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OS VINGADORES

por Zé Roberto Padilha

Felipe, meu neto, completou seis anos no sábado. Como ele ama o futebol em primeiro lugar, o Fluminense em segundo e o Atlético Mineiro em terceiro, tive que buscar inspiração para lhe comprar o presente, pois já ganhou todas as fitas do Playstation, tênis  e chuteiras diversas, camisas até da Copa da UEFA, bolas diversas e figurinhas do álbum do Brasileirão. Encontrei uma bola diferente, de Rugby e mandei embrulhar. Ao recebê-la, abriu um sorriso de criança diante de algo diferente, agradeceu e saiu para bater pelada no campinho do sítio com os amigos. Pelada de bola redonda do futebol brasileiro. Do pai, ganhou de presente uma ida no domingo à Volta Redonda para ver o Fluminense jogar.

Quando partiu, parti junto com as minhas lembranças da primeira vez que fui ao Maracanã ver o nosso tricolor jogar: 18 de dezembro de 1960. Tinha oito anos e era decisão do Campeonato Carioca. Público pagante: 98.099. Placar: América 2×1, com gols de Nilo e Jorge, contra um de Pinheiro. Voltei de lá tão fascinado, e contrariado, que pedi uma chuteira para o meu pai e, como Van Damme e Bruce Willys, prometi um dia ser jogador de futebol do Fluminense para nos vingar daqueles vermelhos. Ela, a vingança, demorou 15 anos e estava na ponta esquerda quando Rivelino, diante de 96.047 pagantes, desferiu uma bomba como Hiroshima que dizimou não o Japão, mas um País. O goleiro do América. Para a vingança ser completa, faltaram ao estádio apenas 2.052 torcedores.


Chegando ao Raulino de Oliveira, Felipe encontrou na sua estreia apenas 2.860 pagantes. Não viu de perto o duelo de Castilho, Pinheiro e Altair versus Calazans, Quarentinha e Nilo. O nosso ataque era  Maurinho, Valdo, Telê e Escurinho. Domingo, a disputa foi do Edson contra Fernandes, Gum marcando Ribamar. Em 1960, raros eram os passes errados, pois se a bola é que corria, não os jogadores, sua posse e uso era tratada com extremo carinho. Faltavam cinco minutos para terminar Fluminense x Botafogo e o “scout”da Globo já apontava 75 passes errados. Deve ter passado de um por minuto jogado. O próprio gol que decidiu a partida não saiu de uma jogada trabalhada. Saiu de um passe errado.

Quando acabou a transmissão, minhas memórias fizeram com o Felipe a viagem da volta. Fiquei a imaginar entrando no carro decepcionado, e no lugar de vir contando as obras de arte do Telê, o chute decisivo do Jorge, voltou calado perante a falta de inspiração do Salgueiro, que nem que se juntasse a Beija Flôr e a Mangueira, estaria a altura da camisa que foi do Gérson. E do Afonsinho. Fora Cícero e Scarpa, que poderiam vestir a 10 do Telê, se enfiando pelas pontas no lugar de centralizar suas jogadas, encostar no Fred, tabelar e procurar o gol. Que sempre será o grande momento do futebol.

Eram 20h30 quando chegou de Volta Redonda. Liguei para ele: “E aí? Gostou, Felipe?” Mais ou menos, respondeu. E devolveu: “ Vô, tem escolinha de futebol americano em Três Rios?”. Pelo visto, meu neto veio da estréia querendo se vingar também. Não do América ou do Botafogo. Mas do futebol brasileiro. 

CONTRA O PENTE FINO DO FUTEBOL

texto: Lucio Branco | vídeo: Daniel Perpétuo

Barba, Cabelo & Bigode, documentário em longa-metragem que aborda a trajetória dos craques da bola – e da dissidência consciente – Afonsinho, Paulo Cézar Caju e Nei Conceição, não é exatamente um projeto recente. Impossível negar que há algo de muito pessoal na sua origem…

Data dos inícios da minha puberdade a admiração que trago por Afonsinho e Caju, duas personalidades únicas que me ensinaram que esse negócio de ser você mesmo é, embora raro, artigo de primeira necessidade na sobrevivência moral de todo dia. Um sentimento que se confundia — coisa típica da idade — com o orgulho de sabê-los revelados profissionalmente pelo Botafogo de Futebol e Regatas, agremiação da qual a fatalidade e o livre-arbítrio me fizeram torcedor.

Eis aí outra condição comum, o que fazia crescer ainda mais esse orgulho: apesar de tudo, eles nunca deixaram de torcer pela Estrela Solitária. (“Apesar de tudo” é uma ressalva que vai ser melhor explicada parágrafos abaixo.) Na minha ótica, não concebia — e ainda não concebo — a possibilidade de ter sido outro o clube a revelá-los. Não demorou muito para conhecer o Nei Conceição e as mil afinidades com os seus dois colegas alvinegros. A trinca capilar que intitula o filme então se fechava com um jogador que, diziam, preferia treinar com os Novos Baianos do que em General Severiano. O que poderia ter mais apelo para um adolescente que já sabia que ouviria a banda do Moraes Moreira com o mesmo interesse aos 40?

Repito: sou de novembro de 1974. O que significa dizer que escolhi — e como disse, também fui escolhido — torcer por um clube num momento no qual se atropelava em crises que insistiam em querer deslustrar a sua monumentalidade. Todas foram em vão. (E ainda estão sendo, porque, após um intervalo considerável, as mesmas forças voltaram a operar em nosso desfavor.)

Traindo o gosto pela autossabotagem ao longo de sucessivas gestões de uma cartolagem disposta a realizar os sonhos mais secretos dos adversários, o Botafogo foi deixando de corresponder à minha fidelidade militante. Fenômeno que não espanta: — basta considerar a sua cega adesão à estrutura feudal do futebol brasileiro desde sempre. (Temos que levar em conta que esta não é uma exclusividade sua.) Mesmo quando este, o futebol brasileiro, era o maior do mundo — principalmente por sua causa, como nos aponta o rigor factual dos eventos acontecidos em campo.

A esse respeito, não me deixam mentir a crise que se instalou imediatamente após a contribuição generosa do Glorioso na conquista da Jules Rimet, no México, em 1970. E, também, a derrota no apito sofrida pela Selefogo, na final do campeonato estadual do ano seguinte. Afonsinho, Caju e Nei foram personagens que atuaram direta e/ou indiretamente nessa fase de conquistas, mas, também, de alguns reveses. Ambos estão inscritos na História e no Mito, os quais se recomenda não contrariar — principalmente as conquistas. Quem viveu a época sabe bem: adentrar o gramado surrado de General Severiano parecia a melhor forma de encurtar o caminho até a convocação para o escrete canarinho.

De resto, a contribuição que esses três dão à mística da Estrela Solitária, fazendo jus à significação de um emblema tão ímpar, tem a ver com a vocação do Glorioso contar com uma galeria de personagens que, individualmente, primam pela distinção pessoal com (todo o) respeito aos seus colegas das demais agremiações. A vitoriosa geração alvinegra que antecedeu a de Afonsinho, Caju e Nei contava com outro trio de peso no quesito humano, demasiado humano: Garrincha, Didi e Nilton Santos. E para fazer brilhar ainda mais essa constelação, não custa lembrar que eles foram treinados por ninguém menos que João Saldanha.


