por Cesar Oliveira
O futebol talvez seja o esporte que mais resiste à mudança de regras. As primeiras, de 1863, eram de um tempo em que o association e o rugby se confundiam.
Em 1865, a revista Bells Life publicou 14 regras, formuladas em reunião da Federação Inglesa de Futebol, em 26 de outubro de 1863, e que serviriam de base para a formulação das 17 regras atuais.
Meu ídolo-mór no futebol, João Alves Jobim Saldanha, que estaria completando centenário de nascimento no próximo dia 3 de julho, era um ferrenho adversário dos “velhinhos” da International Board.
A International Football Association Board – IFAB é o órgão que regulamenta as regras do futebol. A associação foi fundada no dia 6 de dezembro de 1883, após um encontro em Manchester da The Football Association (Inglaterra), da Scottish Football Association (Escócia), Football Association of Wales (País de Gales) e da Irish Football Association (à época, representando toda a Irlanda; hoje, somente a Irlanda do Norte).
Segundo ele, os “velhinhos” não estariam dispostos a permitir qualquer modificação nas regras, de modo a fazer o futebol acompanhar os tempos, e se tornar moderno, sem perder as regras jamais.
Essa questão que está sendo levantada agora sobre o árbitro de vídeo no futebol me levanta muitas e graves dúvidas sobre as regulamentações que a corrupta FIFA propõe implantar até a Copa de 2018.
Sentem-se à mesa de um botequim os boleiros, entendidos, jornalistas, enfim, as centenas de milhões de brasileiros que entendem mais de futebol do que o mundo inteiro, e não se chegará, jamais, a um consenso.
O QUE DIZEM AS REGRAS
A Regra 5 das leis do jogo – a respeito do “árbitro central”, deixa claro que “cada partida será controlada por um árbitro, que terá a autoridade total para se fazer cumprir as regras de jogo na partida para a qual tenha sido designado” e que “as decisões do árbitro sobre fatos em relação com o jogo são definitivas”.
Mas ele não pode voltar atrás?
Pode e está na Regra 5: “O árbitro poderá mudar sua decisão unicamente se perceber que sua decisão é incorreta ou, se o julgar necessário conforme indicação de outro membro do quarteto de arbitragem, sempre que ainda não tenha reiniciado a partida”.
Os velhinhos do Board vão ficam doidinhos, agora que decidiram aceitar a modernidade, para descobrir como fazer isso acontecer sem lhes encherem os pacovás de mimimis e chororôs.
É isso que pretendemos discutir aqui. Para isso, levantei opiniões de amigos boleiros, principalmente a turma do Memofut – Grupo de Literatura e Memória do Futebol (que se reúne uma vez por mês, no auditório do Museu do Futebol, no Pacaembu, para apresentar trabalhos e discutir ideias), e os companheiros do grupo “Apreciadores do Futebol”, que se comunicam pelo WhatsApp. Meus agradecimentos a eles, pelo debate sadio, em benefício do futebol, nossa paixão.
AS PRIMEIRAS EXPERIÊNCIAS
A primeira tecnologia deste tipo parece ter usada no atletismo, nos Jogos Olímpicos de Verão de 1932. Mas tempos registrados automaticamente só passaram a ser aceitos oficialmente nos Jogos Olímpicos do México-68. E a experiência deu certo em outros esportes.
No turfe, o “photochart” mostra quem chega à frente. Antes, tinha aquele suspense enquanto a imagem (filme) era revelada, até que Theóphilo de Vasconcelos, o locutor oficial do Jóquei Clube Brasileiro, informasse que os bookmakers poderiam pagar as apostas. Hoje, é pá-pum, imediato.
O sistema virou “photofinish” e é um sucesso. Atletismo, automobilismo, vários esportes se beneficiam da tecnologia.
No tênis, já tem tempo, se a bola bateu na linha, saiu ou não saiu, é mole pro “olho de águia” resolver. Deu certo também no vôlei, onde os técnicos têm um determinado número de “desafios” por “set”.
ABREM-SE AS CORTINAS, COMEÇA A DISCUSSÃO
E é por aí que a gente pode começar a discutir como isso seria implantado no futebol. Porque os sistemas hoje adotados, em todos os esportes, resolvem as questões sem deixar margem a dúvidas. Matam a cobra e mostram o pau. Funcionam às mil maravilhas, e todos aceitam as suas decisões, porque elas são sempre corretas.
O “chip” na bola deu certíssimo. Nunca mais um árbitro vai ter dúvida de que a bola entrou, porque o relógio-sensor no seu pulso vai vibrar e a TV vai confirmar depois. Poderia ter também no telão dos estádios, em tempo real.
CHORORÔS E MIMIMIS
Confesso que, quase aos 65 anos, e sabendo como o submundo do futebol pode ser um negócio sujo, eivado de subornos, manipulação de resultados, arbitragens compradas e, agora, sites espúrios de apostas, fico com um pulgueiro inteiro atrás da orelha. Se a coisa não for acachapantemente boa, vai dar zebra. Porque, no futebol, é assim.
