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andré felipe de lima

O ‘QUASE’ GARRINCHA QUE UM DIA PERDEMOS

Ele gostava de caçar igualmente ao Garrincha; ele tinha o mesmo perfil psicológico do Mané, e isso dentro e fora dos gramados; driblava para o mesmo lado, sempre, marca registrada do Garrincha; tanto ele quanto Mané foram lançados no futebol pelo mesmo treinador: Gentil Cardoso. Por que Luisinho Boiadeiro não virou, de fato, o herdeiro do maior camisa sete da história? Aliás, quem foi Luisinho Boiadeiro de quem hoje praticamente ninguém se lembra? Quantos “Garrinchas” continuaremos a perder?

por André Felipe de Lima

Antes de tudo, um necessário prólogo.

***


— Olha, Jaime, esse cara não leva muito jeito de bola. Você pode mandar pra frente a fim de ajudar o ataque. Eu cuido dele.

— Você manda, Beto. Vou tentar fazer um gol nesse treino e chamar a atenção do técnico pro meu futebol. Quem sabe não chegou minha grande oportunidade?

Esse diálogo entre um zagueiro e um lateral-esquerdo do time reserva do Bangu, em 1965, se referia a um jovem ponta-direita que pela primeira vez vestia a camisa dos titulares. O rapaz não tinha pinta de jogador; era magro, meio desengonçado e aparentemente fora de órbita, ou seja, parecia alheio a tudo em sua volta. O sujeito era tranquilo demais. Isso incomodava aqueles onde o sangue fervia ao ficarem frente a frente com uma bola de futebol. O garoto ouviu o papo entre os dois experientes jogadores. Não deu a mínima. Abaixou-se e apanhou um fio de capim para “palitar” os dentes.

Começara o treino. Logo no primeiro lance, o garoto recebeu a bola do lateral Fidélis (o mesmo que anos depois defenderia o Vasco). Não dominou a pelota e a deixou sair pela linha lateral. Ninguém chiou, mas olharam de forma enviesada para o jovem magrelo ponteiro, embora respeitando-o em consideração ao olheiro Nelsinho, responsável pela presença do garoto no Bangu.

O menino impetuoso não sentiu-se intimidado e ergueu a cabeça. No segundo lançamento dirigido a ele, pegou a bola no meio de campo e partiu driblando um, dois, três… chegou à linha de fundo e cruzou para dentro da área. Nenhum atacante aproveitou — lembram-se daquele lance do Garrincha cruzando para o Vavá na final da Copa da Suécia? Pois é, o rapaz repetiu a jogada de Mané. Parecia “incorporado” por Garrincha; estava endiabrado. Repetiu tudo aquilo inúmeras vezes, como Garrincha fazia. Foi aí que o tal de Jaime decidiu marcá-lo de perto. Nem precisa dizer o que aconteceu com o imprevidente e autoconfiante beque…

Jaime talvez tenha pensado, naquele instante, que deveria pendurar as chuteiras por ter sido tão humilhado por um menino “sem pinta de jogador”, “desengonçado”, mas simplesmente genial com a bola nos pés.

***

Quantos meninos um dia já foram chamados de “Garrincha”? Quantos despontaram em peneiras da categoria de base de grandes clubes driblando infindáveis vezes para o mesmo lado e deixando perfilados e paralisados outros meninos não tão bons de bola como ele? A embasbacada assistência das peladas jamais duvidara do que via: todos estavam diante de um “novo Garrincha”. Verdade indissolúvel precisa, porém, ser dita: “Quem é bom já nasce feito”. Mas, infelizmente, também é preponderante outra máxima: “O sol não nasce para todos”. Muitos daqueles pretensamente inexpugnáveis “Garrinchas” que conhecemos ou de quem somente ouvimos falar foram vítimas da aproximação destas duas máximas. Ao garoto não bastaria enfileirar “Joões” em um campo de terra batida ou num ardente asfalto de uma rua qualquer. Isso não garantiria a concretização do sonho (para ele e para quem o via jogar); não garantiria, portanto, a virtuosa convicção coletiva de que brotara mais um “Garrincha” para tornar o particular mundo de cada um de nós um pouco mais lúdico.

Hoje, confesso com uma cavalar e inconveniente dose de amargura não ouvir mais que um “novo Garrincha” surgiu, porém infindáveis vezes deparei-me ao longo da vida com definições do gênero.

Recentemente, recordei um destes camaradas cuja bola parecia escondê-la entre os pés. Pelo menos é o que li a respeito dele. Não o vi jogar porque o cara encerrou precocemente a carreira em 1968. Uma carreira, ressalte-se, que durou apenas quatro anos. Poucos recordam, mas o ex-jogador sobre o qual escrevemos chama-se Luís Moreira da Silva Filho, o popular (ou quase isso) Luisinho Boiadeiro, um ponta-direita, “sem pinta” e “desengonçado”, como definiram os ex-banguenses, Jaime e Beto, revelado no time de aspirantes do Bangu em 1964 e que integrou o elenco do time alvirrubro campeão carioca no ano seguinte. Disputou, entretanto, somente um jogo daquela histórica campanha, como cita Carlos Molinari, o mais relevante pesquisador da história do alvirrubro suburbano.

Lusinho Boiadeiro nasceu no dia 16 de março de 1941, no bairro de Vicente de Carvalho, subúrbio carioca. Chegou ao Bangu levado por Nelsinho, olheiro do clube, que o viu jogar no Continental de Irajá. Tinha tudo, mas tudo mesmo, para dar certo e tornar-se um dos maiores ídolos e craques já revelados pelo querido Bangu. Até mesmo suas tiradas se pareciam com as do Garrincha, o original, obviamente: “Quando meus marcadores pensam que vou pra lá, finjo que não, mas vou pra lá mesmo. É ou não é coincidência?”

Mas há situações na vida que ninguém consegue explicar. Tentam, mas esbarram no maldito pragmatismo que insiste em se distanciar da essência dos fatos. No fundo somos todos, infelizmente, assim, indefectíveis e inofensivos pragmáticos. Mas a história do Lusinho Boiadeiro é o que importa neste momento, não o nosso pragmatismo.

Quem foi, afinal, aquele jogador, aquele ponteiro que sempre deixava seus marcadores caídos com a bunda doída na grama? A imprensa carioca volta e meia falava dele. Às vezes — não se negue isso — falavam bem; outras, nem tanto. Entenderemos os porquês dessa inquietante dicotomia mais adiante.

“ENCARNAÇÃO” DO MANÉ

“Nascimento de um novo astro: Boiadeiro tem tudo de Mané”, exultava o título de reportagem assinada por Geraldo Escobar, do saudoso e revolucionário jornal Última Hora, do não menos saudoso e revolucionário jornalista Samuel Wainer. Foi a primeira e alvissareira notícia sobre o garoto extraordinário que pintava o sete em Bangu.

“É o novo ídolo, que nos treinos faz o público vibrar com sua malícia com a bola. Luís Boiadeiro é a simplicidade em pessoa. Joga com uma naturalidade como se estivesse ainda no Brasil, de Irajá. Inventa jogadas, ilude o adversário com truques e mágicas que tonteiam e lhe dão campo para o malabarismo que termina sempre em gol. Nos treinos, quem não der a bola para Luís Boiadeiro fazer misérias pela ponta-direita, leva vaia da torcida. É a coqueluche alvirrubra e, dizemos mais: é sensação mesmo. Um futebol de gênio. É um Garrincha em potencial”, assim escreveu Escobar e, igualmente a ele, outros repórteres e cronistas da época que constataram do que era capaz de fazer com uma bola nos pés aquele matuto, que parecia poeticamente flanar sem compromisso ao invés de jogar bola.

Tudo o que Luisinho falava tinha um “seu” ou “sim senhor” embutido na frase. Dirigia-se assim até mesmo aos companheiros de time. Era “Seu Parada”, “Seu Araras”, “Seu” Ari Clemente (sua principal “vítima” nos treinos), “Seu Paulo Borges”… este último foi quem acabaria levando a melhor na “briga” com Boiadeiro pela ponta-direita do melhor time da história do Bangu. Sempre havia, contudo, aqueles que garantiam: “Luisinho Boiadeiro foi muito melhor que Paulo Borges”.

