por Rubens Lemos
Santos (SP), dezembro de 1955, Estádio Urbano Caldeira (Vila Belmiro), treino da tarde. O cartola português, 32 anos, circula paciente e discreto pelas arquibancadas quase vazias. Comerciante de tino reconhecido, usa o olhar seletivo e miúdo para acompanhar cada jogada de um moleque magriço, escurinho, driblador e artilheiro, destaque entre os reservas do Santos.
O jovem dirigente é vice-presidente de futebol do Vasco (RJ) e gosta de cumprir missões. Quer um craque a devolver a alegria aos cruz-maltinos ciumentíssimos com o Flamengo do potiguar Dequinha, do alagoano Dida, do fanho Joel, do elegante meia Rubens e do supercraque Evaristo de Macedo, a caminho do tricampeonato carioca.
Gestos medidos como se um cronômetro sentimental o movesse, Antônio Soares Calçada fixou-se no jovem absolutamente anormal e procurou o presidente santista, Modesto Roma.
Em sotaque patrício, não se ateve a rodeios:
– Apresento em nome do Clube de Regatas Vaxco d’Gama a proposta por aquele garoto magriço. Estamos dispostos a pagar 1 milhão de dólares.
Modesto Roma foi educado e sentencial:
– Aquele vai ser o melhor jogador do mundo e você, como todos que chegam aqui, percebeu. Não é difícil. É uma monstruosidade. Chama-se Pelé e posso até emprestá-lo ao Vasco. Vendê-lo, nunca nem a ninguém.
O duelo de cobras expunha as lógicas de cada um. Modesto Roma cederia Pelé sem perder a condição de dono, sabendo que o Maracanã amplificaria seu nome e, em um ano, ele voltaria tão pronto quanto saiu do berçário, em Três Corações(MG).
Calçada raciocinava que o empréstimo faria o Campeonato Carioca de 1956 parecer picolé Napolitano de tão gostoso. Óbvio também que a devolução de Pelé ao Santos representaria a demonização de quem o contratou e Calçada era sócio do Vasco desde os 19 anos.
Exímio negociador, saiu de Santos com um esplendor de talento, longe de um Pelé, um ídolo lembrado pela Velha Guarda: Walter Marciano, responsável direto pela reconquista do Carioca em 1956, num time que fazia o meu pai declamar em voz rouca: Carlos Alberto; Paulinho e Bellini; Laerte, Orlando Peçanha e Coronel; Sabará, Almir, Vavá, Wálter Marciano e Pinga.
Em 1957, o Vasco, ou Walter Marciano, deu um baile no Real Madrid, melhor time do mundo, com Puskas, Di Stéfano, Gento, Canário e Del Sol. Walter Marciano foi vendido ao Valência (ESP) e morreu em 1961, de acidente de carro, original da tragédia que matou o mago Denner, em 1994.
Antônio Soares Calçada morreu aos 96 anos esta semana e foi o presidente mais vencedor da história do Vasco: deixou na galeria do clube, 17 títulos, no futebol, no basquete e no remo. Venceu todas as eleições que disputou. Sua morte encerra o ciclo dos dirigentes que amavam primeiro para pensar em negócios depois.
Comprou inúmeros craques. Revelou outros tantos. Sempre na contracena, oposto da ribalta, avesso aos holofotes. Sua personalidade era o carisma de uma Bella Époque em que pontificava junto a Francisco Horta no Fluminense e a Márcio Braga, no Flamengo, quando não havia ódio, no futebol. Multidão, artistas, gols, 120, 150 mil pessoas a cada clássico no Maracanã.
Respeito os mortos. A eles, nenhuma covardia. O sucessor de Calçada foi Eurico Miranda, também falecido em 2019. Nem queria compará-los. É preciso apenas resumir: Calçada era a autoridade silenciosa. Eurico, sua antítese. Se completavam.