Afonsinho

Já vivi a situação inúmeras vezes… Quando, entre conhecidos ou não, vinha à baila o tópico — às vezes até algo elitista — dos “jogadores diferenciados”, os nomes que protagonizam Barba, Cabelo & Bigode quase ou nunca eram mencionados. Fatalmente, o Sócrates era o primeiro da lista. Curiosa a infalível citação ao jogador que bravamente conseguiu conciliar futebol, medicina e ativismo político sem abrir mão de “viver a própria vida”. Sempre me soou estranha a indiferença para com o fato de que o Afonsinho havia indicado como se trilhar exatamente o mesmo caminho, além de ter enfrentado — e vencido — a luta pelo passe livre.

O paralelo com a Democracia Corintiana, experiência de autogestão que marcou a história do Parque São Jorge e do Brasil da abertura política, é incontornável. Porém, a meu ver, seria mais justo — porque a cronologia é um critério que julgo relevante — que o movimento inverso fosse mais frequente. Ou seja, que fosse feita menos eventualmente a menção aos craques libertários do Botafogo quando o assunto em pauta fosse os ventos de autonomia que varreram o clube paulistano no início da década de 1980. Mesmo se levando em conta que, anos antes, o esforço alvinegro não tenha ganho contornos coletivos, não obstante todas as tentativas nesse sentido. Entre as perguntas para o Afonsinho, eu mesmo não hesitei em levantar a questão, e não deixando de ressalvar o aspecto técnico (com exceção apenas para o seu colega de posição e estetoscópio), de que há alguma afinidade de fundo entre os binômios Afonsinho/Sócrates, Paulo Cézar Caju/Vladimir e Nei Conceição/Casagrande. O Camisa 8 do Time da Consciência considerou “interessante” a associação, mas sem deixar de concordar com a minha colocação de que o seu pioneirismo político e o dos seus parceiros capilares era uma especulação a ser mais levada a sério por mim do que por eles próprios.


Os três craques davam trabalho aos marcadores

O Botafogo nunca gozou do mesmo prestígio junto à grande mídia e das agências de publicidade que, inegavelmente, contribuíram para a consolidação do fenômeno da Democracia Corintiana junto a sua numerosa torcida e para além dela. Não vai aqui nenhuma restrição ao fato, apenas uma constatação. O que ajuda a explicar como o clube carioca teve que lidar com forças contrárias até mesmo à evidência do seu apogeu, que tanto contribuiu para fazer do imaginário do futebol brasileiro o que é. Só para lembrar: o apogeu alvinegro coincidiu, não por acaso, com a era de ouro da modalidade entre nós.

A trincheira na qual se meteram os três foi justamente num momento em que a artilharia contrária era muito mais pesada. Estamos falando principalmente da era Médici, o período mais repressivo de uma ditadura que interviu diretamente no futebol para se legitimar junto à população e tentar passar menos comprometida à História. (A se levar em conta o processo de desavergonhamento do reanimado conservadorismo à brasileira dos últimos tempos, não se pode dizer que foi um projeto malsucedido.) A rotina dos clubes passou a ser regida pelos mesmos códigos que já vinham condenando o país ao arbítrio. Afonsinho, Caju e Nei enfrentaram a imposição das cartilhas de comportamento nos clubes, a lei do passe, o regime de concentração, o controle sobre as condutas extracampo etc.


Paulo Cézar Caju

Na frase promocional da campanha de financiamento colaborativo de Barba, Cabelo & Bigode que a plataforma Benfeitoria me solicitou, digo: “Da desobediência civil em plena militar ao 7X1: Afonsinho, Caju e Nei Conceição falam tudo”. O conceito de desobediência civil talvez não dê conta do espírito de grupo que sempre foi a tônica da atitude geral dos três, mas, mesmo assim, é válido. Não lhes sobrou outra alternativa senão se isolar na sua franca oposição aos desmandos praticados ou expressamente autorizados pela CBD, seja na seleção, ou nos clubes onde atuaram. A condenação à impossibilidade de se articular com os colegas de time que cada um deles sofreu acabou encontrando uma boa solução metafórica no filme: registrada em inúmeros planos, a resistente Ilha de Paquetá, onde o Afonsinho mora e trabalha, e que o Nei tanto frequenta, é o principal cenário do filme.

Cinema e futebol sempre foi um casamento pouco estável no Brasil. Há as raras e muito honrosas exceções — todas no campo do documentário — que não podem ser negligenciadas. Fiz a minha parte indo atrás das devidas autorizações do uso de algumas das suas respectivas imagens no filme. Falo de Garrincha, Alegria do povo, de Joaquim Pedro de Andrade; Subterrâneos do futebol, de Maurice Capovilla, Passe livre, de Oswaldo Caldeira; e Futebol, de João Moreira Salles. Além do óbvio aproveitamento temático para o filme, há a questão da preservação da memória audiovisual, um princípio no qual pomos fé. Afinal, não é agradável, por exemplo, ver as mesmas cenas do filme do Joaquim Pedro restritas apenas a matérias telejornalísticas suspeitas, em sua maioria.

Para concluir, retomo o viés pessoal do início do texto. Quero falar de uma herança deixada pela experiência de filmar Barba, Cabelo & Bigode. O Trem da Alegria, time itinerante criado em 1975 para abrigar jogadores desempregados e artistas com fome de bola capitaneado pelo Afonsinho, e que tem como hino uma composição do João Nogueira nunca gravada, serviu de inspiração, juntamente com os mais recentes Autônomos FC e Rosanegra Ação Direta e Futebol, ambos de São Paulo (todos os três estão no filme), para a criação do nosso bravo Radical Contra FC, que traz uma efígie do Buenaventura Durruti no escudo e o Nei Conceição como patrono.

Quando soube da ideia, nosso camisa 5 coçou o bigode que não tem mais e a aprovou na hora.


Lucio Branco é cineasta só porque a era digital aconteceu.

Abaixo, o perfil (também redigido pelo autor do artigo) dos protagonistas deste documentário em longa-metragem:

 

Afonsinho

Afonso Celso Reis Garcia, o Afonsinho, é conhecido por ser o primeiro jogador a conquistar o passe livre no futebol brasileiro. A aura de jogador rebelde, além de confirmada na barba e nos cabelos compridos quando ninguém ainda os exibia nos gramados, transparecia na consciência política desenvolvida em plena ditadura militar. Evidentemente, esses são aspectos singulares. Mas há algo que deveria ser considerado com mais frequência sobre ele: é que o seu engajamento talvez não tivesse a mesma ressonância histórica não fosse a sua intimidade com a bola. Afonsinho foi um craque monumental. Isso, por si só, já lhe atraía os holofotes. E o fato de nunca ter sido convocado para a seleção nada teve a ver com critérios técnicos.

Ainda muito novo, Afonsinho era uma promessa nas divisões de base do XV de Jaú. Apostando no próprio potencial, fez as malas para o Rio de Janeiro em 1965, movido pela mesma vontade de independência que foi a constante da sua carreira. O apelo da mística do Botafogo de Garrincha, Didi e Nilton Santos falou mais alto e ele não hesitou em escolher o seu novo destino na metrópole. Após breve passagem pelos juniores, Afonsinho foi alçado à condição de reserva, e logo, à de titular na meia-direita na equipe principal de General Severiano. Ciente da curta vida útil do atleta profissional, e também pelo desejo de se emancipar, dividia o período de treinos e concentração com a faculdade de medicina. E não demorou a se converter, para a diretoria, numa incômoda exceção à regra.

