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andré felipe de lima

PADROEIRO DOS PELADEIROS

por André Felipe de Lima


Espontaneidade é uma das características mais pujantes do brasileiro. Viver com o salário-mínimo que recebemos exige desenvoltura para superar os percalços diários. Brasileiro é assim, ginga e dribla como poucos. Por isso nosso futebol é o que é. Quase uma entidade acima do bem e do mal, sacralizada pelos santos peladeiros. E um deles chama-se Dirceu Lopes. Um “santo” capaz de unir cruzeirenses, atleticanos e americanos em torno de uma só oração. A do futebol mágico. “Foi ídolo dos peladeiros”, escreveu Jorge Santana, cruzeirense que rezou muitas vezes no “altar” do Mineirão e presenciou, com olhos de ver, milagres da bola que somente “São” Dirceu Lopes operaria.

Faltava pouco para canonizá-lo. Uma das façanhas mais famosas do milagreiro Dirceu aconteceu na noite de 30 de novembro de 1966. O Cruzeiro entrou em campo para o embate com o Santos pentacampeão da Taça Brasil. O “altar” Mineirão recebeu os dois clubes e seus fiéis. Os paulistas poderiam se tornar hexacampeões. E tinham tudo para consegui-lo.

Na fileira do Santos havia Pelé, Coutinho, Gilmar, Dorval, Mengálvio, Zito, Pepe… linhagem não menos santificada que a de Dirceu Lopes, que contava com outros gênios da bola ao seu lado, entre eles Tostão. Aliás, Cosme e Damião estão para o catolicismo como Dirceu Lopes e Tostão serviram à fé cruzeirense.

Fato insofismável daquele jogo — antes de o juiz apitar o seu começo —, o Santos constituía-se em algo mítico e inabalável. Bicampeão mundial, nem mesmo Milan, Benfica ou Peñarol, bichos-papões daquela década, o superaram. Mas com o Cruzeiro seria diferente. Com Dirceu Lopes, aliás, seria diferente. Ele marcou três gols. Em um deles o goleiro Gilmar esforçou-se, mas acabou abraçado à trave. O “milagre” aconteceu. Cruzeiro, dos homens e mulheres de fé, 6 a 2.

Fora dos campos Dirceu sempre demonstrou timidez, dentro deles, porém, encantava com jogadas brilhantes, que no futebol que presenciamos hoje talvez Ronaldinho Gaúcho tenha sido o último a arriscá-las. Dirceu, calado e ponderado fora do gramado, nas quatro linhas um cidadão irreverente e eloquente. Não que fizesse palhaçadas. Nada disso. Seus pés, sim, eram pândegos. Mágicos mesmo.

O Cruzeiro enfrentava o mexicano Cruz Azul, no Coliseu de Los Angeles, quando Dirceu Lopes desempatou o jogo, que estava 1 a 1, com um gol indescritível. Mais um “milagre”, portanto. Após driblar dois jogadores, ele chutou a bola sutilmente, que acabou encobrindo o arqueiro. Até aí, nada demais. Ou seja, era apenas mais um gol de placa do Dirceu, rotina para os mineiros. Mas o surreal aconteceu após a sensacional jogada. Torcedores começaram a invadir o gramado querendo a todo custo a camisa do craque. O bom senso prevaleceu e o juiz Willy Zooker encerrou a partida como medida de segurança.

A habilidade incomum de Dirceu extasiava os que verdadeiramente compreendem a fé daqueles meninos — ou já grandinhos — que disputam uma pelada em chão batido ou na rua defronte de casa.

Tostão — analogia à parte, o “São Cosme” cruzeirense — diz até hoje que Dirceu, o “Damião”, jogava como “um passarinho”. Parecia flutuar em campo, ora no ataque, ora no meio. Por essas e outras passou a ser chamado pela imprensa mineira de “Príncipe da Bola” ou “Dez de Ouros”.

O Cruzeiro jogava em São Paulo quando recebeu a visita de Garrincha, o mais elevado “milagreiro” do saguão santificado do futebol, no hotel onde os craques estavam hospedados. Dirceu, ao abrir a porta do quarto, deparou-se com a “Vossa Santidade” Mané, que disse: “Vim aqui para cumprimentar o maior jogador do mundo!”. Dirceu Lopes enfim canonizado.