Após aquele estrondoso treino em que “entortou” Jaime e Beto, Escobar perguntou ao menino matusquela: “Em quem você se inspirou tanto para jogar assim? Tem algum ídolo?”. A resposta foi sem titubeios: “Ah! Me inspirei no ‘Seu Garrincha’. Gastei muito dinheiro para ver ‘ele jogar’. Mas ainda não sei fazer aquelas mímicas que ele faz. Vou tentando.”

Os treinos seguintes contaram sempre com um show do Boiadeiro. Num deles, a euforia foi tão grande da torcida que tentaram invadir o gramado para festejá-lo. A radiopatrulha foi chamada para conter a empolgada moçada.

Não faltava empenho e talento ao rapaz, que chegou a fazer um teste no Botafogo. O técnico do time juvenil era Paraguaio, outrora ponta-direita do alvinegro campeão carioca de 1948. “Não fiquei lá porque eu tinha pouca roupa. Me vestia mal e fiquei com medo que eles me gozassem. Aí não voltei mais”. O garoto Boiadeiro então bandeou-se para as Laranjeiras. “O ‘Seu’ Gradim me queria, mas aí o pessoal do Bangu me chamou”. E por lá o “novo” Garrincha permaneceu.

Mas, afinal, por que o inusitado apelido? Luís trabalhava em um estábulo, em Irajá, no subúrbio carioca, onde cuidava de vacas e bois. Dizia que ajudava a proprietária do local e que ela o criara. A vida de Luisinho era aquilo tudo, vacas, bois, pasto…

Uma vez o Bangu foi jogar em Juiz de Fora (MG). Como de costume, Luisinho “acabou” com jogo. Na manhã seguinte, no café da manhã do hotel onde a delegação banguense se hospedara, um cartola percebeu Lusinho cabisbaixo. Viu-o triste e até imaginou que o rapaz adoecera. Na dúvida, pediu a um médico que o examinasse, mas Lusinho não quis. Disse apenas que estava com muita saudade de sua vacas e que desejava ir embora. Um cartola enfureceu-se e tomou dele o dinheiro do “bicho” que recebera pela vitória em Juiz de Fora. Luisinho nada falou. Humildemente, ele retirou do bolso da calça a “pataca” de 60 mil cruzeiros e entregou-a ao dirigente insano, mostrou ao mesmo a passagem de volta para o Rio que comprara. Mas Lusinho não embarcou sozinho. Voltou com seus companheiros. No clube, ao tomar conhecimento do caso, o presidente do Bangu, Euzébio Gonçalves de Andrade e Silva, mandou imediatamente que devolvessem o dinheiro ao rapaz. Foi feita a justiça. “Treinar é chato. A gente põe meia, calção, chuteiras, atadura, mas para quê? Jogo, não: a gente sabe que vale no mínimo um bico nas canelas, dado de graça pelo beque adversário. E jogo é jogo; treino é treino. Eu, confesso, não gosto de treinar mesmo não; ainda mais um tal de individual. Esse mata qualquer um. Prefiro dar pique atrás de vaca que foge do cerrado.”

“DRIBLES” CONSTANTES NOS TREINOS

Luisinho levava uma vida difícil. Era muito pobre. Com os 60 contos que ganhava, sustentava seis sobrinhos. Com o pouco que sobrava comprava uma muda de roupa e pagava o transporte de Irajá a Bangu. Confiava plenamente no “Seu” Eusébio e no “Seu” Castor de Andrade, para ele “tudo gente boa” que aumentaria o “seu” dinheirinho, dizia. Acreditava também que o treinador “Seu” Gentil Cardoso estava feliz com ele. Também pudera. Lusinho driblava até seis marcadores em uma única jogada. Quem não queria um projeto de craque assim no time? E o menino se empenhava para garantir o mínimo para sobreviver: “Tenho que jogar para ganhar, porque ‘Seu’ Castor disse que que vai me dar uma camisa de frio de Copacabana. Mas não quero vermelha, não! Boi não gosta dessa cor.”

Um dia Lusinho Boiadeiro sumiu. Foram semanas sem aparecer no clube para treinar. Isso se repetiu várias vezes ao longo de 1965. Tanto o presidente Eusébio quanto Castor cogitaram comprar todas as vacas cuidadas por Lusinho em Irajá e transferi-las para o pasto da concentração do time na Vila Hípica de Bangu. Lusinho avisara ao Gentil Cardoso que “mãe estava doente”. Era sempre a mesma desculpa. Gentil, obviamente, não a digeriu: “E daí? Ele agora é médico?”

Tentaram de tudo para que o rapaz voltasse aos treinos. Procuraram até uma moça chamada Julia de quem diziam ele gostar. Para o ponta-de-lança Roberto Pinto a “compra” das vacas resolveria o problema. Bastaria — garantira Pinto — colocar algumas no estádio e outras na concentração. “Aí, acho que nunca mais ele sai de Bangu.”

A relutância de Luisinho em permanecer exclusivamente no futebol despertara a curiosidade de muita gente para além das cercanias de Bangu. O garoto matuto que preferia ordenhar vacas a driblar (o que fazia magistralmente) com uma bola de futebol suscitava debates acalorados entre os cronistas nas redações. Um deles foi o indefectível Armando Nogueira, que definiu, em sua coluna no Jornal do Brasil, como “impressionante a excitação” dos banguenses em torno do jogador Luisinho Boiadeiro. Após ouvir os mais entusiásticos testemunhos no vestiário do Bangu, Nogueira abordou o jogador Parada, vedete do time, e emendou a pergunta:

— Então, Parada, que tal o Boiadeiro?

Nogueira ouviu na lata:

— O homem é um caso, viu! É um caso: dribla como o Garrincha…

Nogueira não se conteve com o depoimento do Parada. Queria ouvir mais sobre o garoto genial que o Bangu estava revelando. Descobriu que Gentil Cardoso queria preservá-lo mais, ou seja, lançá-lo devagar no time principal, sem afobação, porque na ponta-direita tinha um jogador, digamos, intocável: Paulo Borges. Melindrá-lo com a reserva poderia atrapalhar todo o time, que vinha bem no campeonato carioca. Mas Nogueira não se conformara. Percebera em Gentil Cardoso um “desinteresse aparente” em relação ao Boiadeiro. Tal como fez com Garrincha, por ele lançado no Botafogo, em 1953. “O menino ainda tem defeitos”, respondera o treinador ao repórter. Os tais “defeitos” eram “falta de objetividade” dos dribles e o “fôlego curto”.

Mas quem adorava o folclore em que se transformara Lusinho Boiadeiro era Castor de Andrade, que colocava lenha na fogueira: “Vou dar de presente para o menino uma vaca leiteira, que será o passatempo do menino para mantê-lo em Bangu e produzirá leite para alimentar os jogadores na concentração da Vila Hípica, em Bangu.”

Piadas à parte, Castor sabia que o clube detinha uma joia raríssima. Conscientizou-se disso quando o viu marcar um gol antológico naquele amistoso em Juiz de Fora. Boiadeiro driblou os beques e o goleiro e marcou o gol. No final do jogo, o cartola/bicheiro perguntou ao rapaz como ele conseguira marcar gol tão espetacular. Ouviu dele o seguinte: “Pois é, doutor, os beques deles ficaram preocupados com o Parada, com o Paulo Borges e, enquanto eles cercavam as feras, o mosquitinho aqui ia e picava eles por trás.”

O garoto, porém, não ganhou a tão almejada vaca leiteira, mas uma dentadura nova. Os companheiros do Bangu não perdiam a piada. Diziam que Lusinho, com a boca novinha em folha, agora riria até da desgraça alheia.

No ano seguinte, Garrincha partia para o Corinthians, deixando tristonhos os botafoguenses. Em Bangu, Lusinho permanecia sem saber se deseja um estábulo ou uma bola de futebol. Permanecia faltando aos treinos. O clube ora o multava, ora fazia vista grossa. Parecia que o destino do “novo Garrincha” estava selado. As sucessivas faltas aos treinos pareciam, entretanto, não incomodar olheiros de clubes rivais. O Fluminense queria levá-lo para as Laranjeiras. Mas Boiadeiro, que também se revelara um bom alfaiate, dizia que de Bangu não sairia de jeito algum, embora tenha treinado no Grêmio Maringá do Paraná um ano antes de chegar ao Bangu. Talvez o menino fosse mais efetivo naquele time campeão carioca de 1966, mas uma contusão no menisco após uma entrada violenta de um marcado invejoso e rancoroso o afastou do time por mais de dois meses. Coube ao notório médico Arnaldo Santiago operá-lo na Casa de Saúde São Geraldo. Durante a campanha do título alvirrubro, Lusinho Boiadeiro entrou em campo uma única vez, contra o Flamengo, no primeiro turno.