Afonsinho era articulado e exercia uma liderança espontânea entre os companheiros. Defendia direitos elementares que só o clube teimava em não considerar como tais. O pagamento em dia dos prêmios pelas vitórias do time era um deles. O diretor de futebol Xisto Toniato e o técnico Zagallo passaram a vê-lo como muito destoante do restante do grupo. A começar pela sua aparência.Implicaram com a sua barba rala, o cabelo um pouco maior que o permitido pelo padrão vigente. Em protesto, deixou-os crescer ainda mais. Afonsinho reivindicava melhores condições de trabalho para si e os outros jogadores. Dentre todas as reivindicações, a do passe livre tornou-se aquela que historicamente mais se associaria ao seu nome. Verdadeiro grilhão que aprisiona o jogador ao clube, o passe era — e ainda é, para quem não o detenha — a principal garantia de controle sobre os atletas por parte dos cartolas. Após longa batalha judicial contra os dirigentes alvinegros pela disputa do seu passe, a Justiça, de forma inédita (e inesperada), deu-lhe ganho de causa. O sinal de alerta foi ligado nas outras agremiações. O camisa 8 tornou-se um exemplo perigosamente influente dentro do sistema do futebol brasileiro.

General Severiano foi a primeira estação da sua trajetória cigana pelo profissionalismo. Uma trajetória marcada, principalmente, pelos embates com a cartolagem e os códigos disciplinares de todos os clubes pelos quais jogou. Além dos outros três grandes do Rio, a lista inclui Santos, Olaria, Madureira e América-MG. Não é de surpreender que fosse fichado no DOPS, ou que tivesse seus passos vigiados de perto tanto nas concentrações — mesmo quando em excursões internacionais — como na sua rotina universitária. Os infiltrados devem ter tido muito trabalho, já que Afonsinho frequentava círculos que não só o do futebol. A amizade com músicos rendeu “Meio de campo”, de Gilberto Gil, em louvor a sua luta. A canção aparece como um dos elementos narrativos de Passe livre, formidável documentário em longa-metragem de 1974, de Oswaldo Caldeira, que flagra o seu nomadismo clubístico ao sabor das desavenças que ia acumulando com dirigentes e treinadores. Entre as rescisões de contrato, excursionava em esquema mambembe com o Trem da Alegria, time que reunia artistas, jornalistas e jogadores temporariamente desempregados como ele. Era a solução para se manter em forma e melhor viver a liberdade conquistada.

Contestador em nome da classe, e não por ressentimento pessoal, Afonsinho se relaciona com o mundo à maneira do seu antigo fino trato com a bola. Outros reivindicaram direitos antes dele, mas nenhum o fez com tamanha consciência. Ou mesmo conseguiu conquistá-los como ele conquistou. Isolado, lutou pioneiramente por todos. Foi, com o perdão do trocadilho, um solidário solitário. E também um revolucionário, fazendo jus ao título como ninguém. Outros dissidentes do futebol trilharam o caminho que ele pavimentou. Quanto à lei do passe, até os atletas mais alienados vieram a ser beneficiários do seu gesto precursor. A geração atual de jogadores profissionais não sabe, mas tem uma dívida descomunal para com Afonsinho.

Paulo Cézar Caju

Quando Paulo Cézar Caju iniciou a carreira, os negros que atuavam no futebol brasileiro não eram exatamente conhecidos por manifestar consciência racial. É evidente a contribuição da cultura negra à reinvenção local dessa modalidade esportiva originalmente europeia. Não à toa foi um fenômeno dissecado por Mario Filho no clássico cujo título já estampa a relevância do tema: O negro no futebol brasileiro. Mas nem mesmo no universo popular do futebol se consegue desmentir o decantado mito da “democracia racial” que teima em querer definir a identidade do país. Desde os primórdios, as tensões raciais ali dentro refletiam as mesmas que vigoram do lado de fora. E não importava o quão craque pudesse — ou ainda possa — ser o jogador negro. Caju se deu conta disso muito cedo e reagiu à altura, não reconhecendo e recusando o lugar que lhe era reservado nesse universo. Não é exagero dizer que ele poderia ser um personagem de Mário Filho. E quem sabe o fosse, num capítulo exclusivo de uma provável versão estendida do livro, caso o autor não morresse em 1966, às vésperas da consagração do camisa 11 nos gramados.

Quando contestava decisões de técnicos e dirigentes, Paulo Cézar o fazia, também, por não querer interpretar o clássico papel do negro subalterno. Como o recado era claro demais, o efeito foi imediato: ganhou o rótulo de jogador-problema. O que não se esperava era que Caju viesse a assumir o estigma como forma de melhor resistir ao seu peso moral. Assim, desafiou uma cultura jamais inclinada a perdoar a cor do goleiro brasileiro da Copa de 50 pela falha que não cometeu na final contra o Uruguai, no Maracanã. Ao optar pela rebeldia em campo, Caju sentiu na pele que, em terra de Barbosa, bode expiatório pode ser também ovelha negra. E concluiu mesmo que, no seu caso,até deveria.

Paulo Cézar Lima era filho adotivo do ex-técnico alvinegro Marinho Rodrigues. Testemunha do seu talento desde cedo, não pensou duas vezes em conduzi-lo a General Severiano. De saída, Paulo Cézar se revelou artilheiro nos treinos dos juvenis. Sua habilidade muito acima da média o levou a ser também “adotado” pelo técnico Zagallo, que deve ter enxergado nele uma espécie de seu sucessor (melhorado) na ponta-esquerda. Logo ganharia uma vaga no time principal, em 1967. Sua estreia, jogando os 90 minutos de uma partida (na verdade, 120, por conta da prorrogação), não poderia ser mais apoteótica: marcou os três gols da vitória alvinegra por 3 X 2 contra o América-RJ, na final da Taça Guanabara. Três anos depois, Zagallo manteve sua convocação quando assumiu o lugar de João Saldanha no comando da seleção tricampeã de 70. O lugar de Paulo Cézar ali era cativo. Podia ser tanto entre os titulares como no seu banco de luxo. Quando solicitado, não só deu conta do recado como superou expectativas. Suas atuações contra a Inglaterra e a Romênia estão eternizadas em vídeo tape para desmentir qualquer declaração em contrário. (Mas há quem o declare?).

Paulo Cézar Caju foi uma espécie de representante pioneiro — e algo solitário — do movimento Black Power no meio do futebol nacional. No despertar dos anos 1970, a consciência racial ganhava novo impulso com o circuito dos bailes blacks do subúrbio, no Rio de Janeiro. A resposta ao racismo assumia a feição de um movimento urbano de massa. Ao som do soulfunky, gênero criado por James Brown e sua banda, equipes de som e dançarinos a caráter afirmavam a sua negritude justamente no momento mais repressivo da ditadura militar. Caju não ficou indiferente a isso. Seguiu à risca os mandamentos blacks: adotou o visual de roupas coloridas e cabelo grande (que tingia de acaju — daí o apelido), as gírias características, o punho estendido etc. E, dando estofo a isso tudo, um comportamento que dizia alto que ele era negro e que se orgulhava disso; que era alguém e que merecia respeito. (Mas não foi apenas o soul que fez a trilha sonora da sua história. Em 1980, rendeu-se ao reggae quando atendeu ao desejo de Bob Marley de jogar ao seu lado).

Sem nunca pedir licença, Paulo Cézar Caju frequentava tanto os bailes do subúrbio como as boates da zona sul do Rio. Estava certo de que não havia ambiente social que não pudesse frequentar — por pior que fosse recebido. Falamos de um tempo em que a discriminação racial era uma experiência mais abertamente compartilhada, despertava menos constrangimento social. O ponta-esquerda vitorioso do Botafogo e, posteriormente, de tantos outros clubes — inclusive do francês Olympique de Marseille –, desafiou a exclusão com uma atitude inédita porque, para muitos, intoleravelmente consciente.