Um de seus principais devotos foi o ex-presidente cruzeirense Felício Brandi. Mas o primeiro a constatar que Dirceu Lopes era sobrenatural com a bola nos pés foi Adelino Torres, que imediatamente avisou a Brandi, que o menino de Pedro Leopoldo era incomum. Brandi ordenou que o levassem ao Barro Preto para testes.

Quando Dirceu Lopes chegou ao clube, o cartola mandou Milton Lopes, treinador dos juvenis, parar o coletivo e escalar o menino que acabara de chegar do interior. Com Dirceu ainda em campo e, naturalmente, esbanjando categoria, Brandi pediu ao seu secretário, o Azevedo, que preparasse imediatamente um contrato para aquele menino extraordinário. Pronta a papelada, encaminharam-na com celeridade ao pai do menino prodígio, seu Tito, em Pedro Leopoldo.

“Quando o pai de Dirceu acabou de assinar, o pessoal do América — Biju à frente — estava chegando para levar o craque para a Alameda. Perderam a viagem, porque Dirceu Lopes acabava de entrar para a história do Cruzeiro”. Palavras do profeta cruzeirense Jorge Santana.

Dirceu Lopes estreou no Cruzeiro em 1963 contra o Paraense, de Pará de Minas, e, ao entrar no segundo tempo, marcou dois gols dos cinco que o time sapecou no modesto adversário. No ano seguinte, ergueu seu primeiro troféu pelo clube do Barro Preto: o campeonato mineiro de juvenis.

O ídolo Dirceu Lopes Mendes nasceu no dia 3 de setembro de 1946, em Pedro Leopoldo, cidade a 35 quilômetros de Belo Horizonte. Ainda criança, demonstrava ser exímio driblador, mas nada de zagueiros por enquanto. Driblava os pais. Mas a causa era justa: assistir jogos do seu ídolo. Família pobre, televisão na residência dos Lopes, nem pensar. Dirceu esperava a noite chegar e os pais dormirem para pular a janela e correr até o bar onde Didi o esperava com jogadas sensacionais no Botafogo e na seleção. Diante da TV, o menino imaginava-se promovendo o mesmo encantamento que Didi exercia pela telinha.

De noite, “estudava” o Didi no bar; de dia, executava as lições nos campos de Pedro Leopoldo. Até ser descoberto por Adelino e o Cruzeiro, a primeira experiência de Dirceu Lopes na senda futebolística ocorreu no clube homônimo de sua cidade natal.

Depois da estreia magnífica nos juvenis do Cruzeiro, muito já se falava dele no Barro Preto. Dirceu rapidamente passou para o elenco profissional, estreando num clássico contra o Atlético, em 1º de dezembro de 1963. O jogo aconteceu no estádio Independência e terminou 1 a 1. Humilde, retraído e com jeitão interiorano, o garoto encaixou-se na meia cancha e conquistou a camisa dez. O resto, bem, é história. E das mais suntuosas, repleta de gols e títulos.

Dirceu Lopes, segundo colocado no ranking de artilheiros do Cruzeiro, marcou 224 gols em 601 jogos. O ídolo ajudou a enterrar a alcunha de “Cruzeiro Duro”, de time que só conquista tudo somente na base da garra, e fez prevalecer a “Academia Cruzeirense”. Foi artilheiro do campeonato mineiro de 1966, com 18 gols, e marcou tantos gols no Galo que nenhum outro jogador cruzeirense conseguiu superá-lo durante jogos do clássico na Era Mineirão. Por doze vezes, os goleiros alvinegros buscaram no fundo da rede bolas emendadas por Dirceu Lopes, um dos maiores colecionadores de títulos do futebol de Minas Gerais. Além do “milagre” da Taça Brasil de 66, conquistou um pentacampeonato [1965, 66, 67, 68 e 69] e um tetra [1972, 73, 74 e 75] mineiros. Desde 1971, a revista Placar oferece anualmente as Bolas de Ouro e a de Prata aos craques do campeonato brasileiro. Dirceu Lopes foi agraciado com três de Prata, em 1970, 71 e 73.