EM BANGU, NÃO DAVA MAIS


No começo de 1967, Eusébio de Andrade, o presidente do Bangu, chegara ao limite da paciência. Ele não suportava mais o desinteresse do Luisinho com o futebol. Havia meses que o jogador não aparecia para treinar até que na primeira semana de abril deu as caras no clube. O novo treinador, Martim Francisco, permitiu que o rapaz treinasse. Para variar, mais um show de bola. Coube ao treinador deslocar Paulo Borges para o miolo do ataque e escalar o “novo Garrincha” na ponta direita contra o Botafogo. “Escuta aqui, rapaz, você precisa se acostumar a tomar uns ares de Bangu, gostar mais da grama daqui e esquecer o pasto das boiadas. Outra coisa, o sol de Bangu é muito bom, principalmente pela manhã, e por isso é mais um motivo para você não sumir de vez em quando”, sugeriu Eusébio de Andrade, mas a resposta do Boiadeiro foi imediata: “Eu sei disso, presidente, mas o sol de lá é bom também.”

Mas era tarde. Não havia mais espaço para folclore. Luisinho não se emendava. No dia do jogo contra o rival, ele não apareceu. Foi a gota d’água. O Bangu não poderia puni-lo porque o jogador não tinha contrato assinado. Isso, aliás, era a queixa do Boiadeiro e, talvez, o principal motivo para preferir as vacas e não o Bangu. Castor de Andrade entrou na jogada e bem ao seu estilo, emendou: “Aqui, menino, você não fica. Vou emprestar teu passe ao São Cristóvão, e de graça.”

Boiadeiro recusou-se ir para o time da rua Figueira de Mello. Mas a ousadia para enfrentar uma ordem de Castor era completamente infrutífera. O jogador teve de acatar a decisão do cartola do Bangu. Mas o São Cristóvão é que sofreria as consequências. No dia seguinte após assinar o contrato, todos esperavam Boiadeiro no clube. O cara sumira novamente. Os dirigentes do clube rescindiram imediatamente o contrato, com o aval do técnico José do Rio a quem Luisinho Boiadeiro prometera emendar-se.

Mas um craque como ele não poderia ficar fora do futebol. Muitos pensavam que para tudo, em relação a Luisinho Boiadeiro, haveria uma solução. Mas com as portas fechadas no Bangu e no São Cristóvão estava difícil acreditar que a carreira dele lograria êxito. Em abril de 1968, uma luz surgiu. Com o passe livre recebido do Bangu, o jovem craque foi levado pelo lateral Paulo Henrique para testes no Flamengo. Na época, todos reconheciam seu valor. O goleiro Castilho, já em fim de carreira, convidou-o para jogar com ele em Belém do Pará. Um olheiro do XV de Novembro de Piracicaba também o queria. Mas o convite do Flamengo era irrecusável. A chance de ouro, porque o ponta-direita titular, o Carlos Alberto, estava se recuperando de uma contusão e mal começara a treinar com bola.

Boiadeiro seria solução para o Flamengo. Ele sentou-se no saguão do estádio da Gávea para aguardar Aristóbulo Mesquita. Os torcedores que estavam lá de plantão conheciam Luisinho. Sabiam da fama dele de “novo Garrincha”. Queriam saber como conseguira o passe livre, se continuava cuidando das vacas em Irajá e, o principal, se ainda rolava um caroço num campo de futebol. Mas aquele Luisinho não estava feliz, não era o Luisinho com tiradas à “Mané”.

“Já não havia mais ambiente para mim. Tudo porque não houve acordo para renovação de contrato (que existiu informalmente, frise-se). Nada custei ao clube (o Bangu). Era amador quando fui treinar no estádio Proletário. Nessa época, o clube estava no Norte, em excursão, e por iniciativa do então diretor Válter Gonçalves eu assinei um contrato (sic). Mas ganhava muito pouco: apenas NCr$ 60,00 mensais. O dinheiro não dava e o sr. Castor de Andrade, que foi quem me ajudou muito, ainda me deu uma melhoria com um aumento para NCr$ 92,00. Na semana do jogo Botafogo x Bangu, que terminou 0 a 0, seu Martim (Francisco) precisou de mim e foi me chamar em casa. Havia se machucado um atacante, não me lembro quem. Treinei e no coletivo nosso ataque, formado por mim, Paulo Borges, Cabralzinho e Aladim, marcou cinco gols. ‘Seu’ Martim me pediu então que eu fosse à casa do presidente (do Bangu) Eusébio para assinar (o contrato). Fui disposto a pedir NCr$ 4 mil de luvas, mas queriam me dar NCr$ 1.500,00 e NCr$ 250,00 mensais, por um ano. Relutei e disse ao sr. Eusébio que não ia aparecer para jogar. Fiquei mesmo em casa e eles tiveram que botar o Élcio. Resultado: ficaram zangadíssimos, passaram a me chamar de maluco e nunca mais tive outra oportunidade. Não falavam mais comigo e já me sentia sem clima. Não se pode brigar com o patrão, eu aprendi isto. E graças ao sr. Castor pude receber o passe (livre).”

Mas as condições físicas do Luisinho Boiadeiro estavam aquém do desejável para um jogador de futebol. Miraglia explicou a ele que seria melhor voltar á Gávea em melhores condições. Lusinho jamais retornou à Gávea.

O “novo” Garrincha sumira definitivamente do futebol. Nunca mais ouviram falar dele. Somente em 1972, o repórter Eliomário Valente, do Jornal dos Sports, foi atrás da grande pauta: Quem fim levou o “Garrincha” do Bangu?

“Talvez seja tarde para voltar, mas bem que eu gostaria. Vibrava com tudo que fazia. Para mim, o futebol não tem mistérios. É só pegar a bola e jogar o mais simples possível. Nada de complicar ou inventar. Um drible não tem nada de mais, a gente pega a bola, olha e executa a jogada. Fiz poucos gols em minha vida, mesmo porque o gol, para mim, nunca foi tentação. Preferia preparar para os companheiros. Sempre fui assim. E assim morrerei.”

Luisinho Boiadeiro estava afastado do futebol desde 1968. Seu derradeiro clube foi o Barra Mansa. Não gostava de tocar no assunto. Respondia sempre que “águas passadas não movem moinhos”. Mas decidiu desabafar com Valente. Disse que a “inveja” que sentiam dele, quando seu nome era publicado em todos os jornais, foi um dos fatores que aos poucos fez com que desgostasse de jogar bola.

Aquele ambiente do futebol foi entediando-o, diluindo-o como ser humano. Tornando-o um suco amargo. Muito humilde, Lusinho não estava preparado para ser jogador de futebol, ou melhor, não souberam prepará-lo, atraí-lo como deveria. Culpados? Muitos e ninguém, mas certamente um sistema arcaico que perdura até hoje nas bases do futebol brasileiro.

Luisinho, que não bebia e nem fumava, gostava das vacas, mas também de uma boa pelada nos campos de terra batida espalhados por Irajá ou mesmo no asfalto das ruas do bairro. O futebol não o quis, mas ele viu seu irmão mais novo, o Jaburu, que também “lembrava” o Garrincha, destacar-se em 1975 na base do Vasco, mas sem ir muito longe, igualmente ao irmão.

Naquele mesmo ano em que o menino Jaburu começava a sonhar, Lusinho Boiadeiro vivenciaria algo que mudaria completamente sua vida.