Nei Conceição

Consta que Nei Conceição, na véspera da sua transferência do Botafogo para o Palmeiras, não parecia dar muita importância ao que estava para se consumar dentro de algumas horas. Ele iria integrar a histórica Academia Palmeirense, a maior geração de jogadores formada no Parque Antártica. Era o início dos anos 1970, e, naquele dia, como de costume, Nei estava passando tempo na célebre comuna dos Novos Baianos, em Jacarepaguá. Caso se desse por sua falta em General Severiano, já era sabido o seu paradeiro. Havia até quem achasse que ele preferia treinar com Moraes Moreira e seus parceiros de banda — conhecidos também pelo espírito peladeiro — do que com seus companheiros de clube. E naquela ocasião em particular, Nei intuiu a promessa de uma confluência astral com outra frequentadora do lugar, e pernoitou por lá mesmo. Sua cabeça não estava ocupada com certos detalhes da viagem como, por exemplo, a hora marcada do voo. Ou, ainda, a coletiva de imprensa e os dirigentes e torcedores alviverdes que o aguardavam para a apresentação formal do dia seguinte. Por ele, São Paulo podia esperar.

Num arroubo de responsabilidade profissional raro entre músicos do período, seus anfitriões tentaram convencê-lo que o melhor era ir. Afinal, ele iria jogar ao lado de Ademir da Guia, simplesmente, o maior ídolo da história do clube paulistano. Mas não deu resultado. E o fim foi mais que previsível: perdidos o voo e a transferência, Nei prosseguiu ganhando menos no Botafogo. Pelo menos, não teria que pegar a ponte área quando quisesse visitar os seus amigos em Jacarepaguá — deve ter calculado assim.

Nei da Conceição Moreira é um craque injustamente pouco comentado do futebol brasileiro. Habilidoso, do gênero que matava a bola no peito como ninguém e a fazia correr colada aos pés, tinha, em igual medida ao seu talento, horror à cartilha que rege a rotina dos clubes. Os ponteiros do seu relógio pessoal tinham vida própria, funcionavam conforme um compasso fora do tempo ordinário. O técnico Zagallo, mesmo tendo sido testemunha diária do seu temperamento no Botafogo, não abriu mão de tê-lo entre os primeiros convocados logo que assumiu o grupo que viria a se sagrar, meses depois, tricampeão na Copa do México, em 1970. Mas a aposta não foi muito longe: acabou barrando-o. O motivo alegado? Indisciplina. O regime da seleção era outro, mais rigoroso, sob intervenção militar — modelo que, dentro em breve, passaria a ser adotado pela maioria dos clubes do país. Assim, voltou à “Selefogo” — um esquadrão de craques permanentemente a postos para qualquer convocação ao escrete canarinho –, mas na condição de quase não selecionável. Seguiu apresentando a mesma categoria e estilo de comportamento no clube que o revelou até encerrar a carreira, prematuramente, pelo CSA de Alagoas, em 1975.

Nei Conceição era insubmisso por reflexo até numa pelada. Numa delas, novamente com os Novos Baianos, no clube Caxinguelê, no Horto, ele foi além da conta. Após driblar o time adversário inteiro, incluindo o goleiro, e com o gol escancarado, pronto para o chute fatal, decidiu voltar e repetir o feito. Gostou tanto da experiência que quis vivê-la mais uma vez. Porém, diante da censura dos companheiros de equipe, desistiu. E na justificativa, saiu-se com essa: “Aqui eu não pago pra jogar? Então faço o que eu quero!”.

Mais Nei Conceição, impossível.

AFONSINHO: UMA LUTA CINEMATOGRÁFICA

por Paulo Junior


O ano é 1975. Moraes Moreira, após deixar os Novos Baianos, foi encostar no famoso teto da General Severiano, 40, acolhido pelo anfitrião Afonso Celso Garcia Reis, que àquela altura já era o Afonsinho, do Botafogo, do exílio no Olaria, da conquista do passe livre – a libertação do jogador, que deixava de ser uma posse do clube. À época, perambulando em contratos curtos e vendo a necessidade de resistir ao rígido ambiente do futebol profissional, o jogador revelado pelo XV e Jaú fundava o Trem da Alegria, time alternativo que pretendia fazer excursões e amistosos para movimentar – esportiva e financeiramente – veteranos ou atletas sem espaço com a extinção do quadro de aspirantes.

A turma da música sempre marcou presença na equipe. Além do próprio Moraes, Fagner e Paulinho da Viola, por exemplo, dividiram o mesmo 11 de craques como Garrincha, Brito e Nilton Santos. Afonsinho, aliás, desde sempre uma enciclopédia do samba, já havia tido seu nome eternizado numa canção de Gilberto Gil, a famosa Meio de Campo que ganhou a voz de Elis Regina.

– Era aquela época de não se perca de mim, não se esqueça de mim, não desapareça, e quando eu conquistei o direito do passe eu engrenei de sempre assinar contratos depois do Carnaval. Aí eu fui para o Nordeste, inclusive o Mário Sérgio, jogando no Vitória, me convidou para uma pelada que eu não consegui achar, foi a única pelada que eu perdi na minha vida. Mas, enfim, eu cheguei em Salvador e ia encontrar o Gil numa casa que ele tinha alugado lá. Quando eu fui andando pelo Campo Grande, uma pessoa me parou para falar que tinha achado legal a música que o Gil fez para mim. Depois, uns metros na frente, outra. E outra, umas quatro. E eu pensava que era uma música que ele tinha tirado dum papo nosso, alguma coisa de o bom jogador não engana a geral. Ai o [José Carlos] Capinam falou, é, o Gil fez uma música para você, vamos lá ouvir. Quando chegamos lá na casa, estava o Gil sozinho ouvindo um Miles Davis quando começamos a conversar, conversar, conversar. Quando fui embora lembrei: ninguém falou da música. Só fui ouvir quando fizeram um show no João Caetano, e depois a Elis ainda gravou, né. – conta Afonsinho.

O ano é 2014. O diretor Lucio Branco, idealizador do documentário Barba, Cabelo e Bigode, mantém uma dúvida entre um chope e outro com o colega responsável pela montagem das imagens de arquivo do longa. Já decidiu que os narradores do filme serão as próprias vozes dos três protagonistas de uma história de futebol, militância política, resistência e crítica social que perdura até hoje: Afonsinho, a barba, o jogador-médico com ideais de esquerda revolucionária; Paulo Cézar Caju, o cabelo, o atacante tomado pelo movimento black power e pelo som de James Brown; e Nei Conceição, o bigode, meia de sensibilidade musical do tipo bicho grilo pós-Woodstock. A questão, porém, é quem mais fará parte da narrativa. Como todo documentário, pensa em pessoas próximas, jornalistas, intelectuais…

Na mesa ao lado, está Moraes Moreira. Uma coincidência mística, do tamanho da intensidade dessa relação de meio século entre artistas e jogadores de futebol de uma Rio de Janeiro – e Carnavais em Salvador, claro – que não existe mais.