Tudo o que fazia pelo futebol o credenciava para a seleção brasileira. Dirceu Lopes disputou alguns amistosos e conquistou a Copa Rio Branco de 1967. Era tido como a “arma secreta” do escrete montado por João Saldanha para a Copa de 70. Como jogava sem posição fixa, Dirceu faria para João “Sem medo” o que Tostão fez para Zagallo, na Copa do Mundo no México: um trabalho de formiguinha em campo. Ou, quem sabe, a dupla “Cosme e Damião” cruzeirense poderia formar com Pelé o ataque do escrete de Zagallo. Mas isso não aconteceu, e foi, talvez, a maior frustração de Dirceu Lopes em toda a carreira.

Por pouco não ocupou o lugar de Pelé. Mas não no escrete e sim no Santos. Pelé se preparava para embarcar em uma aventura no futebol americano e precisavam de outro gênio para substituí-lo. Os cartolas pensaram em Dirceu Lopes. Nada mais óbvio. Mas o “padroeiro dos peladeiros” acabou desistindo do Santos e manteve-se fiel a sua “catedral” no Barro Preto.

Além do martírio por não ter sido convocado por Zagallo para o mundial de 70, Dirceu Lopes sofreu com os pés ímpios de zagueiros que merecem, no mínimo, o purgatório do futebol, ou seja, a eternidade num banco de reservas. Em 1972, Dirceu quebrou a perna e ficou de molho por conta de um destes facínoras que se dizem jogadores. Para o seu lugar escalaram Palhinha, que acabara de sair do juvenil. Três anos depois, outra contusão, agora no calcanhar. Permaneceu treze meses fora dos gramados. Deveria parar, mas insistiu em continuar a carreira. E sabia que não tinha condições, porque antes deste grave problema uma tesoura voadora de um tal “Divino”, jogador do Atlético de Três Corações, provocou um deslocamento ósseo no quadril que fez Dirceu Lopes dar entrada duas vezes no centro cirúrgico.

Santo forte é assim mesmo, tem fé inabalável. Entre 1975 e 76, Dirceu “pregou” seu futebol milagroso no Fluminense, mas não compreendiam muito bem sua “oração” nas Laranjeiras. E o craque voltou à Toca da Raposa. No fim da carreira, jogou pelo Uberlândia, em 1979, e pelo Democrata de Governador Valadares, em 1980 e 81.

O “dízimo” que o futebol proporcionou ao “milagreiro da bola”, Dirceu investiu em uma grife de jeans chamada Dilom [Dirceu Lopes Mendes]. Acabou regressando ao futebol e abriu escolinhas do Cruzeiro em Sete Lagoas, Conselheiro Lafaiete e Pedro Leopoldo.

Em meio às crianças, o “padroeiro dos peladeiros” ouve as preces dos cruzeirenses e garimpa no interior mineiro para cumprir missão das mais santificadas: encontrar um herdeiro digno dos milagres de Dirceu Lopes que abrilhantaram os gramados brasileiros.

AQUI, COM MEUS BOTÕES

por André Felipe de Lima


Se os poetas maiores podem, também posso, ora. Não falo da capacidade de um Vinicius de Moraes ou de um Chico Buarque para os sonetos, canções ou rimas históricas, que somente eles são capazes de criar. Quem dera escrevesse um por cento do que escreveram, cantaram ou viveram. Falo de outra paixão que Vininha (permito-me esse carinho com ele) e Chico tiveram na infância e dela jamais desistiram: o jogo de botão.

Ando meio nostálgico nessa dramática quarentena, e isso não tem nada a ver com “Síndrome de Peter Pan” ou algo do gênero. Tenho voltado o ponteiro do relógio sem parcimônia rumo a uma aventura, sei lá, mezzo “Benjamin Button”, mezzo “O túnel do tempo”. O primeiro, muitos sabem, é um filme onde Brad Pitt interpreta um camarada que nasce idoso e morre bebê (contei o filme, perdoem-me); o segundo, outros muitos da minha faixa etária ou mais também sabem, é um famoso seriado (olhe a nostalgia pulsando!) dos anos de 1960 cujos episódios que vi na TV na primeira metade da década seguinte eram imperdíveis. Creio ter assistido a todos, e sem conversa fiada.


