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Cartunista

OTELO CAÇADOR, O REI DO HUMOR DO FUTEBOL

por André Felipe de Lima


(Foto: arquivo pessoal de Otelo)

A noite era apenas uma criança. Sempre foi no Leblon, especialmente em um bar chamado Degrau, que já se chamou “Progresso”, na rua Ataulfo Paiva. E foi naquela noite que dois amigos de unha e carne precisavam urgentemente se encontrar para falar da vida e, bem mais que isso, beber todas, claro, no aconchego etílico do Degrau, que se permitia ao luxo de ostentar dois telefones fixos, um para uso dos clientes especiais (como eles) e o outro para os que não assinavam ponto lá quase que diariamente. Definitivamente não era o caso de Luiz Reis, o popular “Cabeleira”, pianista de estirpe e calejo e sobretudo um notívago de primeira, e do amigo Otelo Caçador, jornalista, humorista e eterno apaixonado pelo Flamengo. Casaria com o clube se este fosse de carne e osso e linda mulher. Otelo largaria tudo pela “moça” Flamengo. 

Luiz Reis, que também era rubro-negro, estava completamente mamado. Trôpego, levantou-se da mesa e dirigiu-se ao tal telefone “cativo” dos clientes especiais. Disca o número e fala:

— Alô, é da residência do Otelo?

— Sim, senhor.

— Ele está?

— Não senhor, o senhor Otelo saiu.

— Saiu?!

—Sim, senhor, foi encontrar com o senhor Luiz, no Degrau.

— Onde?

Luiz Reis ficou meio aturdido e imaginando: “Encontrar com ele no Degrau? Isso é coisa de bêbado”. Encucado (e para lá de Marrakesh), Reis decidiu ligar para o número do telefone dos “não cativos” do Degrau.

— É do Degrau?

— Sim, senhor.

— O Otelo está?

— Sim, um momento que vou chamá-lo.

Abordaram o Otelo, que foi ao outro telefone, exatamente em frente ao que se encontrava o Luiz Reis. Eis, portanto, que a cena surrealista toma conta do Degrau:

— Otelo?

— Tá falando…

— Sou eu, você marca comigo e não aparece.

— Não aparece como? Faz uma hora que estamos bebendo e conversando.

— Conversando comigo? Bebendo comigo? Onde?

— Aqui no Degrau. Agora, por exemplo, estou na sua frente, do outro lado do balcão, deu pra notar?

— No balcão? No Degrau?

— Sem mudar um centímetro.

— Jura?… sacanagem… como é que você chega e nem me avisa. Faz um tempão que estou esperando e você ainda diz que é meu amigo.


O tradicional restaurante no Leblon (Foto: reprodução)

A cena hilária descrita acima faz parte da miríade de casos que teve Ótelo Caçador da Silveira como protagonista. Filho do general Joaquim Cardoso da Silveira e de Ida Caçador da Silveira, o sarcástico Ótelo assinou textos bem-humorados, caricaturas e charges para o Jornal dos Sports, onde começou a carreira em 1947, para a antiga revista O Globo Sportivo e para O Globo, no qual permaneceu por mais de três décadas a frente da coluna “Penalty”, que despertava a ira de vascaínos, botafoguenses e tricolores. Na seção “Placar moral”, o Flamengo jamais perdeu clássicos contra os rivais. Um deles foi o inesquecível Botafogo e Flamengo, de 1972, que terminou 6 a 0 para o Fogão. No dia seguinte, Otelo não pensou duas vezes e aplicou no “Placar moral” um rotundo empate (6 a 6) que amenizava a vexatória goleada sofrida pelos rubro-negros. A mesma coluna inspirou o técnico Cláudio Coutinho a se desculpar pelo terceiro lugar (sem derrotas) do Brasil na Copa do Mundo de 1978: “Fomos campeões morais daquela Copa”, justificava o “pai” do Overlapping.

Otelo levou para os jornais marcantes e jocosos apelidos para os clubes cariocas. Fez do Vasco o time do “Corvo” — dizia que o Corvo, em Portugal, era ave de bom agouro. Isso, dito por o torcedor do Flamengo só pode mesmo ser piada. Inventou o “Bariri” para o Olaria, a “Miss Lanterna”, o Tufão da Colina” (novamente em alusão ao Vasco), o “Fantasma do subúrbio” (Bangu) e, para a Copa do Mundo de 1950, o “Moço do samba”. O Fluminense também foi lembrado por Otelo, mais especificamente o goleiro Castilho. O apelido “Leiteria” teria sido criado pelo humorista em alusão à sorte fora do normal do goleiro tricolor.