VIRADAS QUE A VIDA DÁ

Era uma tarde. Lusinho caminhava pela rua quando se deparou com um gesto covarde: um camarada espancava um menino. Um espírito de justiça invadiu sua alma. Atracou-se com o agressor do garoto e o espancou até dizer “chega”. Quando percebeu que o menino estava bem e salvo, deu as costas e foi-se embora. Seu erro. Talvez achasse que o cara em que bateu era mais um dos marcadores que deixara humilhados e estatelados no gramado após seus intermináveis dribles. Foi, sim, seu erro fatal virar-se. Erro mortal. Jamais poderia dar as costas ao ofendido e ensanguentado covarde a quem acabara de dar uma justa lição. Ouviu-se somente o estampido. Um único tiro a cruzar a rua e atingir Lusinho… em cheio. Na coluna. Da forma mais covarde possível pararam aquele que seria o herdeiro do Garrincha.

Luisinho sobreviveu, porém paralítico. Imediatamente perdera tudo. O dinheiro, que já era escasso, sumira de vez. Recebia somente 538 cruzeiros que, mensalmente, a Fugap dava a ele para “sustentar” a esposa e os três filhos menores. O pai do lateral Paulo Maurício, do América, ajudava-o. Faziam o mesmo o lateral Fidélis, seu ex-companheiro no Bangu campeão de 1966, e Luís Valentino Galo, médico do América, que o ajudava anonimamente com exames e medicamentos caríssimos antes de todo o drama de Lusinho ser revelado à imprensa. Até mesmo uma carta ao Gerson “Canhotinha de Ouro” escrevera. No texto, Lusinho pedia socorro. “Comovido, Gerson leu a carta numa emissora de TV. Após cinco minutos da leitura, um telespectador ofereceu 10 mil cruzeiros para atenuar a dor do Luisinho. Fidélis, um parceiro como poucos, jogava no Vasco. Pediu a todos os jogadores do time que colaborassem com a lista em prol do ex-ponta. Em meio a toda rede de solidariedade, surgiu a ideia de um jogo beneficente. Quantos craques foram ajudados assim? Recordo-me do Fausto, a “Maravilha Negra”, nos anos de 1930. A rede de solidariedade foi intensa. Houve também o grande craque baiano “Dois Lados”, do “mais querido” Ypiranga dos anos de 1920 e 30. Cego e muito pobre, a Bahia inteira o ajudou. Lusinho, ao contrário destes dois gigantes da história do futebol, não conseguiu ingressar na galeria de ídolos nem mesmo de Barra Mansa. Ninguém compreendeu a alma dele em Bangu. Era mais fácil o caminho do folclore, do deboche. O dinheiro escasso que recebia da Fugap não dava nem para se alimentar direito. Era comum, durante as intermináveis terapias realizadas na ABBR, no Jardim Botânico, vê-lo desmaiando nas mesas de exercício. Fraqueza. Fome.


Em 1976, o meia Geraldo, do Flamengo, que diziam ser melhor que o Zico, partiu prematuramente após durante uma cirurgia malsucedida para extrair amígdalas. O mundo do futebol mobilizou-se para ajudar os parentes dele. Refletindo sobre o caso de Geraldo e de Boiadeiro, o jornalista Cláudio Mello e Souza escreveu a crônica intitulada “Quando o futebol esquece”, em O Globo: “O nome a história de Luís Boiadeiro me foram recordados por minha mulher, Márcia Mendes[1], a propósito do jogo de ontem, em homenagem a Geraldo, mas em benefício da família de Geraldo (…) Fico pensando se o futebol, que nada ou pouco fez por Geraldo, e que por mais dinheiro que arrecade jamais poderá ressuscitá-lo, não poderia se organizar de forma a proteger ex-atletas para os quais a vida carrega a marca da morte. Não falo de proteção remota, mas imediata, capaz de dar a um ex-atleta não a esmola, que constrange, mas um emprego, que enobrece.”

Somente no dia 28 de dezembro de 1976, após um ano de o drama do Lusinho Boiadeiro ser revelado à imprensa, a Fugap e a entidade que representava os paraplégicos no Rio de Janeiro promoveram, no Maracanãzinho, um jogo de futebol de salão em benefício do ex-jogador do Bangu. Participaram Roberto Dinamite, Abel, Nielsen, Rubens Galaxie, Zico, Marinho Chagas, Rodrigues Neto, Osmar, Nilson Dias, Gilson Nunes, Edinho, Pintinho e Zé Mário. A preliminar foi um jogo de basquete em cadeiras de rodas — e a grande notícia! — com Luisinho defendendo um dos times formados por paraplégicos.

Mas aquele jogo não foi suficiente. Lusinho precisava de mais ajuda. Castor de Andrade deu para ele uma cadeira de rodas. Mas o gesto mais solidário e genuinamente comovente partiu do cidadão Manoel dos Santos. Um certo… Garrincha, que juntamente com Nilton Santos, Brito, Djalma Dias, Cafuringa dentre outros cobras jogaram uma pelada disputada no dia 7 de maio de 1978, em Miguel Pereira, em prol do Boiadeiro.

E foi assim, com uma pelada ali, outra acolá para ajudá-lo que Luisinho Boiadeiro foi sobrevivendo. Ele sonhou, como todos que sabem verdadeiramente jogar bola, um dia vestir a camisa da seleção brasileira, igualzinho ao seu ídolo: Garrincha. O sonho, ainda bem, será sempre herdado por muitos outros meninos iguaizinhos ao Lusinho, que um dia fez sorrir aqueles cujas retinas jamais os enganaram. Era, sim, “o novo Garrincha” diante dos seus olhos.

 

[1] No dia 9 de dezembro de 1979, Márcia Mendes morria de câncer, no dia do seu aniversário de 34 anos. Foi, sem dúvida, uma das personalidades mais célebres da TV brasileira ao longo da década de 1970. Para a esposa, Cláudio Mello e Souza escreveu um lindo poema: Teu corpo virou jardim/ Tens todo o tempo para brincar de amor/ e gozar o tempo, e possuir o vento./ Agora podes colher,/sem que ninguém te notes,/com tuas mãos de nada ter,/com teus dedos de teclas brancas,/os inesquecíveis miosótis./Agora já podes tocar:/onde estás ninguém ri/da tua versão de Satie./O tempo apaixonou-se por ti.

Já não te pode interpretar./É dor que não mata e nem cura./A contabilidade da usura.

E mesmo que a inveja não suporte/tens em mim, sempre a brotar,/os imperecíveis miosótis.

CENTENÁRIO DO BIGUÁ, O PRIMEIRO ‘DEUS DA RAÇA’ RUBRO-NEGRO

Biguá foi, antes de Leandro surgir, o maior e o melhor lateral-direito da história do Flamengo. Para o craque dos anos de 1940, não havia bola perdida e sobravam fãs, como Carlito Rocha, o memorável cartola botafoguense, que um dia apertou-o contra o peito e disse: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”

 por André Felipe de Lima


Biguá, 100 anos de um dos maiores mitos da história do Flamengo (Acervo André Felipe de Lima)

Torcedores rubro-negros na faixa dos 40 anos cresceram vendo o zagueiro Rondinelli, o que marcou, de cabeça, o gol do título estadual de 1978 sobre o Vasco, como o “Deus da raça” do Flamengo. Mas, na década de 1940, um outro defensor rubro-negro, o ex-lateral-direito Biguá, merece a primazia sobre o apelido. Mário Rodrigues Filho[1] foi um dos que reconheceram a disposição de Biguá: “Era tido como um índio. Se não fosse o cabelo de boneca japonesa seria tomado por preto. Era baixo, atarracado, de pernas grossas, de poltrona. Mas, tocando no chão, subia feito uma bola de tênis. Quando se enfurecia parecia um daqueles indígenas dos poemas de Gonçalves Dias. Ou melhor, um apache ou sioux de fita americana, de machado em punho para escalpelar um pale face” [pele branca – referência a luta dos indígenas nos EUA]. Moacir Cordeiro — assim se chamava Biguá — nasceu em Irati, interior do Paraná no dia 22 de março de 1921. Tinha personalidade. Foi marcador implacável, mas não era técnico. Ao lado de Modesto Bria e Jaime de Almeida formou uma eficiente linha média do Flamengo dos anos de 1940. Para o extraordinário ponteiro esquerdo Félix Lostau, de La máquina do River Plate dos anos de 1940, Biguá foi o seu melhor marcador[2].