Nessa mesma época, começava a curtir futebol. Jogava (muita!) bola, mas também (muito também!) botões. Tive um sem número deles. Os primeiros eram os chamados “panelinhas” da Estrela, com as carinhas dos jogadores, lembram? O meu “panelinha” do Vasco tinha no gol o Andrada, na zaga o Moisés, na ponta-direita o Jorginho Carvoeiro e no ataque o Roberto Dinamite. Confesso também tive os do Fluminense (com o Capita, Marco Antônio, Doval e Rivelino); do Botafogo (com Marinho Chagas, Fisher, Manfrini e Carlos Roberto) e do Flamengo (com Cantarelli, Rondinelli, Geraldo e Zico). Depois vieram os botões da Gulliver, a maioria de cristal e também com carinhas dos craques, mas também escudos.

Os hoje cobiçadíssimos de galalite da Bertisa foram os derradeiros da minha infância e pré-adolescência, com todas as cores, times, tamanhos e brasões. Tive para lá de trezentos. Hoje, um antigo time de “panelinha” da Estrela — para o qual todo garoto passava a torcer o nariz após ter um galalite nas mãos — custa num site de leilões de relíquias ou mesmo em qualquer marketplace da vida algo em torno de 500 reais. Comprava-os no antigo mercado Casas da Banha, que havia no Leblon, ali na rua Bartolomeu Mitre, por uma ninharia.

Acho que hoje um time de “panelinhas” custaria uns 10 reais, no máximo. E os jogadores, cujas “carinhas” colávamos nos botões, coitados, sequer viam a cor do dinheiro que poderiam receber de direitos pelo uso de suas imagens. Isso só passaria a valer em 1979, com a coleção de figurinhas “Futebol Cards”, do chiclete Ping Pong, que mudou completamente essa relação do jogador brasileiro de futebol com o marketing de entretenimento no país.


Já os botões da saudosa fábrica Bertisa são, hoje, ainda mais caros. Um simples “olhinho” ou “ratinho” — como nos referíamos aos miúdos botões de duas camadas de galalite — está custando na faixa de 50 a 100 reais. No mês passado, bateu saudade disso tudo e decidi — igualmente ao que fizeram Vinicius de Moraes e Chico Buarque — reaproximar-me do passado, do garoto igualzinho aos da foto principal que ilustra esta crônica.

No mais, como dizíamos antes de chutar contra o gol adversário e debruçados em uma mesa Estrelão, “prepara!”. Um gol em uma partida de botão sempre valerá a pena. E, aqui com meus botões que comprei nessa quarentena, é uma excelente e lúdica terapia para encarar esse momento tão difícil pelo qual passamos.

PELÉ NO VELHO TESTAMENTO

por André Felipe de Lima


Há fatos que surpreendem pelo simples, vá lá, fato de serem quase inverossímeis, e, por incrível que possa parecer isso, acontece muito com personagens memoráveis da história. Pelé, obviamente, está entre elas. Logo após marcar seu milésimo gol, o Rei viu seu feito ganhar o planeta. No mundo inteiro não se falava em outra coisa senão do gol de número mil do Pelé. Das histórias que ouvi ou li sobre Pelé naquela época em que bateu o vascaíno Andrada no Maracanã, a mais impressionante pesquei em uma edição do Jornal do Brasil e partiu de um rabino chamado Herz Torenheim, que se encantou com o apelo que o rei fez ao mundo para que cuidassem das crianças desamparadas. O religioso sugeriu, inclusive, que se criasse um fundo internacional nesse sentido e tendo Pelé como sigla e nome. Torenheim devia gostar muito de futebol e, claro, do Rei. A ponto de simplesmente descobrir (preparados?) Pelé citado no Velho Testamento. “O milésimo gol do Pelé repercutiu mais que o voo dos cosmonautas à Lua”, dizia o empolgado rabino, que revelou à humanidade o fato: Pelé, escrito em hebraico de trás para frente, significa “apelo” e o seu anagrama é “mil”. Vejam: o Pelé chegou ao seu milésimo gol e, em seguida, fez um apelo que ecoou intensamente no mundo inteiro a ponto de o rabino pescar essa memorável história no Velho Testamento. Pelé não é (sempre será) apenas o maior e melhor jogador de futebol em todos os tempos. Pelé é transcendental. Pelé em sua tradução na cosmogênese que explica o planeta bola só pode ser mesmo um deus mágico. E assim falou Torenheim.

