por Abilio Macedo
Na manhã do dia do jogo entre Brasil e Holanda, pela Copa do Mundo de 1974, fui chamado à sala do nosso gerente onde ele estava reunido com todos os supervisores do departamento.
Assim que entrei ele me entregou um maço de dinheiro e uma lista onde todos presentes haviam anotado seus palpites para o resultado do jogo de logo mais:
– Abilio, você vai ficar responsável pelo nosso bolão. OK?
– OK.
– Circule pelo nosso pessoal e veja quem quer entrar. OK?
– OK.
– Você já sabe como funciona. Quem acertar o placar do jogo fica com o dinheiro arrecadado. OK?
– OK.
– Se tiver mais que um acertador, basta dividir o valor entre eles. OK?
– OK.
– Alguma dúvida?
– Nenhuma.
– Tá esperando o que?
– Só ia conferir o dinheiro.
– Se eu lhe entreguei é porque está certo. Se manda.
Com quase dois metros de altura, durão e de poucas palavras, nosso gerente metia medo em muita gente na fábrica, mas nós, seus funcionários, sabíamos que no fundo ele era um sujeito bonachão e gozador.
A notícia do bolão correu rápido pelo departamento e em pouco tempo a lista tinha mais de 60 palpites, a maioria apostando na vitória o Brasil, pouco mais de dez no empate, e apenas dois apostando na Holanda como vencedor, ambos pelo placar de um a zero.
Faltando menos de meia hora para o início do jogo, tentávamos ajustar a imagem de um pequeno aparelho de TV branco e preto quando alguém bateu no meu ombro:
– “Querrrró fazerrrr o aposta”.
Era o “Seo” Jurgis, que mesmo sem pertencer ao nosso departamento, já foi anotando o placar de dois a zero para a Holanda no bolão e despejando algumas cédulas e um punhado de moedas sobre a mesa.
“Seo” Jurgis era um senhor estrangeiro, com sotaque carregado, que apesar de excelente profissional era mais conhecido pelas frequentes reclamações sobre as coisas do nosso país, tipo:
– “No Eurrrropa não tem estes porrrrcarrrrias que fabrrricam aqui na Brrasil”.
– “Na Brrasil ninguém respeita horrrrárrrio”.
– “Brrasileirrro sabe trabalharrr, mas se non ficarrr rem cima, a serviço não sai”.
Nada que ele não tivesse até um pouco de razão, mas seus comentários só serviam para nutrir a antipatia que tinham por ele.
Nem gosto de lembrar daquele jogo. Foi muito sofrido ver a “laranja mecânica” nos dominar e ameaçar nosso gol a todo momento, com muita pancadaria pelos dois lados, para sermos derrotados e eliminados da copa.
Ficamos todos desolados, mas a revolta da rapaziada foi aumentando quando ficavam sabendo que o “Seo” Jurgis havia ganho sozinho o nosso bolão:
– Se eu soubesse que aquele “bicho d”água” ia participar eu tinha ficado de fora.
– Eu não quero nem ver a cara daquele gringo, porque se hoje ele falar alguma coisa contra o Brasil eu não respondo por mim.
– Por que deixaram ele entrar no bolão? Ele nem é do nosso departamento.
O burburinho fez até o gerente abrir a porta da sua sala e pedir calma ao pessoal.
Logo em seguida chegou “Seo” Jurgis.
Tenho certeza de que se ele apenas entrasse, apanhasse o dinheiro e fosse embora, nada teria acontecido, mas ele resolveu zombar da gente abrindo um enorme sorriso e pedindo uma salva de palmas para Holanda. Aquilo foi demais, principalmente porque nunca ninguém ali o tinha visto sorrir antes.
Quando a coisa ia ficar feia, nosso gerente, que sem ninguém percebesse já estava ali ao lado, deu um tremendo tapa na mesa (que quase nos matou de susto) e um show de interpretação, que tento reproduzir abaixo:
– Isso aqui não é cassino!
Todo mundo ficou surpreso e sem entender nada.
Com cara de bravo e tom de voz elevado, ele continuou:
– Quando eu assumi a gerência, a primeira coisa que eu fiz foi arrancar daquele quadro um aviso com a relação das atividades proibidas na empresa! Vocês se lembram disso?
Ninguém nunca viu esse aviso mas todo mundo respondeu que sim.
Depois de uma pausa que só fez aumentar o suspense:
– Eu fiz isso porque meu pessoal não precisa de um papel para saber que no local de trabalho é proibido consumir bebida alcoólica, realizar práticas religiosas e (dando uma ênfase maior) jogar ou fazer apostas em dinheiro!
Aí ele deu outro tapa que quase desmonta a mesa:
– Estou muito aborrecido porque uma dessas regras sagradas foi desrespeitada.
Ninguém dava um pio e “Seo” Jurgis com olhos arregalados.
– Mas fiquem sabendo que não vou permitir que falem pela fábrica que alguém ganhou dinheiro de jogo no meu departamento. Não mesmo!
E continuou:
– Não quero saber o nome dos envolvidos, porque se eu souber todos sabem qual será a punição.
Nova pausa.
– Eu exijo que amanhã, até o final do dia, naquele mesmo quadro de aviso, esteja afixado o recibo de algum orfanato ou instituição de caridade para o qual será doado todo o dinheiro de jogo que aqui foi arrecadado.
E antes de sair:
– Se alguém tiver alguma dúvida ou se sentiu prejudicado, pode vir falar comigo!
Entrou na sala e bateu a porta de um jeito que estremeceu todo o prédio .
Para encerrar:
O dinheiro do bolão foi doado a uma instituição de caridade e “Seo” Jurgis depois ainda me agradeceu por não ter seu nome envolvido “no jogatina”.
E ninguém, nunca mais, tocou no assunto…