas-feiras. Amém.

Hoje ele vai tomar umas geladas – apesar de ser segunda-feira.

(Tomar, não – porque, como disse o Jamelão, “eu não tomo nada, eu bebo!”)

Hoje ele vai confraternizar com seus camaradas e rir às pampas com eles.

Seus irmãos, gente que conhece sua história e gente cujas histórias ele também conhece muito bem.

É assim na pelada.

Hoje ele vai lembrar do avô (todo dia ele lembra do avô, mas no dia da pelada lembra ainda mais). O avô que levava o neto ao estádio e que sempre ia ver o neto jogar na praia, o avô de quem o neto sente tanta saudade e que se foi deste mundo há muito tempo, o avô que era fã do Jamelão, o avô que foi como um pai.

Hoje é dia de vestir o jaleco!

Hoje tem pelada e pode ser que chova, mas isso não é problema, nunca será – pelo menos enquanto a bola rolar, enquanto o passe chegar.

E se não rolar e se não chegar, paciência – aí é pé embaixo da bola, para levantar a redonda e conduzi-la com malícia e sabedoria e avançar na água empoçada.

Hoje não tem choro nem vela, hoje não tem chorumela.

Hoje ele vai ignorar a coluna encrencada, não vai dar bola pra ela.

(Amanhã o Torsilax resolve.)

Vai tentar o voleio naquela jogada de escanteio, mas (Qual é? Tô fora!) vai fugir do cabeceio.

E quando cansar vai ficar só lá atrás, espanando ou tocando pro lado; subir só na boa (de Uber ou de canoa).

É, hoje tem pelada.

Hoje ele põe de lado todos os imbróglios, aporrinhações, entreveros, broncas, pepinos e abacaxis.

Hoje ele vai deixar os grilos do passado bem quietinhos onde eles têm de ficar – no passado.

Porque hoje tem pelada.

E ele já está indo.

Foi.

Já está lá.

“Rola logo essa p*, Felipinho!”

Sim, hoje tem pelada.

E depois virá a semana, com tudo o que ela reserva de bom e de nem tão bom (porque a vida é assim).

Mas então a semana terá começado do jeito certo.

Do jeito que precisava ser.

Amém.

FOTOGRAFIAS

por Claudio Lovato Filho

Retiro da parede o quadro com a foto.

Nós quatro rindo para a câmera, abraçados, vestindo nossas camisas preferidas, prontos para a festa ou para guerra. Tarde de jogo, dia de estádio. Há muito tempo.

Um de nós já se foi deste mundo. Outro foi morar longe, em outro continente. Os outros dois continuam indo juntos aos jogos do time até hoje (quando o problema de coluna de um deles não impede que isso aconteça).

O que se foi era o mais engraçado e também o mais invocado.

O que foi morar no exterior era o mais quieto, mas o mais fanático.

Os dois que ficaram assumiram o papel de guardiões das lembranças de todos eles.

Resta falar do autor da foto, aquele que um dia nos convenceu de que precisávamos nos manter sempre unidos, porque assim tinha que ser com irmãos, assim tinha que ser na família; aquele que, pouco tempo depois de fazer a foto, foi aplicar sua experiência e suas ideias de pai em outro lugar, com outra família.


Ele se jogou para trás na cadeira e ficou olhando para a tela do computador.

A foto do time parecia um quadro impressionista, com ele ocupando a terceira posição, de pé, a partir da esquerda.

Sabia que nunca iria conseguir se libertar daquela imagem, do significado daquela imagem.

Às vezes achava que sua vida havia se encerrado ali, com aquele time, naquela temporada, há mais de 30 anos.

Olhava para aqueles rostos e se lembrava de personalidades e episódios. Os líderes e os seguidores; os rebeldes e os cordatos; os gozadores e os introspectivos; os agregadores e os individualistas; os reclamões e os positivos. Seus companheiros.

No canto direito, de pé, sério como sempre, o velho dava a impressão de que tinha sido forçado a participar da foto. Não que se sentisse desconfortável entre os jogadores. Ao contrário. Ele apenas achava que os jogadores deveriam ser os protagonistas, e somente os jogadores. Seu papel, ele dizia, era indicar caminhos e, quando preciso, assumir culpas. O velho defendia seus jogadores como se aquilo sempre envolvesse o que ele possuía de mais valioso: honradez e integridade, coisas que definem uma existência e não cabem numa foto.


A mãe do jovem torcedor tem muito bom humor, mas quando é dia de jogo fica preocupada.

Hoje é dia de jogo e ela olha para a foto do filho no porta-retratos sobre a mesinha de centro.

É um menino tranquilo, mas ela ficou sabendo – por uma vizinha, mãe de um amigo do filho – de algumas coisas que ele andou aprontando no estádio. Ficou sabendo de algumas, imaginou outras e viu outras, viu marcas nas costas dele, vergões.

Nos pesadelos dela há cassetetes, correntes e facas.

Cada vez que ele sai para o estádio, ela diz: “Juízo, meu filho. Vai com Deus”.

E, como hoje não é um jogo comum, mas um clássico, ela está mais nervosa. Não acompanha de perto o futebol, mas não é uma alienada e sabe o que significa um clássico na cidade onde vivem. Sabe também o que significa “torcida organizada”, que ela lê em todas as camisas que ele usa quando vai aos jogos.

Então ela resolve fazer as únicas duas coisas que parecem sensatas naquele momento: enviar uma mensagem para o filho perguntando se está tudo bem e rezar para que Nossa Senhora Aparecida interceda junto a Deus Pai Todo-Poderoso para que proteja seu menino.

Esses dois atos serão repetidos várias vezes, durante toda a tarde e parte da noite, até que o filho volte para casa, são e salvo, e então, finalmente, ela possa desviar os olhos da imagem no porta-retratos e descansá-los no rosto dele, iluminado sob a luz fraca da entrada da casa.

DOIS MENINOS

por Claudio Lovato Filho


(Foto: Americo Vermelho)

(Foto: Americo Vermelho)

Um está no gol

O outro chuta

O que está no gol fala alguma coisa

O outro ri alto

As traves e o travessão formam sombras alongadas na areia

Demarcando o território do qual os dois são donos absolutos

É domingo, e os carros deslizam no asfalto da avenida, se amontoam, se provocam

No calçadão, as pessoas vêm e vão, desviam umas da outras

Um casal pede dois cocos no quiosque

Os meninos invertem as posições

O que estava no gol vai chutar

O que estava chutando vai pro gol (de má vontade)

Em volta deles

A cidade é claridade, palavrório e buzina

E o mundo segue em sua cacofonia de beleza e loucura

Esperança e tragédia

Vida e morte

Um chute

E outro

E outro

O menino que está no gol diz alguma coisa

O outro cai na gargalhada, e responde

Então os dois riem

E riem

E riem

E parece que não vão mais parar de rir

Nunca mais

Parece que vão rir para sempre

Até que decidem que é hora de ir embora

Um deles pega a bicicleta

O outro põe a bola debaixo do braço

Vão para casa

Para seus pratos feitos com arroz, feijão, bife e ovo

Cobertos com um pano sobre o fogão

Os dois se vão de bicicleta pela ciclovia

Gritando

Rindo

Rindo alto

Rindo sem parar

Dois meninos

Dois irmãos.