O DIA EM QUE PELÉ MANDOU UM JUIZ PARA O CHUVEIRO

por André Felipe de Lima


Não. Definitivamente, não. Nunca um jogador foi capaz de expulsar um juiz de um campo de futebol. A situação seria, no mínimo, completa e totalmente inverossímil. Surreal. Inimaginável. Lembro que em um jogo do Botafogo, em novembro de 2008, contra não sei quem o zagueiro André Luiz, um camarada alto, forte e sempre com cara de poucos amigos, tomou o cartão vermelho da mão do pobre do árbitro e o ergueu. “Fora!”, deve o beque ter gritado de supetão. Mas ficou nisso. André Luiz não tinha nome nem cacife para expulsar um juiz e acabou ele mesmo indo para o chuveiro após baixar a bola. Mas será que houve um dia em que algum maluco como André Luiz tentou (e conseguiu) botar para fora um árbitro? Sim, e somente um camarada com suas devidas idiossincrasias e capaz de mandar mais que a própria bola de futebol no contexto de uma peleja, seria capaz de chegar a esse extremo, e isso aconteceu no dia 17 de julho de 1968, dois anos antes do “tri” no México. O juiz em questão chamava-se Guillermo “el chato” Velásquez, que já não está mais aqui para contar a história; quanto ao seu “algoz” tem nome, sobrenome e um apelido, o mais famoso do mundo, por sinal: Pelé.


A história, uma das mais inusitadas na história do futebol, aconteceu durante um jogo do Santos contra a seleção olímpica da Colômbia. Um simples e (em tese) inofensivo amistoso, cujas cotas eram gordas para o clube paulista pelo simples fato de Pelé estar no gramado. Mas o rei teria aplicado um “chega-pra-lá” em uma dividida mais ríspida com o zagueiro Luís Eduardo Soto. Houve confusão entre os jogadores do Santos e os colombianos. Dirigindo-se ao juiz, Pelé teria proferido um sonoro “Vá se f., seu filho de uma p.”. Velásquez ouviu e viu muito bem o que gritara Pelé. A expulsão (na época ainda não havia cartão amarelo ou vermelho) era o remédio para a situação. Todo mundo se empurrando e ao juiz (coitado), que emenda: “Pelé, ‘con permiso’ fora!”. O Edson sempre negou ter participado da confusão ou mesmo xingado Velásquez, mas o Pelé nunca negou isso, e saiu de campo. Pelé caminhando e a torcida gritando: “¡Vuelve, Pelé, vuelve!”. Os santistas em cima do pobre do árbitro. Empurra dali, empurra daqui; torcedores ensandecidos, que só foram ao estádio por causa do Pelé. A tragédia era iminente. Alguém tinha de fazer algo imediatamente ou nem mesmo Pelé sairia vivo daquele estádio onde o caos se instaurara. Um cara soprou no ouvido do bandeirinha Omar Delgado, e deve ter dito mais ou menos assim: “Ve allí y saca al árbitro loco del césped”. Delgado acatou a ordem e mandou o recado para Velásquez, que, obviamente pasmo, ouviu a decisão contra ele. Velásquez estava expulso. Pelé, que sequer saiu de campo, permaneceu. No fim das contas, o jogo continuou, e deu Santos. Quatro a dois, com um gol dele, Pelé. Velásquez e Pelé estiveram dois anos depois, no México. Mas não se esbarraram. Nunca mais um cruzaria o caminho do outro. Para Pelé, a glória. Para o pobre do “El chato” Velásquez, bem… sobraram um olho roxo e o chuveiro do vestiário.

