por Sergio Pugliese
Com a elegância de sempre Betinho Carqueja, zagueiro ao estilo Mauro Galvão, se antecipou ao centroavante e saiu jogando de cabeça erguida. Nesse momento, a pelada foi interrompida por um baixinho gorducho, que invadiu o campo. Betinho custou a acreditar mas o homem em questão era seu médico particular tentando salvar sua vida. Não há dúvida, Betinho é um paciente-bomba! Carrega no peito três pontes de safena e há alguns anos enfrentou uma delicada cirurgia para desentupir uma artéria, que o deixou 12 dias internado. Betinho é assim, vive driblando o cruel momento de pendurar as chuteiras.
– Betinho, você está brincando com a verdade – gritou o doutor.
– Acordei bem disposto e achei que dava – desdenhou.
Os amigos pressionaram pelo reinicio do jogo. Sabiam que Betinho era tinhoso e não seria dobrado facilmente. Mas dessa vez ele cedeu e assistiu o resto da partida na beira do campo, emburrado como poucas vezes se viu. Betinho conhece seu corpo e seus limites como ninguém. Seu currículo médico se compara a um catálogo telefônico, mas ele continua amando a bola mesmo ela já tendo lhe causado alguns prejuízos. Com 13 anos, jogava bola debaixo de um temporal quando um galho caiu e rachou sua cabeça. Ao todo foram três cabeças quebradas. Dias depois, ainda enfaixado, pulou o muro do vizinho para pegar sua bola e foi atacado por um vira-latas. Doze pontos. Estiramentos, distensões e torções, não contabiliza. Mas dentro de campo já quebrou uma perna, um braço, o dedo mindinho, o nariz e a clavícula. Os dedões do pé não conhecem unha há tempos e tem astigmatismo por conta de uma bolada. Fora isso, sua respiração é falha, é diabético, tem hepatite crônica e a labirintite lhe faz perder o equilíbrio nos jogos. Ah, ainda teve duas pneumonias fortes.
Mas quem segura Betinho? Setenta quilos, 74 anos e um amor pela bola indomável!
– Ele quer morrer em campo. Deixa! – resume o filho Marcelo, zagueiro de responsa, que segue o caminho do pai, não pelo futebol, dez degraus abaixo, mas pelos problemas médicos: sofre com uma artrose no quadril e uma fratura de tornozelo. A neta Marcela, de 17 anos, não perde um jogo e a mulher Edite desistiu de dar conselhos até por já ter sentido na pele o poder da concorrência com a bola. Há alguns anos, no momento em que ela operava hérnia de disco, Betinho Carqueja corria atrás dos atacantes no campo do Curupaiti, um de seus palcos preferidos.
– Para ele, a bola está em primeiro lugar. Em segundo e terceiro também – reconhece, resignada.
A fragilidade de Betinho é superada por sua teimosia.
– É isso que me deixa vivo – resume.
A pelada realmente exerce uma força maior sobre ele. Quando a bola começa a rolar suas articulações ganham vida própria, é como se bebesse da fonte da juventude, voltasse a ser criança. Na verdade, quando menino Betinho repetia as mesmas artes de agora. Não tinha sarampo, catapora ou coqueluche que o prendessem em casa. A bola guardada debaixo da cama era sua grande companheira e fugia com ele para onde fosse. Mesmo debilitado, ele marcava presença e voltava mais bem disposto para casa.
– Não morri por causa disso. A pelada me faz sentir vivo! Me deixem correr!!!!
Ninguém segura Betinho!