Time do Botafogo durante excursão ao RS em 1968 com o trio Nei (de pé), Afonso e Caju (agachados) [acervo Maura Moreira]

– Eu estava decidindo que não queria usar entrevistados da academia, engajados, tinha pensado em abrir para os músicos, e daí encontro com o Moraes Moreira. Na hora foi sacramentado. Ele ficou muito amarrado, falou na hora que queria gravar um depoimento, e depois eu fui atrás do Gilberto Gil e do Jards Macalé. Os três ex-jogadores são muito musicais, tem toda uma relação com a vida deles. Na gravação, o Macalé cantou aquele samba rubro-negro, do Wilson Batista… – narra Lucio.

 Flamengo joga amanhã… – interrompe Afonsinho.

– Isso. Ele brincou que ia cantar uma música para os três rubro-negros, mas deixa ele que eu vou dar uma rasteira na montagem. – brinca o diretor.

A dupla de botafoguenses ri.

Ilhas

O encontro entre este repórter, Lucio Branco e Afonsinho se dá numa tarde de agosto em Copacabana, no apartamento da família do ex-jogador em que ele passa o tempo em que está no Rio de Janeiro – na maior parte da semana fica na Ilha de Paquetá, a 15km de barca do centro carioca, onde ocupa o cargo de médico da família durante a semana e bate um bola no campo do Municipal aos domingos.

Tão logo chegamos – Lúcio e eu -, Afonsinho conta que recebera de um amigo um DVD com um filme promocional em que Pelé ensina fundamentos de futebol. O próprio Afonsinho é coadjuvante na peça, produzida na época em atuava no Santos ao lado do Rei, e se lembra de ter visto um trecho, ainda nos anos 1970, numa TV de um aeroporto. Quando peço para ele recordar o time santista do qual fez parte, me leva até a cozinha e puxa um pôster que está apoiado na parede, sobre o micro-ondas; outras fotos estão na sala, mais ainda num acervo pessoal guardado numa mala, e não faltam referências para contar histórias de futebol e da vida que vão de um trecho de um refrão de João Nogueira a depoimentos de Subterrâneos do Futebol, documentário de Maurice Capovilla.

A memória de Afonsinho é cantarolada, filmada. As histórias todas tem um pé numa imagem, num som.

Além da música Meio de Campo, a outra grande presença audiovisual do ex-jogador é no filme Passe Livre, realizado em 1974 pelo diretor Oswaldo Caldeira, e que trata a relação de trabalho no esporte a partir da luta de Afonsinho pelo passe, termo usado no futebol para o vínculo entre os boleiros e os clubes – além do contrato, como existe hoje, o passe era a ligação de posse entre empregador e empregador, ou seja, o jogador, mesmo que estivesse sem contrato com um time, precisava ser comprado por outro, modelo que foi extinto com a Lei Pelé (ou Lei do Passe Livre) imposta em 1998.

“Em outubro de 1972, ao renovar seu último contrato com o Santos, Pelé encontrou dificuldades que havia desconhecido em 16 anos no clube. Ao perceber que o jogador queria encerrar a carreira e assinar apenas por dois anos, os dirigentes criaram exigências procurando extrair ao máximo de seu futebol. Num desabafo, Pelé declarou então à imprensa: homem livre em futebol, homem livre só conheco um, o Afonsinho; este sim pode dizer usando suas palavras que deu o grito de independência ou morte; ninguém mais, o resto é conversa”, narra o início de Passe Livre, coberto por imagens de Pelé cercado por repórteres no Maracanã.

[Breve explicação: Afonsinho foi à Justiça pela liberação do passe depois de ser encostado pelo Botafogo pelo fato do clube não aceitar a postura do jogador – estudante de medicina, engajado, crítico ao modelo autoritário da gestão do futebol e de visual despojado diante da militarização imposta. Em agosto de 1970, a situação chegou ao limite: ele foi proibido de treinar enquanto não tirasse a barba. Sem poder jogar, na condição de posse da agremiação em razão do passe e irredutível em relação à barba, que se tornara símbolo de resistência, Afonsinho conseguiu, em março de 1971, no Superior Tribunal de Justiça Desportiva da CBD, se tornar dono do próprio passe, podendo, a partir daí, negociar os próprios contratos. A atitude foi pioneira no futebol mundial.]


Caju, o cabelo [acervo pessoal]

Agora, quem dá sequência na memória audiovisual de Afonsinho é Lucio Branco, cientista social formado na UERJ que está finalizando Barba, Cabelo e Bigode para contar a história dos três amigos de bola e da vida que, contemporâneos e parceiros de luta, agora têm o elo registrado em vídeo.

– Os três convivem há muito tempo. O Caju entrou no Botafogo em 1967, aos 17 anos, e foi adotado pelo grupo, tem fotos que mostram isso, os três juntos. E o Caju é da mesma família do Afonsinho, né [Paulo Cézar Caju casou-se com a irmã de Afonso]. O Afonsinho fala do Nei sempre, apresenta o Nei como maior jogador da posição dele na sua geração, e o próprio Botafogo também não colocava o Nei como titular porque ele não se curvava à submissão do futebol, um tanto pela história do passe – para mostrar quem era o dono – e também pela estupidez de não usar um jogador que não se enquadra em questões disciplinares. E os três têm muito em comum. O Afonsinho virou realmente um marco pela coisa do passe, mas o Caju era um cara ligado ao movimento black, porra, um tabu total, só ver a repressão que os bailes sofriam no Rio. E o Nei é essa figura fascinante que deveria ser muito mais resgatada. E aí tem uma coisa que tem muito a ver com a linguagem do filme que é a metáfora da ilha. Paquetá é o cenário principal do filme, ainda mais o campo do Municipal, e de certa forma eles são três ilhas nesse ambiente de obscuridade que era viver no futebol naquele período, num momento de repressão, e eles se tornaram ilhas, isolados, mesmo que não fosse a intenção original. Esses caras pensavam em coletividade, em sentimento de solidariedade de classe, não é à toa que é uma geração que se encontra até hoje. – explica Lucio.

Como já foi citado, o filme é uma montagem de depoimentos e imagens do trio e de três músicos escolhidos para completar a narrativa – Gilberto Gil, Jards Macalé e Moraes Moreira. Poderiam ser ainda outros, tamanha a relação dos ex-jogadores com o ambiente musical: Afonsinho é compadre de Paulinho da Viola, por exemplo, Nei Conceição não saía da casa dos Novos Baianos, e Paulo Cézar Caju, um dos responsáveis por agitar a famosa pelada com Bob Marley no campo do Polytheama, de Chico Buarque, tem uma sequência no filme comentando uma pilha de discos de nomes que o embalavam na época.

Na pesquisa de imagens de arquivo, claro, muita coisa explorada vem da filmografia básica do futebol brasileiro – os falados Passe Livre e Subterrâneos, Futebol, de João Moreira Salles, Fragmentos de Dois Escritores, de João Bethencourt, Garrincha, Alegria do Povo, de Joaquim Pedro de Andrade, além de outras cenas de jogos históricos.

A decisão por definitivamente não se utilizar de outras fontes veio da confirmação da ligação musical dos protagonistas no encontro casual com Moraes Moreira, que logo se animou com a proposta. Nomes como Maurício Murad, cujo módulo Sociologia no Futebol foi cursado cinco vezes pelo então aluno Lucio Branco na UERJ, era uma voz em potencial na cabeça do diretor, assim como outros estudiosos do assunto. Fã do diretor Rogério Sganzerla, Lucio tem no imaginário do seu filme algo como o documentário Tudo é Brasil, terceiro da triologia sobre a visita de Orson Welles ao país.