CONFIRA O VIDEO DAQUELE JOGO QUE ENTROU PARA A HISTÓRIA DO FUTEBOL

SCHIAFFINO QUASE FOI PARAR EM BANGU

por André Felipe de Lima


“Se perdemos somente de três, ficaremos satisfeitos”, disse o icônico capitão da Celeste Olímpica Obdulio Varela dirigindo-se ao genioso camisa dez uruguaio Juan Schiaffino. Os dois sempre se estranharam dentro de campo, tanto nos jogos do Peñarol quanto nos da seleção do Uruguai. Dizem que Obdulio, sem paciência com os chiliques do Schiaffino, teria emendado a seguinte frase, machista, sem dúvida: “Toma una mujer!”, cuja tradução literal resume-se em “Vá para as mulheres!”. Sim, “El capitán”, todos sabem, era duro na queda e a delicadeza não era, definitivamente, seu forte. Com seus gritos de fazer tremer a muralha da China, ele calou um país inteiro ao berrar incessantemente no gramado do Maracanã naquele dia 16 de julho de 1950, o mais triste da história do nosso futebol. Defino-o como o “mais triste” porque tínhamos um dos melhores escretes nacionais em todos os tempos ao contrário daquele que entubou um imperdoável 7 a 1, em 2014. Ali, como bem define meu amigo Mário Moreira, não foi “tragédia”, foi “vergonha”. No Maracanã de 1950, houve, sim, uma tragédia. Obdulio e Schiaffino pareciam em armistício. Falavam a mesma e precisa língua charrua enquanto nós empinávamos o nariz e, soberbos, afogávamos em nossa turva água do destino.

Quando recordamos aquela final da Copa do Mundo de 50, logo nos vem à mente as imagens (repito incansavelmente) icônicas do Obdulio recebendo a taça Jules Rimet das mãos do próprio e incrédulo Rimet e o gol do Ghiggia, o segundo e derradeiro do jogo. Barbosa, Bigode e Juvenal (coitados) entraram para a história como “vilões”. Uma rotunda injustiça. Obdulio e Ghiggia tornaram-se imortais perante o povo uruguaio e na história do futebol. Mas Schiaffino foi maior que seus dois colegas de time. Ouso afirmar isso porque, além do gol que fez no “maracanazo”, o primeiro dos uruguaios, “El Pepe”, como era carinhosamente chamado, foi o termômetro da Celeste em toda a competição. O cérebro. O maestro. O mágico. O estilo de Schiaffino era inconfundível. Elegante com a pelota, Pepe fazia dela sua amante bem amada. Jamais a maltratou. Isso, nunca. Ouso também afirmar que se Schiaffino não estivesse naquela Copa, o Brasil não a perderia. Foi ele o nosso maior algoz. Se Obdulio pôde gritar naquela tarde e Ghiggia partir como um azougue rumo à meta do Barbosa, isso só foi possível porque eles tinham Juan Alberto Schiaffino, o “Juan del Maracaná”.


Ah, ia esquecendo e quase encerro a crônica sem contar que, dois meses após o “maracanazo”, o notório Silveirinha, cartola histórico do Rio, por muito pouco não levou Schiaffino, que operara o menisco após a final da Copa, para jogar com Zizinho no Bangu. O Peñarol botou preço. Queria 200 mil pesos-ouro equivalentes a um milhão, quinhentos e seis cruzeiros da época. Mas não deu para o Silveirinha e Schiaffino voou para outros ares. Na Itália, tornou-se ídolo do Milan e “italiano” de carteirinha, fato que os uruguaios, que passaram a chamá-lo de “Deus do futebol” após o “maracanazzo”, nunca engoliram. O fato é que Schiaffino nasceu para acabar com o nosso sonho, ou, pelo menos, retardá-lo. No final das contas, a dor transformou-se em alegria e a Jules Rimet foi parar na rua da Alfândega, onde deveria repousar para sempre em nosso solo, mas foi, ali mesmo, surrupiada, eis a dialética da nossa tragédia. Aquela taça, repetem até hoje os uruguaios, jamais deveria ser nossa, e o “Juan del Maracaná”, que faria 95 anos no próximo dia 28 de julho, como se tramasse um complô com o destino, parecia ser o único a ter essa certeza.