Assinatura de Otelo

O primeiro cartum de Otelo foi publicado pelo Jornal dos Sports, em 1947. O gozador desenhou uma caravela, na qual o “Almirante” (vascaíno, ô pá!) travava uma ferrenha batalha contra seus temíveis adversários Pato Donald (Botafogo), Cartola (Fluminense), Popeye (Flamengo) e o Diabo (América), personagens criados pelo argentino Lorenzo Molas. “Foi meio acidental [o ingresso no Jornal dos Sports]. Eu tinha um amigo que trabalhava no Jornal do Sports e levou uns desenhos meus pra lá e o Mário Filho gostou. Otelo voltaria ao Jornal dos Sports em novembro de 1987. 

Para o amigo Paulo de Faria Pinho, Otelo e sua vasta cultura — além, obviamente, de suas lendas etílicas — ajudaram o Rio a ser mais Rio. O futebol carioca era mais feliz quando Otelo o desenhava. Os craques eram mais ídolos, os clubes mais queridos, enfim, o futebol respirava um ar puro e, digamos, mais originalmente carioca. Otelo era idolatrado e odiado, mas, no final das contas, sempre perdoado pelos torcedores, jogadores, técnicos e cartolas. 

Em novembro de 1970, o folclórico ponta-direita Cafuringa, do Fluminense, famoso pela velocidade e por entortar seus marcadores, prometeu uma homenagem inusitada ao Otelo: “Eu reconheço que não tenho apresentado um nível uniforme de produção. Mas em parte é devido à marcação que fazem em cima de mim. Além de ser marcado até pelo ponta-esquerda, tenho levado sarrafo que não é brincadeira. Mas não me descuido e estou treinando há quinze dias o drible prometido para o Fla-Flu: ‘Otelo Caçador’. E sei que ele compreenderá a minha homenagem. Acho-o um grande humorista, tem-me promovido demais com sua arte. A minha ferramenta é o drible e com ele vou agradecer ao Otelo.”

Otelo despertava um sentimento bipolar. Que o diga o ex-técnico Gentil Cardoso, uma espécie folclórica do futebol carioca do passado igualmente ao Joel Santana no presente. “O Gentil Cardoso queria me pegar só porque eu inventei uma história em quadrinhos, inspirada nele, chamada o ‘Morcego negro’. Outro foi o Zezé Moreira. Uma vez, em Manchester, na Inglaterra, nós nos cruzamos no elevador. Ele, que não me conhecia pessoalmente, perguntou a um amigo: ‘Quem é esse tal de Otelo? Ai se eu pego ele!’. E eu lá, sem saída.”


Homenagem do Chico Caruso

Os cartunistas Ediel, Jaguar, Ykenga, Ferreth  e Leonardo entrevistaram o mestre Otelo na década de 1990. Aos cinco colegas, Otelo contou ter sido orientado por Mario Filho, então dono do Jornal dos Sports e sócio do Roberto Marinho na revista O Globo Sportivo, trocar o nome: “Por causa do Grande Otelo. Ele [Mario Filho] disse: ‘Por mais conhecido que você se torne, você jamais será tão popular quanto o Grande Otelo. Por que você não assina Caçador?’ Mas eu queria que os garotos da minha rua — a João Lira, no Leblon — soubessem que era eu, Otelo, quem fazia aqueles desenhos no jornal. Aí ficou Otelo mesmo.”

Otelo começou no jornal O Globo fazendo charges diárias, em 1951. Mas era pouco para o seu potencial humorístico. Dois anos após a estreia de Otelo, Roberto Marinho percebeu isso e o chamou num canto para um papo: “’Você é capaz de fazer uma página de humor?’. Eu, garoto, disse que sim. E realmente fiz essa página durante 33 anos. Ganhei 23 prêmios e a página foi um grande sucesso”. De 1953 a 1986, quando um problema na coluna o afastou da redação e do ofício que mais amava fazer. Neste longo período, assinou a coluna “Penalty”, publicada às segundas-feiras pelo jornal O Globo, trazendo como subtítulo “pênalti não é coisa que se perca”. Uma expressão que hoje se repete ad nauseum é invenção do Otelo. A coluna “Penalty” rendeu dois volumes de “O Livro negro do Penalty”. O primeiro, lançado na década de 1960, chegou a vender 25 mil exemplares. Um recorde, na época. “Eu comprei um apartamento em Laranjeiras com o dinheiro do livro. Aí fiz o segundo e não aconteceu nada.”

