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Arnaldo Jabor

NUNCA MAIS SEREMOS OS CAMPEÕES DO MUNDO DE 1950

por Arnaldo Jabor

Texto publicado originalmente Folha de São Paulo em 30 de junho de 1998


O pintor Antonio Peticov me gelou a espinha ontem. Mandou-me o seguinte e-mail: “O Brasil ganhou a Copa em 1994. Antes disso, ganhou também em 1970. Some 1970 com 1994 e o resultado será 3964. A Argentina ganhou a Copa em 1986. Antes disso, ganhou também em 1978. Some 1986 com 1978 e o resultado será 3964. A Alemanha ganhou a Copa pela última vez em 1990. Antes, ganhou também em 1974. Some 1990 com 1974 e o resultado será 3964. E, agora, aqui está o que assusta. A Inglaterra ganhou a Copa em 1966. Some 1966 com 1998 e o resultado será 3964!”.

Será que uma Fifa intemporal já traçou nosso destino de derrotas? Sinto um frio na espinha, igual ao frio que senti quando meu avô me levou ao Maracanã pela primeira vez, há muitos anos.

Todo mundo torcia e gritava, e eu percebi, em pânico, que, enquanto todo mundo olhava o jogo, eu olhava os torcedores. Tive um arrepio de horror. “Sou louco?”, pensei. “Por que não estou vendo o jogo, como todo mundo? Por que estou olhando-os viver? Percebi que minha entrada na vida seria rala e difícil. Até hoje estou assim, “olhando os torcedores”.

Futebol para mim sempre foi um trauma. No colégio, aos dez anos, fui agarrar no gol. A bola entrou bem no cantinho da trave e foi considerado “frango” (a gíria era recentíssima). Caí na humilhante segunda divisão, composta de gorduchos, pernas tortas, veados e babacas molengas. Eu era comprido e trêmulo.

Depois, estou na praia da Urca, legendária arena de times famosos: o Arsenal, o Lavaibola, o Ipiranga. Eu adorava o Ipiranga. Nunca jogava, claro. Ficava olhando. Faltou um jogador na hora da partida. “Dá a camisa pra ele!”, gritou o capitão. Todo orgulhoso, ostento a camisa verde e vermelha e chego a fazer umas embaixadas para esquentar. Silvinha, na amurada, me olhava.

Quando vai começar o jogo, chega o Ceará, dono da posição. “Tira a camisa”, gritou o capitão. Até hoje, sofro a dor desse momento. Silvinha, pálida, fingiu que não viu meu fracasso. Eu, para me salvar, me joguei ao mar e não sei se chorei debaixo d’água, pois o sal de meus olhos se misturou com a água da Urca.

Não me levaram ao famoso Brasil x Uruguai em 50. Mas me lembro de meu avô, chorando e dizendo: “Só se ouvia o som dos pés das pessoas descendo as rampas. Ninguém falava. Só se ouviam os sapatos”. “O silêncio era ensurdecedor”, esse foi o oxímoro usado para descrever aquele dia.

Meu amigo Paulo Perdigão, escrevendo sobre esse dia terrível em seu livro “Anatomia de uma Derrota”, tem a tese de que o Brasil seria outro país se tivéssemos ganho “aquela” Copa, “naquele” ano. Talvez não tivesse havido a morte de Getúlio nem a ditadura militar.

Eu penso como ele. Perdigão acha (e eu também) que as outras Copas não chegaram a sarar as feridas daquele dia. A vitória em 50 teria sido essencial para o progresso nacional.

Ele escreve: “Foi uma derrota atribuída ao atraso do país e que reavivou o tradicional pessimismo da ideologia nacional: éramos inferiores por um destino ingrato. Tal certeza acarretou nos brasileiros a angústia de sentir que a nação tinha morrido no gramado do Maracanã…”. E aí ele diz a frase rasgada de dor: “Nunca mais seremos campeões do mundo de 1950!”.

A partir desse dia, associei futebol e país, numa “tabelinha” histórica. As taças de 58 e 62 marcaram um momento de abertura econômica e de progresso cultural jamais vistos. JK, Brasília, bossa nova, cinema, teatro, reformas populares em um país novo. Mas a esperança seria arrebentada em 64, pelo golpe.

A Copa de 70 teve para mim um sabor amargo e doce, que fazia sorrir o ditador Médici, legitimando a tortura e a morte de heróis. A taça de 70 foi outro oxímoro: uma “alegria dolorosa”. Eu imaginava os torturadores e seus torturados no “pau-de-arara”, todos torcendo pelo Brasil. A vitória em 70 veio animar o torto “milagre brasileiro”, que nos mergulhou em buracos de dívidas impagáveis.

Depois, vieram: a derrota das eleições diretas, a morte de Tancredo Neves, que teve o mesmo gosto de absurdo do Brasil x Uruguai; depois, os “anos Sarney”, quando parecia que o Brasil nunca mais sairia do buraco, descrente até mesmo da liberdade, com a falência do Estado e a descoberta de que a “democracia real” não existia dentro das instituições, nos alicerces do país.

Depois desse período letárgico, com gosto de conto-do-vigário, os brasileiros deprimidos chamaram o “bonapartismo narcísico” de Collor para “salvá-los” mais uma vez… Acho até que Collor nos “ajudou” com seus erros, que foram tantos, que nos acordaram do fracasso passivo que já durava havia 40 anos, desde a derrota de 50.

O impeachment e os caras pintadas foram o “trailer” da vitória de 94, com o governo FHC raiando com “novas palavras”. Quase no mesmo mês, derrotamos a inflação e viramos tetracampeões. Um novo tempo estava começando!

Mas aí chego a hoje, dia em que escrevo esta coluna, depois do jogo Brasil x Chile. Vi o quê? Vi uma vitória não merecida, com um time de craques sem completar jogadas, com uma trama de jogo hesitante.

Vi um time parecido com o tempo político que estamos vivendo. Tudo para dar certo e não dando, saídas esperançosas e frustrações imediatas, falta de penetração, falta de gols, um “bom senso” de classe média de Zagallo, que tira o brilho da coragem, jogadores seduzidos pela economia global da Nike, como, aliás, o próprio país.

E aí um terceiro arrepio me gela a espinha. E se não der certo a idéia de país a que FHC e o mundo nos levam? E se a Inglaterra, com seus “hooligans”, for campeã, como reza a profecia de Peticov? Vejam: 1966 + 1998 = 3964.

Que quer dizer esse número fatídico? Que destino nos está reservado? Conseguiremos entrar no ano 2000 de cara nova? Tenho medo que não. Talvez nosso destino tenha sido traçado pelo gol de Ghiggia. Deus nos proteja. Acho que nunca mais seremos campeões do mundo de 1950…