Jogadores marrentos, técnicos chatos e, por que não dizer, árbitros corruptos, sabendo das mumunhas que podem criar, vão adorar ter a tecnologia à disposição pra puxar a brasa pra sardinha dos seus clubes. E, aí, vão conseguir fazer a tecnologia fracassar.
Não vou reclamar, aqui, de qualquer prejuízo ao meu clube do coração. A história está aí para mostrar que uns clubes e outros são prejudicados aqui e ali, deixando dúvidas se por ruindade mesmo, ou má-fé.
Confesso que ainda hoje me irrito com a jogada da gravata do zagueiro Vica, do Fluminense, no atacante Claudio Adão, do Bangu, na final do Campeonato Carioca de 1985.
E a imprensa esportiva sabe quais os casos escabrosos. Chegam a colecionar os primeiros momentos. Só falta o miau: https://goo.gl/64mA5A
Por isso, é fundamental que o “modus operandi” seja determinado depois de um consenso mundial e sério – se é isso que eles querem.
COMO VAI SER
No dia 5 de março de 2016, o projeto do “árbitro de vídeo”, elaborado pela CBF e ampliado com a opinião de outros países, foi aprovado pelo International Football Association Board (IFAB). Assim, o Brasil poderá testar o uso da tecnologia para acabar com dúvidas em lances decisivos.
RESUMO DO PROJETO
1. As decisões do árbitro principal continuam soberanas
2. O árbitro de vídeo tem que ser um árbitro do quadro da CBF, com nome na escala
3. O árbitro principal deve ter comunicação direta com o árbitro de vídeo (N. do A.: não deveria para não haver o que a ética chama de “interferência externa”)
4. As decisões dirão respeito exclusivamente a quatro itens já determinados
a. Gol duvidoso (N. do A.: não deveria porque, para isso, existe o chip na bola)
b. Pênalti duvidoso
c. Cartão vermelho resultante de decisão duvidosa
d. Identificação incorreta de infrator
5. O árbitro de vídeo deve ter dez ou quinze segundos para avisar o árbitro de um lance duvidoso (N. do A.: não deveria para não haver o que a ética chama de “interferência externa”)
6. O árbitro principal, ao receber uma chamada do árbitro de vídeo, deve fazer um sinal com as mãos para alertar o público de que a decisão está sub-júdice (N. do A.: não deveria para não haver o que a ética chama de “interferência externa”)
7. O árbitro de vídeo tem que estar em sala isolada e não pode ter contato com transmissão de TV, tampouco utilizar celulares e/ou outros aparelhos que lhe permitam ver/ouvir o jogo
8. A transmissão das imagens poderá ser da TV responsável
COMO DEVERIA SER, PELO BEM DO FUTEBOL
De cara, considero fundamental, que os “árbitros de vídeo” jamais se manifestem ou mantenham contato com o árbitro durante a partida. Principalmente, porque isso fere as Regras do Jogo. Esse headset que os árbitros principais carregam hoje em dia é, a meu ver, ilegal e antiético.
Fico desconfiado e acho lamentável que isso seja feito hoje em dia, sem que imprensa e torcedores tenham acesso ao áudio dessas conversas.
Já sei que, para manipular isso, podem incluir o “árbitro de vídeo” no grupo de arbitragem. OK, mas esse “árbitro de vídeo” não pode tomar a iniciativa de se comunicar com o árbitro principal, porque isso configuraria “interferência externa” e afronta às leis do jogo.
Lembre-se que a Fórmula 1 monitora e disponibiliza, para todos, o áudio das conversas de boxes e pilotos. No basquete, o sistema de vídeo fica à beira da quadra. No vôlei, todos vêem, no telão, o que está em julgamento. No tênis, também.
A GATUNAGEM QUE INCOMODA
Não se esqueçam que os sites de apostas entram cada vez mais firmes no futebol, com “patrocínios máster” em camisas importantes, propaganda nos estádios, e em transmissões e programas esportivos na TV.
Bom estar atento para o fato de que a corrupção na FIFA é endêmica, muitos presidentes e dirigentes estão em cana, o presidente da CBF não pode viajar pra fora do País, enfim a roubalheira come solta. E a coisa só estourou porque o Governo norte-americano identificou o uso do seu sistema financeiro para os golpes, e botou o FBI na rua para proteger os seus direitos
Por que não desconfiar de que jogos e resultados estejam sendo manipulados?
Lembrem-se que, outro dia, um árbitro foi “alertado” de que havia cometido um erro, dois ou três minutos antes, parou o jogo, ouviu o que diziam no ouvido dele, e voltou atrás, em flagrante interferência externa e infração às leis do jogo. Passou em branco, como se fosse a coisa mais normal do mundo.