Filho de Manoel Cordeiro e de Maria Julia Cordeiro, italiana de nascimento, Biguá era o caçula de oito irmãos. O pai, Biguá perdeu quando mal completara um ano de vida, da mãe, despediu-se em 1936.[3] Tinha dois anos quando ele, com a mãe e os irmãos, mudaram-se para Curitiba. Com oito anos, ingressou na escola. Fora matriculado no Grupo Escolar Barão do Rio Branco, na rua Silva Jardim. Atraíam-no mais a bola de meia no recreio e a merenda que lápis, caderno e livros. Enquanto Biguá não queria muito com os estudos, seu colega de colégio, Jackson, o mesmo que se tornaria ídolo do Atlético Paranaense, dedicava-se tanto à bola de meia quanto ao conhecimento.

A professora Carmem Silva não deixou Biguá esmorecer e acabou ajudando-o a concluir o curso primário. Com a morte da mãe, em 1936, coube à Dídimo, o terceiro da série de irmãos de Biguá, cuidar do caçula. Para evitar que o garoto parasse os estudos, tratou de matriculá-lo imediatamente no Instituto Santa Maria, na rua 15 de novembro. A permanência por lá foi curta. Durou até o final de 1936. Biguá era um aluno relapso e, por conta disso, sofria castigos e reprimendas incessantes. Como Biguá não queria saber de escola, Dídimo levou-o para trabalhar na Casa Gueiros, que também ficava na rua 15 de novembro.[4]

O menino Biguá começara como office boy, recebendo um salário de 100 mil réis por mês. Mas a bola era sua vida. Em 19337, o “caboclinho” já defendia o time infantil do Atlético Paranaense. Sempre como “half” direito. Durante aquele primeiro contato oficial com o futebol lhe “batizaram” com o  apelido “Biguá”, por ser bravo em campo, igualmente a um outro jogador do mesmo nome, veterano no futebol local.


Ao lado do amigo Mário, no Água Verde: o começo da carreira no Paraná (Reprodução: A Vida do Crack)

Com 17 anos, Biguá queria jogar bola, mas o irmão mais velho e tutor do rapaz não queria mais vê-lo correndo atrás de bola. Os dois brigaram feio e Biguá abandonou o emprego e, o que foi pior, a casa onde morava com o irmão, na rua Tiradentes, centro curitibano. A decisão de Biguá preocupou todos os familiares, que só se acalmaram quando souberam, que o rapaz refugiara-se na casa de Juracy, sua outra irmã a quem chamava desde pequenino de “Caleca”. À casa da irmã chegou com uma trouxa de roupas e ouviu dela um sermão. Juracy o aceitaria mas sob uma condição: que fosse obediente e trabalhador. Passaram-se alguns dias, conseguiu um emprego em uma fábrica de móveis, como lixador, recebendo cinco cruzeiros por dia. O futebol? Impossível abandoná-lo. Biguá, em dias de jogo do Atlético, saía do trabalho mais cedo.[5]

Mesmo com o salário melhorado para 8 cruzeiros diários, Biguá decidiu abandonar o emprego e seguiu para o alistamento militar no 5º Regimento da Base Aérea de Curitiba. Permaneceu na caserna durante 23 meses ganhando a miserável quantia de 56 cruzeiros mensais. Nem mesmo estando nas esferas militares conseguia esquecer a bola. Em 1940, Biguá era figura certa no time da Base Aérea. Seu companheiro de time era o então tenente Luiz Gastão Lessa Bastos, que chegaria a major e, tempos depois assumiria a direção de atletismo do Flamengo.

Naquele mesmo ano em brilhava no time dos “milicos”, Biguá seguiu para o Água Verde. Não demoraria ser o titular da lateral direita.

Em 1939, Biguá tentava se firmar no time de profissionais do Savóia, clube que depois mudaria o nome para Água Verde. Mas o esforço parecia ser em vão.

O rapaz era tão bom de bola que o Coritiba insistiu com os dirigentes do Savóia que o emprestassem para um amistoso contra o Corinthians[6]. O Coxa derrotou o Timão por 1 a 0 e Biguá, jogando de médio esquerdo, parou o ponta Lopes, que era da seleção brasileira. Prestando serviço militar na base aérea de Curitiba, Biguá foi convidado, em 1941, pelo então tenente Gilberto Aquino para jogar no Rio de Janeiro.

Aquino prometeu-lhe apresentá-lo ao técnico do Flamengo, Flávio Costa. Como tinha medo de avião, Biguá embarcou num trem rumo ao Rio enquanto Aquino seguiu de avião para então capital federal. Ao chegar ao Rio, Aquino recebeu-o na estação D.Pedro II e hospedou-o em sua residência na Ilha do Governador. Somente uma semana depois Biguá fez seu primeiro passeio pela cidade em direção à rua Campos Sales. Mais precisamente rumo ao campo do América FC, onde já jogava o amigo Cecílio, companheiro de Curitiba e titular do Alvirrubro carioca.

Influenciado por Cecílio, Costa Velho, técnico do time da rua Campos Sales, pediu para que Biguá calçasse a chuteira e vestisse o uniforme para um treino. Velho olhou para o rapaz, que media pouco mais de 1 metro e 55 centímetros e almejava ser zagueiro, e disse: “Não dá”. Biguá perguntou a Cecílio se poderia voltar no dia seguinte, o amigo respondeu: “Não, Biguá, não volte. O homem disse que você não é de nada.”[7]

Acompanhado pelo seu “padrinho”, o brigadeiro Aquino, Biguá seguiu para a Gávea, onde foi aceito e teve o registro confirmado pela Federação Metropolitana de Futebol no dia 4 de outubro de 1941. “Fiquei vários dias aguardando a chance para treinar. Enquanto isso, ficava batendo bola com Yustrich. Levei dias, já morando na concentração, indo de manhã e de tarde para esperar minha oportunidade. E Yustrich ia pegando meus chutes.”[8]

Reportagem de José Luiz da Silva Pinto[9], de 1951, confirma a dificuldade de Biguá para afirmar-se no Flamengo. “Ninguém fazendo fé nele. Aliás ninguém podia mesmo acreditar que aquele rapaz viesse a dar alguma coisa no futebol, com aquele ar desengonçado, aquelas pernas incríveis”. Segundo o texto de Silva Pinto, o então técnico do Flamengo na época, Flávio Costa, lançou Biguá somente três meses após ele aportar na Gávea. Mas Biguá não teve vida fácil no início no rubro-negro. Os médicos constataram um problema de nascença no tornozelo do jogador. Ele não esmoreceu e, após um treino espetacular, Flávio Costa mudou o conceito equivocado sobre aquele rapaz, com traços nitidamente indígenas. E era assim que a torcida passou a tratá-lo carinhosamente: “Índio”.


Com o notório massagista Johnson, do Flamengo (Reprodução:A Vida do Crack)

Com a contusão do titular Jocelyn, Biguá estreou entre os titulares no dia 26 de outubro de 1941 contra o Madureira. O Flamengo saiu de campo com o placar favorável [2 a 0]. “De repente veio a chance. Jocelino [na verdade, Jocelyn] e Artigas machucados, Flávio me escalou na equipe reserva para enfrentar o Fluminense. A ala esquerda do tricolor era Pedro Nunes-Hércules. Perdemos por 3 x 2, mas no jôgo seguinte eu estava entre os titulares, enfrentando o Madureira. Aí não saí mais e tive uma emoção muito forte no outro Fla x Flu, o famoso da Lagoa, quando empatamos por 2 x 2 e o Fluminense foi campeão.”[10]

Em 1942, Biguá viveu um drama. Após um exame, ouviu do médico do Flamengo Nilton Paes Barreto que não poderia mais jogar futebol, caso insistisse poderia morrer a qualquer momento, inclusive dentro do campo. O sopro no coração configurara-se sombria perspectiva para Biguá, que vivia o ápice da carreira. Logo após o trágico vaticínio do médico, Biguá, aos prantos, dirigiu-se à concentração disposto a arrumar as malas para tomar um trem rumo à Curitiba. Ação impedida pelo amigo Jaime de Almeida. A imprensa ignorava o que estava acontecendo nos bastidores do clube. Questionava os motivos que levaram Biguá a não entrar em campo contra o América, jogo que teria o clube Alvirrubro como vencedor [2 a 1].

O ESCRITOR E O CRAQUE

Mário Filho, o primeiro a chamar Biguá de “índio”, relatou um episódio que teria acontecido durante uma viagem de ônibus em que estavam ele, Biguá, e o escritor José Lins do Rego, rubro-negro fanático.