O jocoso Otelo alertava aos incautos: “Humorismo e futebol é bastante perigoso”. Narrava histórias que deixavam o mais incrédulo dos homens de joelhos. Algumas delas, as intermináveis “ameaças de morte” de que se dizia vítima. “Já fui ameaçado de morte e reclamação é uma constante. Enfrentar personagens como Yustrich, Moisés, Renê, Brito, Paulo Amaral, não é fácil. Anatole France disse que livros históricos que não contêm mentiras são extremamente tediosos. Meu livro tem muita coisa de história do futebol e muita mentira. Certa época, inventei que o técnico Feola dormia durante os jogos e Havelange contratara um garoto para ficar soltando foguetes perto do ‘gordo’, a fim de mantê-lo acordado. Durante a partida, muitos torcedores olhavam o túnel onde o técnico ficava para ver se o doce Feola estava dormindo mesmo.”

NEM TODAS AS PESSOAS INTELIGENTES SÃO HUMORISTAS, MAS TODOS OS HUMORISTAS SÃO INTELIGENTES E… MODESTOS”

Bares do Leblon, futebol e Flamengo, as três maiores fontes de inspiração para Otelo Caçador da Silveira, filho do general Joaquim Cardoso da Silveira (morto em 9 de novembro de 1952) e de Ida Caçador da Silveira (morta em 1962). Gostava tanto de futebol que antes mesmo de se tornar o grande mestre da charge futebolística arriscou-se, ainda rapaz, como aspirante no Flamengo, mas foi barrado pelo técnico Flávio Costa. “Fiquei revoltado. Depois, por vingança, esculhambei com a profissão dele. Mas eu era ruim mesmo”. Otelo jamais escondeu ter sido um peladeiro de quinta categoria. 

Toda vez que alguém perguntava sobre seu desempenho como jogador, respondia conformado e na lata, sem salamaleques: “Era muito ruim. Eu era ponta-esquerda que era mais próximo do vestiário. Era o primeiro a ser substituído”, confessou aos cinco colegas cartunistas, com os quais ficou cerca de cinco horas rememorando sua vida em meio a intermináveis rodadas de chope no Bar Degrau, no Leblon, bairro que amava tanto quanto o Flamengo, embora tenha nascido no Irajá. Aliás, o nome do famoso bar teria sido ideia do próprio Otelo, que sempre reclamou para si esta primazia. 


O Degrau era apenas um bar (quase) sem nome. Ninguém conhecia, ou se conhecia mencionava-o apenas como “aquele bar ali da Ataulfo”. Otelo, quando marcava encontros com Paulo Mendes Campos ou com Haroldo Barbosa, dizia que o local era aquele bar que tinha vários degraus. Como narra o advogado e amigo Paulo de Faria Pinho: “De degraus em degraus, por esperteza dos donos, acabou virando Degrau.”

O Degrau — frisava Otelo — era como se fosse seu “escritório sobressalente”. Lá, bebeu muito chope com o amigo Cafuringa — a quem comumente se referia como “estraçalhador” — e Garrincha. Volta e meia o papo sobre o futebol cedia vez ao turfe. Otelo era fã do esporte dos reis desde a mocidade. Era figura constante nas carreiras do Hipódromo da Gávea junto com outro cobra do jornalismo esportivo de outrora, o grande Geraldo Romualdo da Silva. Em 1972, ameaçaram demolir o Degrau. Otelo quase morreu de desgosto. Como acabar com o bar que lhe proporcionava as ressacas mais felizes que já teve? Aliás, o cartunista tinha uma “excelente” e “infalível” receita para curá-las. Rezar para o tempo passar. “Qualquer dia o homem descobre a cura para a Aids, mas ressaca é uma punição. Não tem jeito, só o tempo resolve. Nesta horas, além de rezar, é bom estar perto da mulher amada. Não acaba com o problema, mas, pelo menos, alivia.”