A CULPA É NOSSA
O multipremiado jornalista investigativo escocês Andrew Jennings, 74 anos, já havia cantado a pedra, com o apoio do jornalista Juca Kfouri, que o trouxe ao Brasil, com apoio da ESPN, para entrevistas e até uma sabatina no Congresso Nacional (outro antro…).
Quero lembrar a vocês uma declaração de Jennings à porta do Congresso, mais ou menos assim, e que a imprensa preferiu não repercutir, na época: “Não adianta mais mandar me matar, porque o dossiê sobre a corrupção no futebol foi entregue às autoridades brasileiras”.
Jennings apareceu várias vezes no programa de documentários Panorama, da BBC britânica. O mais importante foi FIFA’s Dirty Secrets, exibido pela primeira vez em 29 de novembro de 2010, uma exposição de 30 minutos, que investigou denúncias de corrupção contra alguns dos membros da FIFA e do comitê executivo que votou na escolha da sede da Copa do Mundo de 2018 (Rússia).
Jennings alegou que Ricardo Teixeira, presidente da CBF e do Comitê Organizador da Copa do Mundo de 2014, Nicolás Leóz presidente da Conmebol e Hayatou Issa, presidente da CAF, receberam os subornos da empresa de marketing ISL que vendia os direitos de transmissão de TV da Copa do Mundo FIFA. E como demorou que as autoridades fizessem alguma coisa!
O JOGO SUJO DA FIFA
Entre outros livros importantes, Jennings é autor de Jogo Sujo: o mundo secreto da FIFA (Panda Books, 2011), onde ele já alertava sobre essa imundície que ameaça corromper o esporte mais popular do mundo. É dele também Um jogo cada vez mais sujo – o padrão FIFA de fazer negócios e manter tudo em silêncio.
Não é só ele. Muitos outros escritores e livros existem sobre o rumoroso assunto. Basta querer pesquisar no Google, comprar, ler e tomar conhecimento. O Governo norte-americano, o FBI e a Interpol quiseram.
UM PULGUEIRO ATRÁS DA ORELHA
Tenho medo que a maneira de burlar as regras para fazer o tal “árbitro de vídeo” ser o manda-chuva da parada, seja mudar as regras do jogo. Ou criar atalhos e regulamentações.
Mas, aí, ao invés dos benefícios e honestidade que a tecnologia trouxe para todos os outros esportes, teremos a desconfiança e o caos, eis que estamos falando de um esporte cuja entidade máxima foi devastada por corrupção e prisões.
Sem esquecer que altos mandatários do futebol brasileiro estão em cana, morreram com a pecha de corruptos, ou não podem sair do País, porque a Interpol está de olho neles.
E O QUE FAZER?
1. Determinar quando e que tipo de jogada pode ser suscetível de reclamação;
2. Delimitar quantidade de “desafios” por tempo de jogo;
3. Proibir qualquer comunicação online/tempo real entre o “árbitro central” e o “árbitro de vídeo” – que só seria consultado (e só poderia se manifestar) se e quando o “árbitro central” o solicitasse;
4. O sistema de avaliação de vídeo estaria disponível à beira do gramado, para consulta do “árbitro central”, sendo que a mídia tenha acesso online à conversação do “árbitro central” com o “árbitro de vídeo”.
5. À moda do futebol americano, o “árbitro central” comunicaria por microfone ao estádio a decisão tomada, e as imagens seriam apresentadas no telão do estádio, quando houvesse.
Não gosto nada dessa nomenclatura “árbitro de vídeo”, porque ela pressupõe que esse “árbitro” teria interferência na decisão da arbitragem, o que seria péssimo para o futebol, eliminando as vantagens da tecnologia com desconfianças.
QUANDO USAR A TECNOLOGIA
Sabendo que o “chip” na bola resolveu a questão da validação de um gol, será preciso determinar quando uma equipe, considerando-se prejudicava, lançasse um “desafio”, única e exclusivamente através do seu capitão.
Quais seriam essas hipóteses? Acredito que em apenas três únicas ocasiões, quando envolvendo questões capitais (lances de marcação de gol).
1. Marcação de impedimentos
2. Marcação de penalidades máximas
3. Marcação de mão na bola
E COMO SERIA?
· Uma equipe tem direito a apenas dois pedidos de “desafio” por jogo. Se “errar”, perde o desafio; se “acertar”, mantém os dois pedidos.
· Só o capitão da equipe “prejudicada” pode pedir revisão, desde que a partida não tenha sido reiniciada depois de marcação de gol.
· A decisão de cada “desafio” é final e irrecorrível; o time adversário não tem direito a réplica
É preciso tomar muito cuidado com a implantação da tecnologia no futebol. Estamos num momento em que a regulamentação precisa e correta, de como ela será usada (como foi com o “chip” na bola), vai determinar o sucesso ou fracasso da decisão.
Estamos nas mãos dos velhinhos do João Saldanha. E dos deuses do futebol.