Rego preocupara-se com a situação de Biguá e decidiu levá-lo a um cardiologista renomado, o médico Genival Londres. O escritor acreditava piamente que o craque de nada sofria. Biguá, não. “Se o médico escutou o sopro é porque havia o sopro, o sopro estava lá dentro”. Paciente, Zé Lins retrucou: “Qual sopro qual nada, Biguá. Se você tivesse sopro não estaria conversando aqui comigo, estava era debaixo da terra, há muito tempo.”

Biguá ficou meio ressabiado, mas, como acreditava que Zé Lins também era “doutor”, pediu ao escritor: “Por quê o doutor Zé Lins do Rego não me escuta o coração?”. Pacientemente, Zé Lins teve de explicar que era “doutor” em outra coisa. Biguá ficou cabisbaixo e pensou ser seu caso perdido. “Quer dizer que é o só um palpite que o senhor tem?”. Dali em diante Biguá não chamava mais o Zé Lins de “doutor”. Era Zé Lins e pronto. Mas a psicologia do “doutor-escritor” funcionara. Afinal, se Biguá pulava, saltava, cabeceava e chutava petardos de fazer inveja a um tanque de guerra, logo a história de sopro não passaria de um susto.

O médico, segundo Mário Filho, prescreveu um exame singular para acabar de vez com aquele papo de “sopro”. Biguá seguiu à risca as recomendações médicas. Zé Lins sempre por perto, espreitando-o e interferindo quando necessário, recorreu novamente a sua “psicologia”, com todo o enlevo oriundo de um romancista ímpar, convencendo o médico de que Biguá saltava mais alto que o teto do consultório. Batata. O doutor Genival levantou-se, e convencido disse: “Zé Lins, se é como você conta, o Biguá pode jogar futebol”. Concluído o incomum “exame”, para Biguá restou-lhe o alívio de um inocente.


O cronista Mario Filho foi o primeiro a chamá-lo de “Índio” Biguá (Reprodução:A Vida do Crack)

Aos poucos Biguá afastou a depressão e convenceu-se de que poderia continuar jogando bola. Ignorou o parecer médico e permaneceu no Flamengo.[11]

Permaneceu para a alegria de muitos torcedores, especialmente uma senhora, cujo nome nunca se soube qual, mas cuja história foi revelada pelo cronista Mário Filho: “Biguá conquistou simpatias, não faltou quem quisesse protegê-lo. Uma senhora, certa vez, obrigou o marido a chamar Biguá. Biguá veio, desconfiado. A senhora disse, com voz maternal: ‘Olha aqui Biguá, se o Flamengo ganhar, você venha buscar uma camisa de seda’. O Flamengo ganhou, Biguá não se esqueceu da promessa, acabando o jogo, como quem não quer nada foi colocar-se dentro do raio visual da torcedora. A senhora percebeu Biguá, chamou-o outra vez, apertou-lhe a mão. Biguá sentiu cócegas de uma nota bem dobrada, agradeceu, saiu correndo para o vestiário. Lá, abrindo a mão, ele viu uma cédula de vinte cruzeiro. ‘Eu se fosse você — Jurandir [goleiro do time] abriu a boca — voltaria e pediria o resto’. ‘Se eu voltar sou capaz de ficar sem o peru [o “bicho” pago por fora aos jogadores após cada partida]. E com o peru, eu já posso mandar o monograma’.”

DUELOS INESQUECÍVEIS COM O AMIGO VASCAÍNO CHICO

Biguá era simples e até ingênuo. E foi essa simplicidade que o fez querido na Gávea e até em outros clubes e torcidas e adversárias. Nunca houve um senão em relação a sua passagem no Flamengo. Nem mesmo um gol contra que deu a vitória [e o título do primeiro turno] ao Vasco, 2 a 1, em São Januário, no dia 16 de setembro de 1945, abalou a imagem de Biguá. Para o torcedor do Flamengo, o jogador era quase um Deus, e aquele jogo foi o momento mais emocionante em toda a carreira de Biguá, não pelo gol contra, evidentemente que não, mas sim pelo dia em que percebeu o quanto representava para o torcedor do Flamengo.

Biguá teve a inglória missão de marcar o ponta-esquerda Chico. Em jogo estava o título do turno e meio caminhando andado rumo ao “tetra”. Entre 1942 e 53, como destacou a revista Placar, em 1978, Biguá e Chico travaram duelos memoráveis.


Com Esquerdinha e o cartola Gilberto Cardoso no intervalo de um jogo no Maracanã, em 1952 (Reprodução: Esporte Ilustrado)

Aquele jogo contra o Vasco poderia coroar a extraordinária geração formada por Biguá, Pirillo, Zizinho, Vevé, Modesto Bria… um timaço cantado em sambas de Wilson Batista e reverenciado sem nenhuma parcimônia por Ary Barroso nas transmissões radiofônicas. Mas o jogo que Biguá imaginara ser sua maior tragédia na carreira foi lembrado por ele e Chico como uma final incomum. A partida estava próxima do fim. No placar, um a um. De repente, o atacante vascaíno Lelé avança. Biguá, de costas para o gol, observa Chico. Lelé chuta com violência. A bola explode na trave e, no rebote, acerta a nuca de Biguá. A bola regressa caprichosamente para o arco do Flamengo. O craque cai e é contido pela rede das traves. Um gol contra que tirou o “tetra” do Fla e deixou Biguá tonto e sob um choro compulsivo. Logo ele, tão querido pela turma da Gávea, seria o algoz do próprio time…

“A própria torcida do Vasco não festejou o gol com muita alegria, em respeito ao drama que eu vivia. E a primeira mão que se ergueu para me ajudar foi a do meu grande adversário, Chico. Ele me levantou, me abraçou com carinho, me consolou”. Recordações de Biguá, publicadas pela revista Placar, que reavivaram a memória do ex-ponta vascaíno. “Eu fui lá ajudá-lo, disse-lhe que erguesse a cabeça, porque ele não tinha culpa nenhuma. A dor de Biguá me feria. Naquele momento, chorei junto com ele. Naquela época o futebol tinha rivalidade dentro do campo, assim mesmo, se respeitando os adversários”.

O mais emocionante viria depois, fora do estádio:

“Eu não sabia como sair do campo. No vestiário, com companheiros me consolando, eu só pensava na hora de sair e encarar a minha torcida. Queria que o mundo acabasse. Disse que não ia sair. Aí veio o querido José Lins do Rêgo, pegou no meu braço e disse: — Você vai sair comigo, Biguá. — Saí e quando vi estava no meio da torcida do Flamengo, todos gritando Biguá, Biguá, Biguá. Fui carregado para fora do estádio e confesso que chorava como uma criança.”[12]

Biguá era mesmo duro na queda. Como descreveu à revista Placar[13], o craque não se intimidou com as ameaças de jogadores do São Paulo dias antes de o clube paulista enfrentar o Flamengo:


No fim da carreira, antes de um jogo com o São Cristóvão. Na foto, além de Biguá, o juiz Mário Vianna e um jogador do clube da rua Figueira de Melo não identificado (Reprodução: Revista Grandes Clubes)

“Uma vez, em São Paulo, o Pardal disse que ia me quebrar a perna, instigado por Leônidas [da Silva], que queria me ver com medo. Mas eu não corri. E disse a ele que o esperaria para uma forra no jogo do Rio. Engraçado: na véspera desse jogo, sem ter chovido ou feito frio, Pardal amanheceu com um terrível ‘resfriado’.”

Até o surgimento de Leandro no time campeão mundial, em 1981, Biguá era considerado o maior lateral-direito do rubro-negro carioca de todos os tempos. Os que o viram jogar, afirmam que Biguá foi o primeiro lateral a defender e apoiar o ataque. Uma ousadia condenada pela maioria dos treinadores da época, mas que, de certa forma, foi herdada pelo próprio Leandro, nos anos de 1980, e por Leonardo Moura, também ídolo do Flamengo nos anos de 2000.