– Nada contra esse formato, há ótimos documentários nesse tom mais jornalístico, baseado em depoimentos. Mas achei que tinha de dar mais a versão deles. Eu sempre pensei na imagem do monolito. Eles começaram daquela forma e estão falando as mesmas coisas, têm uma coerência profunda com o posicionamento, e tudo o que foi acontecendo é uma confirmação de que eles estavam certos. O futebol manteve a estrutura feudal, à brasileira, com um discurso de modernização, para a frente. Tudo isso já foi previsto por esses caras, que já criticavam um outro tipo de futebol.

Além disso, dar prioridade à voz de nomes como Afonsinho, Nei e Caju é colocá-los como protagonistas de uma narrativa em que nunca foram devidamente reconhecidos. Na imprensa, se trabalha com a ideia hegemônica do futebol enquanto negócio e sob determinados parâmetros de conduta, enquanto que, por uma série de circunstâncias, a história da época não é tão revisitada e conhecida quanto a Democracia Corinthiana, por exemplo.


Nei, o bigode [acervo pessoal]

– Eu acho a história da Democracia [Corinthiana] muito legal e tem muito de ser valorizada mesmo, mas por que de certa forma se institucionalizou como praticamente a única experiência de democracia real e autogestão do futebol brasileiro? Talvez porque era outro período, 15 anos antes, com Nei, Afonsinho e Caju, quando era algo praticamente impossível. Eu falei para o Afonsinho certa vez, ele achou interessante, que há uma similaridade entre ele e o Sócrates [Afonsinho, inclusive, substituiu o Doutor, colega em ambas as profissões, como colunista da revista Carta Capital após a morte do ex-capitão da seleção brasileira], o Wladmir e o Caju, o Casagrande e o Nei. Não quero criar nenhuma competição aqui, mas vale registrar que eles vieram antes.Além disso, dar prioridade à voz de nomes como Afonsinho, Nei e Caju é colocá-los como protagonistas de uma narrativa em que nunca foram devidamente reconhecidos. Na imprensa, se trabalha com a ideia hegemônica do futebol enquanto negócio e sob determinados parâmetros de conduta, enquanto que, por uma série de circunstâncias, a história da época não é tão revisitada e conhecida quanto a Democracia Corinthiana, por exemplo.

Barba, Cabelo e Bigode será dedicado a Oscar Maron Filho, morto em 2011 e diretor de Mário Filho – O Criador das Multidões, cineasta que Lucio jamais conseguiu falar e trocar ideias; Geraldo Assoviador, ex-jogador, grande amigo de Zico e que morreu em 1976, no auge da carreira, numa extração de amígdalas; e Marinho Chagas, ídolo do Botafogo falecido no ano passado. Previsto para ser lançado no primeiro semestre de 2016, é uma produção independente e está em processo de financiamento coletivo para a finalização. À época da entrevista, a reportagem acompanharia a gravação de uma cena produzida para o filme, com os personagens numa barbearia no bairro das Laranjeiras, mas a produção acabou adiada: por esquecimento, ou numa rebeldia às avessas, Nei Conceição fez a barba antes da filmagem.

Cinema e Futebol

Afonsinho desce à praia para treinar futebol com o neto, volta com o filme do Pelé já terminado e mostra o livro que está lendo, Tijucamérica, do jornalista José Trajano, que acabou tendo parte das últimas páginas devorada pelo cachorro que fica na casa de Paquetá.

– A melhor coisa que o futebol oferece é o vínculo dos jogadores independente da geração. Nesse ponto o futebol é mesmo a maior invenção do homem [faz referência à frase de Mauro Cezar Pereira, da ESPN, contida no livro escrito por Trajano]. Porque até hoje eu penso como fui me aproximando do Zizinho, do Didi, do Nilton Santos, é uma coisa que até hoje me faz pensar, porque não tinha distância, era sem diferença. E eles são meus santos, aqueles jogadores de 1958-62, nossa, eu tenho uma paixão por aquela seleção. Então teve essa proximidade com o Nei, eu vindo do interior de São Paulo e ele da escolinha do Neca [formação de garotos vinculada ao Botafogo], e teve identificação mesmo, a gente é a mesma coisa, ele é meu irmão social.

O protagonista de Passe Livre não se lembra exatamente da vez em que assistiu o filme pela primeira vez, não que não tenha a produção na memória. Vai recordando, em meio à conversa, de locações, equipamentos, cenas daquele tempo em memória fotográfica. Vira e mexe, seja qual for o assunto relacionado ao futebol, recorre à literatura ou ao cinema para exemplificar.

– Isso tem a ver com o depoimento do Zózimo no Subterrâneos do Futebol, em que ele diz que o jogador sempre foi preso pelo passe e que o dirigente faz o jogador de escravo.


Afonsinho, a barba [acervo pessoal]

Tanto que, quando o papo vai para a presença do futebol em outras formas de expressão, com os próprios livros e filme, ele analisa junto com o próprio diretor:– Isso tem a ver com o depoimento do Zózimo no Subterrâneos do Futebol, em que ele diz que o jogador sempre foi preso pelo passe e que o dirigente faz o jogador de escravo.

– Existe um problema de ordem técnica para se filmar o futebol, mas acho que houve pouco esforço para se criar soluções. Até existe uma tradição de documentários de futebol no Brasil, se você pegar o Garrincha, por exemplo, é sempre usado em reportagens. Aí eu assisti esse filme mais recente do técnico inglês [Maldito Futebol Clube,que conta a história de Brian Clough], que é um filme bacana, com boas imagens de jogo, cortes secos, como tem de ser. E também não existe uma cultura futebolística na população, o futebol é marginalizado, é considerado um tema de menor importância, e curioso que nos anos 1990 ganhando um certo interesse maior, algo meio hypado, o George Best na capa do disco do Oasis. Mas eu acho isso bacana também, camisas retrô, por exemplo, eu tenho algumas, ainda que tenha uma certa cultura fashion, hipster, parecido com o que houve na música. – diz Lucio.

– Tem essa questão técnica, mas tem também uma ideia de que fazer um filme de futebol tem de ter gol para atrair o público, imagina, o cara vai no cinema ver um filme e tem de ter gol? – afirma Afonsinho.

– Falando em Botafogo, tem o filme do Heleno, tem a famosa biografia do Garrincha… – eu coloco.

– Heleno tem muito da Copacabana mítica, aí eu penso por que se faz um filme sobre o Heleno e não sobre o Almir? Têm razões de ordem técnica, mas acho que o Heleno está lá porque está para além do futebol. E aí vem o Rodrigo Santoro, e resgata aquele Rio de Janeiro… Eu até encontrei o José Henrique Fonseca depois [diretor do filme Heleno], eu acho interessante, porque ele foi por uma vertente mais do personagem. Um filme sobre o Almir teria de ter muita bola rolando porque é muita coisa de dentro de campo, o que ele fez no Santos x Milan, por exemplo, é puro cinema. A própria morte dele, meio nebulosa, mas ao que tudo indica para defender o DZI Croquetes, segundo Mário Prata que estava lá e viu, ali onde é o atual Sindicato do Chope. – diz Lúcio.

– Nessa coisa do personagem, também acho que a história do Garrincha acaba muito centrada no alcoolismo. – acrescenta Afonsinho.

– Talvez é não querer bancar a história do boleiro, bancar o futebol como protagonista como fez agora O Drible [livro de Sérgio Rodrigues], meio que nessa coisa antiga de futebol como ópio de povo e assunto de menor importância mesmo… – afirmo.

– É, legal falar disso, a coisa do ópio do povo, que é uma visão totalmente elitizada. Fiz questão de pedir para os três comentarem isso no filme. – finaliza Lucio.

