por Sergio Pugliese
Em janeiro de 1970, numa terça-feira à noite, o bicampeão mundial Mário Jorge Lobo Zagallo calçava seu tênis sentado à beira da cama. No ombro, a camisa azul marinho com escudo de flores do time de ex-alunos do Colégio Marista São José, da Tijuca. Estava concentrado, pois tinha uma missão importante pela frente. Sua mulher olhou, desconfiada. Nesse ano, Zagallo era o homem mais importante do Brasil. Todas as lentes apontavam para ele. Acabara de substituir o jornalista João Saldanha no posto de técnico da seleção brasileira num mar de polêmicas. Sua responsabilidade era gigante e a imprensa cobrava resultados. Mas, naquele momento, tinha outro motivo para se preocupar. Precisava despachar de vez o Roxo, de Copacabana, adversário osso duro de roer, pela semifinal do Campeonato de Peladas do Aterro. Dois dia antes, um domingo, o jogo terminara 4×4 e, com centenas de pessoas se acotovelando para ver o “time do Zagallo”, o juiz se viu obrigado a transferir as cobranças de pênaltis para terça-feira.
– A regra da época determinava que apenas um jogador realizasse as cinco cobranças e eu era o batedor. Acredita, que mesmo naquele momento turbulento, fui ao Aterro à noite, uniformizado, só para bater os pênaltis? Fomos eu, o goleiro Paulo Sávio, nossos dois adversários e o juiz – recordou, feliz da vida.
Nessa fase, Zagallo ainda tinha várias dúvidas sobre a escalação da seleção, uma delas se Paulo César Caju seria titular ou não. Mas o escrete do Marista São José, sabia de cor: Paulo Sávio, Ronald, Santoro, Olívio, Pereira, Miltinho, ele, Beto e Ferraro. O técnico, Elízio Pereira. Áureos tempos! Para tentar reviver um pouquinho dessa época, a equipe do A Pelada Como Ela É promoveu o encontro entre Ronald Carballo, o Carlos Alberto Torres do time, e o Velho Lobo. Os dois não se viam desde o jogo contra o Roxo, há 40 anos. Depois disso, os compromissos de Zagallo o impediram de prosseguir no campeonato.
– Quanto tempo, amigo! – suspirou Ronald, munido de fotos e crônicas da época.
Em poucos minutos, os parceiros de tantos anos pareciam dois meninos vasculhando a papelada. Encontraram preciosidades como a crônica de Nelson Rodrigues sobre um amistoso entre o Marista São José e o Adeg, timaço que contava com Esquerdinha, Nilton Santos e o goleiro Barbosa jogando na linha. Num dos trechos, o escritor diz “amigos, sempre confessei, sem nenhum pudor, a ternura que me inspiram as peladas. Elas são filhas de São Francisco de Assis”
A dupla estava encantada com as relíquias.
– Minha nossa, olha o Lima! O que o Ademir Queixada está fazendo aqui? O Castilho, o Pinheiro, meu Deus! – babava, Zagallo, de 79 anos.
– Lembra do Jajá, de Barra Mansa? – perguntava Ronald, de 75.
Os dois viajavam no tempo. O time dos ex-alunos do Marista São José entrou em campo pela primeira vez, em 1954. Dos fundadores, apenas Ronald Carballo continua na área. Ele conseguiu renovar o grupo e a pelada prossegue a todo vapor, agora sob responsabilidade de Guilherme Federal e Mauricinho Câmara. Na quadra do colégio foi construída uma história com pilares de aço. Ali, correndo atrás da bola, todos aprenderam valores importantes, como disciplina, caráter e união. Certa vez, Zagallo disputava um racha quando foi avisado que Admildo Chirol estava na arquibancada e precisava falar com urgência. Era 67 e o time principal do Botafogo ia muito mal. Admildo era o técnico e Zagallo cuidava dos juvenis, que iam muito bem, obrigado! Admildo, chorando, pediu ao amigo para assumir seu lugar. Zagallo se surpreendeu, esticou a conversa e topou com uma condição: ele seria seu preparador físico. Pacto feito!
– Ganhamos o campeonato de 67 e 68, e nossa dupla foi parar na Copa do Mundo. E tudo foi acertado numa pelada!!!! – divertiu-se.
Ronald Carballo ouvia as histórias, orgulhoso. Afinal, testemunhou momentos importantes dos bastidores do futebol brasileiro. Ele só temia perder o craque do time para o Botafogo e seleção brasileira. Mas Zagallo sempre conciliou. No Marista São José, era o motorzinho. Marcava, defendia e fazia um gol atrás do outro. Nas peladas da Rua Professor Gabizo, Tijuca, e entre as cocheiras do Derby Club, onde depois foi construído o Maracanã, o menino Zagallinho já chamava a atenção pelo vigor e técnica. Uma modernidade levada, com sucesso, das peladas para o juvenil do América, Botafogo e escrete canarinho. Sua forma de jogar revolucionou. Os críticos sempre tiveram que o engolir. Bem antes, mas muito antes, dele ter disparado o famoso “vocês vão ter que me engolir” para alguns jornalistas.
– Várias vezes comprei briga na rua quando ouvia alguém falar mal dele – garantiu Carballo.
Mas Zagallo fazia por merecer essa fidelidade. Um bicampeão mundial, idolatrado pela torcida e recém contratado para comandar a seleção brasileira, se dispor a bater pênaltis, à noite, no Aterro, para defender seu time de pelada não era para qualquer um. E Zagallo, como sempre, foi para vencer. Converteu os cinco pênaltis. Bola para um lado e goleiro para o outro em todos eles. Nesse dia ninguém do time conseguiu ir. Terça-feira à noite, chuvinha fina, a mulher no pé……….mas ele foi e comemorou muito com o goleiro Paulo Sávio. Deu socos no ar, cumprimentou os dois adversários derrotados, abraçou o juiz, enfim, classificou o time. Dias depois, viajou para o México. O técnico Elízio Pereira reconhecia que vencer o campeonato sem sua principal estrela seria uma missão duríssima. Mas Zagallo, para amenizar, prometeu conquistar um título mais polpudo, que unisse os 90 milhões de torcedores do país, numa corrente pra frente. E não deu outra. O Marista perdeu a final, mas quando o juiz apitou o fim de nosso 4 x 1 na Itália, no monumental Azteca, parece que todo o Brasil deu a mão e todos juntos, numa só emoção, ficamos roucos e choramos até cair. O craque do Marista São José mais uma vez cumprira sua palavra.