Titular absoluto nas equipes do Flamengo que conquistaram o primeiro tricampeonato carioca para o clube em 1942, 43 e 44. Quem o admirava era o zagueiro Domingos da Guia, que já em final de carreira no Corinthians convidou Biguá para trocar a Gávea pelo Parque São Jorge. Quase aceitou. Prevaleceu a paixão pelo Fla. “E no dia em que o Corinthians jogasse contra o Flamengo, como é que eu ficaria?”.

Na seleção carioca, Biguá também era o dono da lateral-direita. No escrete nacional, teve poucas oportunidades e nunca conseguiu se projetar como merecia.

Após a estupenda conquista rubro-negra, em 1944, o Flamengo começou a perder espaço para o Fluminense e, sobretudo, para o Vasco, com o poderoso Expresso da vitória. Em novembro de 1945, no final da temporada, Biguá confrontara-se com mais um drama de saúde, não tão preocupante como o sopro no coração, de 1942, mas que poderia colocar um ponto final na carreira do jogador: o médico do Flamengo, o ortopedista Paulo de São Thiago, identificou um cisto no calcanhar esquerdo de Biguá considerado grave para a medicina da época. “É uma lesão rara e muito grave porque conduz à fratura. E neste caso, uma vez fraturado o osso, o tratamento, por melhor que fosse, não poderia nunca fazê-lo retornar à vida de profissional de futebol.”


A despedida, um chute sem força para arquibancada, as chuteiras para Carlinhos e o abraço de Carlito Rocha (Reprodução: Revista Grandes Clubes)

Biguá foi operado no dia 21 de novembro daquele ano, no Hospital da Beneficência Espanhola. O médico raspou o cisto ósseo e retirou um fragmento do osso da perna esquerda para enxertá-lo na cavidade onde antes havia o cisto. O craque ficou três meses no estaleiro, mas sua recuperação foi considerada excepcional.

Em 1951, já sem o futebol de outrora, Biguá foi perdendo o posto de titular no Flamengo. Naquele estágio, o melhor seria pedir à diretoria do Flamengo que o liberassem para que não amargasse definitivamente a reserva. Biguá estava desolado, não queria deixar a Gávea, mas, com o passe livre, tinha como opção o clube que o revelou, o Água Verde. Voltaria para sua cidade natal e descansaria. Mas tudo mudaria com uma notícia alvissareira: o retorno de Flávio Costa ao Flamengo, que se preparava para uma excursão à Europa, cujo retorno para o clube foi incalculável.  O Rubro-negro venceu 10 jogos e Biguá fora deslocada para a zaga, formando dupla com Pavão.

No ano seguinte, durante embate contra o Vasco em jogo do primeiro turno do campeonato estadual, Biguá sofreu uma ruptura dos ligamentos do joelho direito que custou-lhe três meses fora dos gramados. Leone substituiu-o na lateral-direita e não mais deixou o posto. Em 1953, o amigo Jaime de Almeida substituiu Flávio Costa, que fora para o Vasco, e deu nova chance à Biguá para que recuperasse a posição. Mas tudo se complicaria para Biguá com a chegada de Fleitas Solich à Gávea. “Eu vinha querendo desistir. O Solich começou a perseguir os veteranos. Acabei brigando com ele por causa do [Modesto] Bria e resolvi parar.”[14]


Ser “capa” de revistas esportivas era algo constante para Biguá (Reprodução: O Globo Sportivo)

Do banco de reservas, Biguá chorou ao ver os mais jovens conquistarem o campeonato estadual de 53. O jogo de despedida de Biguá, contra o Botafogo, no dia 3 de novembro de 1953, foi uma das passagens mais bonitas da história do Flamengo. Pegou uma bola e chutou para torcida guardá-la como emblema daquele dia inesquecível. A torcida aplaudiu-o efusivamente. Após uma volta olímpica no gramado do Maracanã, o craque entregou suas chuteiras ao novato meia Carlinhos, o futuro “Violino”, como seria chamado ao longo da década de 1960. Após Biguá “passar” a chuteira para Carlinhos, o craque tentou chutar uma bola para a arquibancada, mas foi tão sem força que a pelota caiu na geral. De tão emocionado, Biguá correu em direção ao primeiro túnel que viu. Era o do Botafogo. Carlito Rocha, o folclórico cartola alvinegro, apertou-o contra o peito e disse: “Pena que no futebol haja poucos iguais a você”.

Carlinhos honrou a história de Biguá e fez a mesma coisa com Zico, em 1970. A tradição continuou com o “galinho”, que passou a chuteira para o jovem promissor Pintinho, em 1989. Pintinho? Pois é… dele a torcida sequer lembra a fisionomia. O tradicional hábito foi esquecido[15].

Biguá disputou 380 jogos oficiais pelo Flamengo. Venceu 225 e empatou outros 75. Marcou apenas sete gols. Não foi somente nos campos que o lateral tornou-se famoso. Era um pé-de-valsa, diziam. Como descreveu a revista Placar, em edição de 1978, Biguá foi um frequentador assíduo dos bares e dancings da antiga Lapa, que não dispensava uma boa roda de bate-papo regada a chope nos bares da antiga Galeria Cruzeiro.

‘SOFRIA MUITO MAIS ENFRENTANDO O VASCO’


Biguá “campeão”. Isso era normal na carreira do craque (Reprodução: O Globo Sportivo)

Biguá casou-se com uma mineira de Carangola que morava em Porciúncula. “Pois é. Fui a um baile na Tijuca e conheci a Lourdes. Depois fui até Carangola e quando voltei o Ari Barroso, com aquele jeito só seu, foi dizendo: — Conheceu a família em Minas, tem que casar. Como eu era fã dos concursos de danças, o Ari tentava me convencer que tinha que casar. E, finalmente acabei casando em 51.”[16]

Com o dinheiro conquistado com o futebol, Biguá comprou uma casa e terrenos em Curitiba[17]. Investimentos que, bem administrados, poderiam garantir-lhe um futuro tranquilo. Mas isso não aconteceu. Em dezembro de 1957, o jornal Diário Carioca publicou que Biguá estava tão mal financeiramente a ponto de se candidatar a um emprego de gari na Prefeitura do Rio de Janeiro. A informação, que um amigo do jogador garantia ser verídica, causou constrangimento ao jogador e ao jornal, que acabou desmentindo o suposto pedido que seria feito ao vereador Couto de Sousa. No começo daquele mesmo ano, o Flamengo cedeu um espaço em sua sede para Biguá empreender uma mercearia que se chamava “Tricampeão”. O negócio durou pouco tempo.

Mas Biguá tinha amigos de fé. Foi um presente de Gilberto Cardoso, ex-presidente do Rubro-negro, um bar/ mercearia na sede do Morro da Viúva, no bairro do Flamengo, que ajudou Biguá a se manter, com dificuldades, durante muitos anos. O ex-craque foi também funcionário do antigo INPS [Instituto Nacional de Previdência Social], no final dos anos de 1960 e começo dos 70, como chefe da seção de Leitura de Microfilmes da Dataprev, a Central de Processamento de Dados na Previdência Social.

O ex-lateral viveu seus últimos anos em uma pensão. Completamente incógnito caminhava pelas ruas. Poucos, mas muito poucos mesmo o reconheciam. Em março de 1984, um susto: Biguá, por ser sonâmbulo, rolou da escada da casa de uma sobrinha, em Porciúncula, no interior do estado do Rio, e teve a clavícula quebrada. “Mas foi só um susto. Eu sofria muito mais quando estava enfrentando o Vasco.”


No traço do genial e inveterado rubro-negro Otelo Caçador (Acervo André Felipe de Lima)

Em dezembro de 1988, outro susto, infelizmente com desfecho trágico: internaram-no no Instituto Nacional do Câncer, no Centro do Rio de Janeiro. Após 30 dias de sofrimento, no dia 9 de janeiro de 1989, Biguá perdeu a luta para um câncer no cérebro e para a diabete. Morreu pobre, abandonado pela maioria dos “amigos” e esquecido pela torcida para a qual tanta alegria e orgulho de ser rubro-negro proporcionou. Ao seu lado, apenas a esposa Lourdes Machado Cordeiro, com quem Biguá morava no bairro do Flamengo, na zona sul da cidade. Em seu enterro, no Cemitério São João Batista, havia poucos e genuínos companheiros, como o eterno rival e compadre Chico, Flávio Costa, Ademir de Menezes e Modesto Bria, que assim o definiu, em depoimento ao escritor Edilberto Coutinho: “Era ele quem sacudia a galera. Era um ídolo”. A mais pura verdade.