Afonsinho também lembra que viveu uma época em que o meio do futebol se preocupava em tentar elevar o nível intelectual dos jogadores. Pensando em cinema, em documentário, hoje o jogador é mais bem assessorado para falar corretamente, viaja mais, tem mais familiaridade com a comunicação, enquanto os dirigentes, nos anos 1960, achavam que enquanto a seleção brasileira era campeã do mundo, os craques faziam vergonha por serem quase analfabetos, de classe popular. E recorda:

– Na época da fundação do Trem da Alegria, falavam que tinha um cara legal no São Cristóvão, e a gente precisava de um campo, então eu fui lá. O diretor do clube, Benito, consertava radiador de carro, e eu cheguei na oficina dele para conversar. Nossa ideia era juntar uma turma que estava sem jogar, porque a intervenção da ditadura acabou com os aspirantes, que para mim era o equilíbrio, a melhor coisa que tinha. O Benito achou legal. Era começo de ano e ia ter o Campeonato Carioca. O São Cristóvão passou uns dois ou três campeonatos sem ganhar um jogo, mas não tinha descenso então se mantinha no torneio. Nosso time tinha o Brito, o Alcir, o Samarone, eu, vários jogadores de nome. Era a época da resistência mesmo, a imprensa alternativa, o cinema Super 8, aquela coisa no teatro de ‘Se Correr o Bicho Pega, Se Ficar o Bicho Come‘, o Clube do Samba, a gente no futebol. E seria legal se a gente jogasse o campeonato, pô, jogar no Maracanã, com o nome do São Cristóvão… Aí tinha acabado de assumir a direção do clube um cara chamado Fred, duma empresa de concreto. Eu fui conversar na parte de cima da sede, um salão onde sempre tinha um forró, aquela área sempre teve feira nordestina e tal. Mas aí, olha só: o Fred, na maior boa vontade, era um cara legal, mas não se conformava com essa coisa de jogador ser semi-analfabeto, essa coisa de ‘nóis vai, nóis volta’, e para valorizar ele fez uma parceria com a Gama Filho, para trazer universitários a fim de melhorar o nível intelectual do jogador. E aí ele queria trazer uns três ou quatro nossos para o time, mas eu falei: olha, agradeço, mas os caras do futebol são esses aqui.  – conta Afonsinho.


Caju e Afonsinho mantêm um vínculo de meio século que nasceu dentro de campo, no Botafogo [acervo pessoal]

Ele lembra ainda que nomes como Telê Santana e Paulinho de Almeida (“ele tinha o eufemismo de ser chamado de disciplinador”) se importavam com a roupa do atleta, com aprimorar a aparência.

– Tinha um ponta-esquerda lá do Villa Nova, de Minas Gerais, que começou a jogar para caralho no Campeonato Mineiro e o São Paulo contratou. Aí com a luva ele comprou um Ford Galaxie e o resto de disco. Eu acho isso maravilhoso, porque o Brasil inteiro vive das imagens da TV, da revista, da mulher pelada na praia, aí o jovem fica maluco com isso, porra, até eu, primeiro carro que tive foi um usado, mas foi um Karmanguia. Como é que você aperta um botão no garoto e diz, olha, agora é terno Armani e carro importado? É a música do Moraes Moreira, né, mamãe eu não quero, trabalhar de sol a sol, quero ser cantor de rádio e jogador de futebol. Hoje é a Globo, já foi a Manchete, o Cruzeiro, o jornal do cinema, o Brasil inteiro vive disso. – analisa.

Nesse sentido, cita os casos de Edmundo – inclusive foi tema de livro, Afonsinho & Edmundo – A Rebeldia no Futebol Brasileiro, de José Paulo Florenzano – e Jobson, como jogadores talentosos que, em razão de problemas pessoais, tiveram difícil enfrentamento com o ambiente conservador do futebol. Enfrentamento que, no caso de Afonsinho, se deu pelo contrário:

– Mas se queriam aumentar o nível intelectual, chega você, jogador de futebol e formado em medicina, e também vira um problema?

– Pois é, aí vira o líder negativo. Não tinha treinamento integral e consegui ir na fronteira dos dois, estudar e jogar. Mas deu no que deu.

Meio século depois

Já era noite quando confirmei com Afonsinho a efeméride dos 50 anos de seu primeiro jogo pelo Botafogo – 26 de setembro de 1965, Campeonato Carioca, diante do Fluminense – e, portanto, 50 anos de vida no Rio de Janeiro que o chamou a atenção quando jovem jogador por vestir a camisa do time de Garrincha e Nilton Santos, mas também por estar perto do samba.

Pergunto então como ele tem suportado seguir acompanhando o futebol atual, dos clichês como volante moderno ou camisa 10 clássico, da exportação de jogadores para Europa e dos interesses financeiros acima de qualquer tradição.

– Eu quase não consigo falar sobre isso porque me faz mal. Primeiro eu penso que a gente não pode esquecer do geral, do macro. Por exemplo, parece que jogador está voltando a usar chuteira preta, então isso é cuidar do dia-a-dia. Mas não esquecer do macro, que é a sociedade metida em prevalecer uma ideia unilateral chamada neoliberalismo. Estamos falando da cor da chuteira, mas não podemos esquecer dessa grande desgraça da humanidade atual, dos relacionamentos como estão postos, das metas, da coisa dolorosa que é a vida que a gente vive. Então isso está dentro do futebol. Legal, na Champions estão os melhores jogadores, está o Messi, que é uma maravilha, o Neymar, outra. Mas mesmo assim é essa coisa neoliberal, da correria, com falta de criatividade. Um dia acho que a história vai olhar para esse momento e falar: porra, eles se relacionavam dessa maneira? E isso está no futebol.

– Você falou de falta de criatividade, de neoliberalismo, e pensei na padronização do jogo, em africanos jogando como asiáticos, como europeus…

– Imagina isso, os caras na África, além de estarem num continente abandonado, com uma riqueza cultural que influencia o mundo todo, estão ainda submetidos a esse sistema, enquanto podiam estar brotando coisas interessantes. Globalização, que é o homem daqui se aproximar com o homem de lá, não tem nada melhor no mundo. Agora, aproximar a exploração? A submissão? É uma desgraça. Mas continua a luta do homem, de sempre, pela liberdade, contra a submissão. Vai fazer o que, pasteurizar a sociedade? A coisa mais linda que existe é a diversidade. Isso é muito primário, mas estamos nessa ideia de que tudo para ganhar dinheiro, vale. Alguém vai me convencer disso um dia? Isso como ideia não existe, ninguém sustenta, isso é predomínio ganho pela força, pela imposição. Então a luta do homem continua.

Então a luta do homem continua.


Lucio Branco e Afonsinho, agosto de 2015, Copacabana [crédito: paulo silva jr/sarriá]

Texto originalmente publicado no www.sarria.com.br, em 19 de outubro de 2015.

O dia em que quase desejei ser vascaína para agradar ao meu pai  – mas ele preferiu que eu fosse eu mesma

por Hérica Marmo


Houve um tempo em que eu achava besteira ter que torcer pro mesmo time do pai. Filha de uma botafoguense e de um vascaíno, minha primeira rebeldia foi me apaixonar pelo Flamengo. Logo o Flamengo. A ovelha-negra da família, dizem os primos alvinegros fanáticos. Ovelha rubro-negra, devolvo vidrada nas cores que me fascinam. Não foi capricho. Nem acaso. Apenas era muito complicado para os meus 6 anos só poder torcer para o Zico quando ele vestia verde e amarelo. Driblei o conflito interno e simplifiquei: meu time seria o que contasse com aquele camisa 10.