Biritagem era com Otelo, um camarada cheio das histórias que renderiam uma interminável enciclopédia de crônicas sobre a noite e o futebol cariocas. Nos tempos do Jornal dos Sports, sugeriu uma feijoada “honestíssima” — como escreveu o colunista Zé de São Januário (pseudônimo do jornalista e amigo Álvaro do Nascimento) — ao pessoal da redação. O próprio Zé entraria com a feijoada, Mario Julio Rodrigues (filho do Mario Filho) com o chope, Mario Rezende com a cachaça e Luiz Bayer com as laranjas.

Mario Rezende perguntou ao Otelo, cuja fama de malandro já era notória naquela época: “E você entra com quê?”. A cara de pau de Otelo não tinha limites: “Entro com a cara e a coragem.”

Otelo gostava (e muito!) de um bom copo. Uísque e chope, principalmente. Quando não estava no Degrau, dava pinta no Bracarense, na Rua José Linhares, um bar no qual esbarrava constantemente com Valido, um de seus ídolos rubro-negros da década de 1940, e o jornalista Maneco Muller, o “Jacinto de Thormes”. No velho “Braca” discorreu incansavelmente sobre as vitórias e títulos do seu Flamengo e também sobre as derrotas, que, como já dissemos, amenizava-as como o seu indefectível “placar moral”.

Otelo orgulhava-se de dizer que a especulação imobiliária que tomou Ipanema de assalto passara direto para a Barra da Tijuca, ignorando o Leblon. O tempo mostraria que a tese era furada. Foi ele, Otelo, o “prefeito” mais perfeito que a “República do Leblon” já teve. Um cara que teve até rede de vôlei na praia do Leblon batizada de “Otelo Caçador”. Pouca gente sabe, mas o então garotão Otelo era presença constante nas areias da praia do Leblon, ou jogando futebol ou praticando vôlei. Nadar também era uma de suas predileções esportivas. Há registros disso no Jornal dos Sports, de 1948. Como também há, na mesma época, dezenas de notícias sobre um inusitado campeonato de pipas. Tudo patrocinado por Mario Filho, que era até o diretor geral das competições. Otelo era o braço-direito do patrão na organização do campeonato de pipa.


Além do Degrau, Otelo frequentava o Bracarense no Leblon (Foto: Gustavo Stephan)

Otelo chegou ao bairro da zona sul ainda bem pequeno, quando o Leblon ainda tinha burro pastando e se dormia com a janela aberta. Definia o Leblon como a “Zona Sul/ Zona Norte”. Quem perguntava a ele sobre o bairro, logo dizia que as figuras de bodes e carneiros pastando jamais lhe saíam da memória. No lugar do que há hoje no Leblon, como prédios e efervescência de moda, havia fazendas. Quem mudou tudo foi o prefeito Henrique Dodsworth, entre as décadas de 1930 e 40, durante o Estado Novo. Para Otelo, o bairro manteve-se independente: “Era a República livre do Leblon.”

Chamava-se Otelo porque o pai era fã de ópera e o sobrenome Caçador é de uma família oriunda do norte do país. Tomou gosto pela caricatura ainda menino, nos tempos de colégio. O passatempo predileto era desenhar a cara do professor e criar pequenos quadrinhos. Ler que é bom, nada. Foi tocando o barco. “Era meio folgado e brigava muito. Na verdade, apanhei mais do que bati”. Ótelo alegava que jamais foi “expulso” do colégio. Apenas levava “cartão vermelho”.

Em janeiro de 1958, por muito pouco deixou de ver a Copa do Mundo da Suécia e, consequentemente, o primeiro título mundial do Brasil. Era um sábado e estava a pé. Decidiu aceitar a carona de um amigo que dirigia uma frágil lambreta. Na altura da rua Paula Freitas, em Copacabana, um camarada avançou o sinal com o carrão e o atropelou e ao lambreteiro. Os dois se arrebentaram, mas nada grave. Otelo passou o fim de semana sem uma gota sequer de álcool no sangue e, o que é pior, perdendo tempo na delegacia para registrar queixa contra o tresloucado motorista.