Na adolescência, quando o tema ainda era um tabu em casa, convenci meu pai a me levar pela primeira vez ao Maracanã. Em pleno domingo de clássico, propus a aposta que jamais poderia pagar: “Se seu time ganhar, eu viro Vasco”. Ele respondeu com uma piada que guardava um simbolismo que nem imaginávamos: “Não quero que você vire Vasco. Quero que você continue sendo Hérica”. Mas, empolgado com a excelente campanha do seu clube, que terminaria campeão brasileiro naquele 1989, resolveu pagar pra ver. “Vai que, né?”, deve ter pensado… Não deu… Quando subi as escadas e me deparei com a lindeza daquela arquibancada vermelha e preta, chorei de alegria e pertencimento. E rezei pra não perder a aposta. Recordar é viver: Bujica ouviu minhas preces, fez dois gols, ganhei uma camisa na saída do Maraca e nunca mais precisei esconder a minha paixão.

Meu pai pareceu levar na boa as duas derrotas. A partir daí, viramos rivais declarados. Mas, enquanto em mim o encanto pelo meu time só crescia, ele se envolvia cada vez menos com o dele (“Enquanto Eurico Miranda mandar, não quero saber de Vasco”, prometia). Mesmo assim, na contramão das estatísticas, eu me tornei minoria em casa: uma solitária rubro-negra contra dois vascaínos (meu pai e minha irmã) e dois botafoguenses (minha mãe e meu irmão). Acima de tudo, quatro fervorosos membros da torcida arco-íris. Não havia vitória do Vasco ou do Botafogo que os mobilizasse mais do que uma derrota do Flamengo. Quando o assunto era futebol, pegar no meu pé era o maior prazer da família.

Movida por essa certeza, comentei uma vez com o meu pai: “Você até gosta que eu torça pro Flamengo, né? Porque você adora implicar comigo quando eu perco”. Para a minha surpresa, ele desfez seu quase permanente sorriso e confessou com profunda tristeza: “Não, eu preferia que você torcesse para o mesmo time que eu”. Meu coração ficou pequenininho, mas já não tinha condições de voltar atrás.

Foi ali que entendi que herdar a paixão futebolística do pai não é besteira. Invejei todos os meus amigos que foram ungidos com essa benção. E fiz um acordo comigo mesma: se um dia tivesse um filho, eu o deixaria torcer para o mesmo time do pai, ainda que eu não tivesse competência para casar com um seguidor de Zico.

No papel de filha, consegui aplacar parte dessa frustração na Copa de 1994. Eu já morava em outra cidade e assisti aos primeiros jogos com os amigos da faculdade. Mas, quando Romário e cia chegaram à final, decidi ver o último jogo em casa. Meu desejo secreto: comemorar um título com o meu pai. Minha preocupação ainda mais secreta: meu pai se emocionar tanto com a vitória do Brasil e ter um infarto. Na minha cabeça maluca, eu tinha que estar lá para evitar que isso acontecesse. No momento em que Baggio chutou a bola pro alto, porém, o que fiz foi me jogar no pescoço do meu pai pra gritar junto com ele: somos campeões!!! Pela primeira vez, campeões ao mesmo tempo! Choramos abraçados e, se o coração dele realmente não aguentasse tanta emoção, a culpa teria sido toda minha.

Graças a Deus, salvo a minha neurose, ninguém estava doente. Com apenas 51 anos, meu pai gozava de plena saúde. O coração generoso, felizmente, continua batendo forte, agora, quando meu herói completa 73 temporadas de riso fácil, otimismo e respeito ao próximo.

Com a simplicidade de quem trocou a escola por uma boleia de caminhão, meu pai me ensinou que não precisa pensar igual para conviver bem com alguém. O futebol, claro, não foi o único campo da vida em que vestimos camisas diferentes. Mas em todas as vezes em que escolhi a arquibancada adversária, ele manteve o espírito esportivo. E eu aprendi a ter também.

Pai, desculpa pelo Flamengo e pelas outras decisões que causaram frustração. E muito obrigada por sempre me incentivar a ser tudo o que eu quis ser. Se o mundo fosse feito de mais pais como você, talvez não houvesse tanta demostração de ódio e intolerância por aí… Obrigada, obrigada, obrigada! Te amo!


Seu Ary e o seu sorriso indefectível

VENCEU QUEM CHUPOU GELO

Por Zé Roberto

A preleção do técnico e capitão Claudio Coutinho, durante sua passagem pelo Flamengo, era uma aula de logística, ouvida em absoluto silêncio. Tinha infiltrações peloponto futuro, overlaping, citações de Pablo Neruda e, claro, futebol. As de Jair da Rosa Pinto, no Fluminense, pedindo ao “Créber” que jogasse pelas “beiradas” contra o “Framengo” era um outra versão da Escolinha do Professor Raimundo, uma aula movida a gargalhadas. Mas às vésperas do jogo tinha também a pelada de dois toques em que até os massagistas jogavam. E quando a bola era dominada no peito pelo Jajá, com uma classe nunca vista, e era cruel com as caneladas do Coutinho, o silêncio respeitoso e o riso incontido trocavam de lado. Quem afinal seria o melhor treinador? O que se formou para o ofício ou quem fez do ofício profissão?


Ricardo Gomes durante uma partida da Seleção

Ricardo Gomes durante uma partida da Seleção

Jorginho, Ricardo Gomes e Muricy foram grandes jogadores, e Levir Culpi um bom zagueiro. E estudaram futebol. Ao chegarem com seus times às semifinais do campeonato carioca, deixam claro que aquela expressão “chupou gelo com quem?”, direcionadas aos que se formaram fora das quatro linhas e não viveram a cumplicidade daquelas santas pedrinhas que entravam em campo no kit hidratação dos massagistas, se impôs por aqui. Se tornou mais producente ensinar quem jogou ser treinador do que ensinar uma vida de bola a quem se formou em Educação Física.

Mas se no futebol profissional o ex-jogador se sobrepôs, nas divisões de base andam perdendo espaço pelo país. Cada vez mais Xerém tem menos Rubens Galaxe, Gilson Gênio e Mário e mais emprego para os portadores da carteirinha do CREF. Existem CTs que vetam nas peneiras menores de 1,75m, mesmo com o melhor do mundo, o Messi, medindo 1,69m. Na base do nosso futebol, que tinha Pinheiro, Célio de Souza, Neca e Liminha à frente, é que o garoto mais precisa de uma referência. Da bola e do clube. Hoje, treinam muito, fazem musculação e chegam ao profissional com erros básicos de fundamentos. Mal sabem passar, dominar uma bola, mas correr…


Jorginho, atual treinador do Vasco da Gama

Jorginho, atual treinador do Vasco da Gama

O futebol brasileiro deve muito aos seus profissionais da Educação Física. Carlos Alberto Parreira, Admildo Chirol, Claudio Coutinho, Sebastião Lazarone, Raul Carlesso, Ismael Kurtz, entre outros, realizaram com competência a transição do futebol arte de 70 para o futebol moderno praticado pela Holanda quatro anos depois, na Alemanha. Mas está provado, e a parceria Zagallo e Parreira foi seu maior exemplo, quando um cuida do cérebro e outro das pernas e dos pulmões dos jogadores, quem vence é o torcedor que vê surgir um novo craque. Não um implacável gladiador.