Mas quem queria mesmo registrar queixa contra ele eram alguns jogadores e técnicos. O zagueiro Brito, famoso pela sua notória cara feia e o jogo enfezado, foi um dos que queriam ver o Diabo e jamais o Otelo pela frente. O cartunista foi ao programa do Chacrinha e diante do apresentador e do próprio Brito desenhou o jogador. Brito olhou a ilustração, coçou a cabeça e, com cara de poucos amigos, emendou, sem importar-se se estava ao vivo ou não na TV: “Essa merda não sou eu, não.”

Os jogadores e suas patacoadas eram suas principais “vítimas” nas charges ou notas.  Ao longo da jornada na imprensa, a coluna de Otelo apresentou seções fixas, como a “Escrete pernas de pau”. As mais célebres foram, porém, “Diploma do Sofredor” e o “Placar Moral” — nesta, “curiosamente”, seu time, o Flamengo, jamais perdeu. Foi uma solução que Ótelo encontrou para “corrigir”, às segundas-feiras, em O Globo, todas as “injustiças” cometidas contra o Flamengo nos domingos de Maracanã. Na coluna do Ótelo, o rubro-negro era um eterno invicto. “O máximo que eu permitia era um empate.”


Pelé por Otelo (Foto: reprodução)

Nenhum — mas nenhum mesmo — escapava da piada ou traço mordaz de Otelo, que priorizava os comentários e charges sobre a rodada do final de semana do Campeonato Carioca e a Seleção Brasileira. Foi um frasista insuperável. Em 1982, o escrete canarinho encantava o mundo, mas Otelo não confiava nem um pouco no goleiro Waldir Peres: “Quem planta Waldir Peres só pode colher frangos”. Pelé, e isso poucos sabem, teve a alcunha de “Rei do futebol” a ele pela primeira vez conferida por Otelo Caçador, na Copa do Mundo de 1970. “Tinha visto um filme do Victor Mature, ‘O Rei do Futebol’ [na verdade chamava-se “Easy Living”, de 1949], sobre futebol americano, rugby. E no Brasil tinha rei de tudo: ‘Rei do Baião’, ‘Rei do Rádio’… aí eu lancei o Zizinho como ‘Rei do Futebol’. Desenhei o Zizinho com coroa, cedro e tudo. Mas não colou. Depois, com o Didi, também não colou. Quando fiz o Pelé, colou na hora, porque ele realmente era o rei. Hoje, o Pelé diz que foi a imprensa francesa que deu a ele o título de rei do futebol. Mas ele tá certo. Entre um cronista do Leblon e a imprensa francesa, ele preferiu a imprensa francesa que dá mais cartaz a ele”. 

Se isso é verdade, só Ótelo [se ainda estivesse vivo, claro] ou um antropólogo e bom peladeiro poderiam confirmar. É dele também as célebres frases e termos futebolísticos como: “Montinho artilheiro”, “Todo campeonato tem um campeão moral”, “Pênalti não é coisa que se perca”, “A torcida do Botafogo cabe numa Kombi”, “Coração de torcedor pobre não bate. Apanha” e, claro, “Zico: joia de família do Flamengo” e o “Manto sagrado”. Mas a frase mais célebre, sem dúvida é a “Brasileiro que não entende de futebol já nasceu morto”.

Gostava de tirar onda porque — afirmava categoricamente — ter sido o primeiro humorista a se tornar correspondente internacional e a ser recordista do número de cartas sobre futebol na América Latina.

Sabe-se lá como, sobretudo em uma época onde era difícil se obter o número telefônico da casa do indivíduo, torcedores (a maioria gente jovem) davam um jeito de conseguir o telefone do Otelo. Na segunda-feira, o apartamento dele próximo a Praça Antero de Quental parecia-se com uma sede da antiga Telerj. Um telefonema atrás do outro de garotos, especialmente os que torciam pelo Vasco e Botafogo, sentindo-se injustiçados pelos traços e comentários debochados do humorista. Um dia a Portuguesa da Ilha do Governador levou uma sova do Botafogo. Caçador espalhou a piada de que os jogadores da Portuguesa perguntavam entre si: “E agora, vamos ganhar de quem?”. Torcedor do Flamengo reclamando? Jamais. “Dizem que o Flamengo fica na Gávea, mas não, o meu clube fica no Leblon.”

Sua coluna voltaria a ser publicada em 1999, mas em outro jornal, o Extra, onde a “Penalty” permaneceu ativa até 2002. 

Ótelo Caçador, que nasceu no dia 30 de novembro de 1925, tinha 80 anos quando morreu numa terça-feira, no Rio de Janeiro, no dia 24 de janeiro de 2006, após três meses internado. Marcio Braga era o presidente do Flamengo na ocasião e determinou luto de três dias. No domingo seguinte haveria um Fla-Flu no Maracanã. Na segunda-feira os jornais não teriam mais o traço bem-humorado de Otelo. Os bares do Leblon não seriam mais os mesmo sem ele. Bebeu neles com gente de estirpe cultural. Bebeu com João Saldanha, com Tom Jobim e com Paulo Mendes Campos. Foram eletrizantes e etílicos clássicos “Botafogo e Flamengo” contra os três. Mas o maior amigo de birita foi mesmo o compositor e pianista Luiz Reis.


Otelo jamais escondeu sua paixão pelo Flamengo (Foto: Leonardo Aversa)

A paixão pelo Flamengo era notória, mas o Leblon (seus bares, naturalmente) e Otelo pareciam um único ser. “A Bahia, diz (Dorival) Caymmi, tem 365 igrejas. O Leblon tem 365 bares. É uma verdadeira Brodway”. Ou como escreveu em sua crônica “Planeta Leblon”: “O Leblon é um bairro de bermuda (…) Como já disse o Luiz Reis (um lebloniense inesquecível), o Leblon da Zona Sul é a nova Vila Isabel.”

Otelo, que não teve filhos e foi casado durante 44 anos com a querida Denir a quem chamava carinhosamente de “Dena”, foi inapelavelmente o “campeão moral” do humor. “Todo o dinheiro que eu ganhei na minha vida, ganhei desenhando. Cheguei a ter três apartamentos na zona sul”. Otelo revirou do avesso o adágio “um dia da caça, outro do caçador”. Para ele só havia o dia do caçador e da boa e inteligente piada. Jamais contra o Flamengo. Isso, nunca. Se Pelé foi o “Rei do futebol”, Otelo foi o “Rei… do humor no futebol”.
***

OTELO E SEUS FAMOSOS FÃS

NILTON SANTOS, ÍDOLO DO BOTAFOGO: “Que saudades dos tempos de Botafogo. A página do Otelo era leitura obrigatória em General Severiano. Fui personagem dele muitas vezes e tenho muitas charges guardadas. Uma das mais bonitas que vi foi uma do Garrincha fazendo o Maracanã de bambolê.”

JUNIOR, ÍDOLO DO FLAMENGO: “Eu curtia muito as piadas sem agressividade, o placar moral no qual o Flamengo nunca perdia e as frases soltas diante de situações do cotidiano.”

CASSIO LOREDANO, COBRA E ÍDOLO NA CARICATURA: “Filho de militar, a segunda-feira podia me apanhar em qualquer lugar do Brasil. Da fronteira uruguaia ao interior de Minas, Curitiba, ou na Vila Militar, em Deodoro. O invariável era a presença de Otelo com o seu Penalty na minha infância. Suas caricaturas foram a minha primeira influência na futura escolha da profissão.”

CHICO CARUSO, COBRA E ÍDOLO NA CHARGE: “Otelo, o verdadeiro grande Otelo (1,80m) é um carioca leblonense fundamentalista, uma espécie de Aiatolá da folia e bom de papo, que costuma dar aula particular aos amigos no Bracarense das 14 às 16 horas, com entrada franca. Um observador privilegiado do futebol e da vida, do tempo em que ambos eram risonhos e francos.”

FERNANDO CALAZANS, ENTENDE TUDO (E UM POUCOS MAIS) DE FUTEBOL E JORNALISMO: “Nem pensava em ser jornalista quando comecei a ler o Otelo no Globo. Era leitura obrigatória de todo torcedor de arquibancada. Depois, já em jornal, fui revê-lo no Bracarense, onde tomávamos um chopinho juntos. Isto é, no tempo em que eu tomava chopinho em pé no Bracarense. Era um conversador brilhante com uma língua bastante ferina.”

JOAQUIM FERREIRA DOS SANTOS, COBRA. CRACAÇO DA CRÔNICA: “No Placar Moral dos anos 60, a vitória era sempre dos craques talentosos — e aqui fica o agradecimento de um moleque da Vila da Penha pela lição de jornalismo do grande Otelo.”