Uma vez perguntaram a Biguá sobre o que ele sentia por vestir a camisa do Flamengo. A resposta foi singela e inocente, bem ao estilo que conquistou a torcida rubro-negra: “Se eu fosse rico, jogava de graça no Flamengo”.

[1] RODRIGUES FILHO, Mário. O Negro no futebol brasileiro. Editora Mauad: Rio de Janeiro, 2003, p.267.

[2] ALVES, Ivan. Uma nação chamada Flamengo. Edição Europa: Rio de Janeiro, 1989, p.160.

[3] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, p.7.

[4] Idem, p.14.

[5] Ibidem, pp. 20-1.

[6] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[7] Idem.

[8] Ibidem.

[9]O fenômeno Biguá”, publicada em O Globo Sportivo, no dia 22 de setembro de 1951, p. 14.

[10] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[11] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, pp. 41-4.

[12] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2. Nota do editor: O jogo contra o Vasco, naquele dia 16 de setembro de 1945, valeu pelo campeonato carioca. Berascochea, aos 10 minutos do primeiro tempo, marcou para o Vasco. Zizinho empatou aos 25 minutos do segundo tempo e Biguá, dez minutos depois, garantiu a vitória vascaína com um gol contra.

[13] A.D.. “Biguá”. Editora Abril/ Revista Placar, seção “Álbum“, edição nº 07, São Paulo, 1º de maio de 1970, p. 34.

[14] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[15] Como sinaliza Ruy Castro em seu livro “Flamengo: o vermelho e o negro“, Ediouro, 2005.

[16] A.D. “Biguá, a glória de ser Flamengo“. Revista Grandes clubes Brasileiros/ Flamengo. Rio Gráfica Editora, Rio de Janeiro, 1971, pp.100-2.

[17] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, BARBARIZ, Irapuan, e PINHEIRO, Mauro. “Biguá, sua família, seus amores“. Revista Vida do crack, ano I, nº 2, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, junho de 1953, p.66.

‘FILHO’ DE SÃO JOSÉ E AMOR ETERNO DO FLAMENGO

Dequinha, o mais completo volante da história do Flamengo, completaria mais um ano neste dia 19, quando se reverencia um dos mais populares santos da Igreja Católica. Conheça mais detalhes da biografia deste craque excepcional

 

por André Felipe de Lima


Dequinha, um craque incomparável

“Flamengo joga amanhã/ vai haver mais um baile no Maracanã/ o mais querido tem Rubens, Dequinha e Pavão, eu vou pedir pra São Jorge…”. Quando compôs a letra deste samba, talvez o genial sambista Wilson Batista não imaginaria que aquele time do Flamengo tricampeão carioca em 1953, 54 e 55, cantado por ele em prosa e verso, fizesse do clube rubro-negro o mais querido do Brasil. Se hoje, quem está na faixa dos 60 anos vibra, chora e se descabela pelo time de coração agradeça aos ídolos que conquistaram o “tri” mais famoso da história do clube da Gávea. Reverenciem os goleiros paraguaios Garcia e Chamorro; a turma de trás, com Servílio, Pavão, Tomires, Jadir, Joubert e Jordan; ao cerebral meia Dequinha e à rapaziada do ataque, com Rubens [o Doutor Rúbis] Evaristo de Macedo, Joel, Duca, Benitez [outro paraguaio], Dida, Esquerdinha, Índio e Zagallo. Reparem, há apenas um na meia cancha. E como não é mistério para os que entendem o mínimo de futebol, quem joga no meio-campo é o “craque-cabeça” do time, o que, em tese, pensa mais. O que percebe no gramado o que nenhum outro jogador enxergaria. Pois esse craque foi José Mendonça dos Santos, o Dequinha, um centromédio que jogou todos os 84 jogos do Flamengo nas três campanhas que moldaram o segundo “tri” do Mengão[1]. Provavelmente um recorde inigualável nos tempos atuais. Feito memorável para constar em qualquer listinha de Guinness que pipocam por aí.

Dequinha carregava o piano, mas também jogava muito. Capitão do time, não dava refresco aos adversários e deixava qualquer zagueiro — que jogava ao seu lado, é claro — muito tranquilo. Errar passes ou meter a sola não era praxe da cartilha do meia, também capaz de lançamentos de longa distância. Como frisamos, o cara pensava por ele e mais alguns do time. Uma espécie de herdeiro do estilo de Danilo Alvim, do Vasco, que se preparava para pendurar as chuteiras quando Dequinha começava a calçá-las no Flamengo.


Em setembro de 1982, a revista Placar inaugurou uma série dos “Times dos sonhos” dos principais clubes brasileiros. O primeiro deles, o Flamengo. No escrete de todos os tempos do Mengão está, como volante, o intocável Dequinha

Equilíbrio da linha média de 55, Dequinha teve Jadir, na direita, e Jordan, na esquerda — o mesmo que Garrincha considerava como seu marcador mais leal — como companheiros ideais. No entanto o grande parceiro de meio de campo era Rubens. Ambos formaram uma dupla que estava na ponta da língua de qualquer torcedor que ousasse escalar um escrete. Só Zezé Moreira, na época treinador da seleção, ignorava os dois craques rubro-negros.

A FAMÍLIA DE DEQUINHA

Certa vez Luiz Gonzaga dos Santos, um caboclo da cidade de Caraúbas, no Rio Grande do Norte, muito jovem ainda, resolveu deixar o canto de terra que lhe vira nascer, indo integrar-se à vida de outra cidade do estado potiguar: Mossoró. Lá, passou a trabalhar numa fábrica e casou-se com Isaura Freire. Tiveram nove filhos, dentre os quais quatro [sendo três meninas] que morreram ainda nos primeiros meses de vida.

O primogênito fora batizado com o nome de José dos Santos Mendonça. A partir do segundo filho, o casal fizera uma promessa: dali em diante todos os filhos seriam batizados com o nome do santo do dia. Sendo assim, no dia 19 de março de 1929, dia de São José, nascera mais um rebento. Como o filho mais velho do casal chamava-se José, não houve outra alternativa: batizaram o novo filho como José Mendonça dos Santos[2]. E foi assim, sucessivamente, após o nascimento dos irmãos de Dequinha. Vieram Francisco, Antônio e — não houve jeito — Maragarido, este nascido no dia de Santa Margarida.

Quando Dequinha tinha apenas 12 anos, sua mãe, aquela quem lhe dera o apelido que o marcaria para sempre, falecera. Não houve explicações plausíveis para o adoecimento de Isaura apenas o fato de ela ter ficado acamada após comer uma manga à noite. Dois anos após a tragédia familiar, o pai de Dequinha casou-se novamente. A felizarda foi Severina Ramos dos Santos. Do enlace nasceu mais um irmão de Dequinha, João Simeão dos Santos.

INFÂNCIA DE UM MENINO LEVADO

Dequinha era um menino levado. Foi assim até a adolescência. Quando não quebrava vidraças, caçava passarinhos e saía no tapa com os outros moleques de sua idade. Às vezes, no meio da briga, até mordia alguns deles. O próprio reconhecera isso, em entrevista[3] de 1954. “Eu fui um verdadeiro demônio! Não compreendo, até hoje, como pude ser um garoto tão danado!”. Volta e meia um pai de um menino que apanhara de Dequinha batia à porta de Seu Luiz, que, inconformado com a postura do filho, descia, à velha moda sertaneja, o couro no menino. O curioso é que era bom aluno. Estudava na escolinha improvisada do seu Domingos, algo comum até hoje, nos rincões mais distantes do Brasil. Volta e meia matava aulas para jogar bola, ou mesmo a incomum sinuca com bola de gude, “esporte” inventado pela turma do Dequinha. Era realmente incorrigível.

Seu curso primário foi concluído em 1942, quando atingira os seus 13 anos, tendo ficado a espera, por todo o ano de 1943, de que seu pai conseguisse meios de mandá-lo a novo colégio, onde cursaria o ginasial. Enquanto isso, o jovem tirava o máximo proveito de suas horas de folga, urdindo travessuras continuadas. Os dias e os meses se sucediam, sem que o sr. Luiz Gonzaga pudesse proporcionar ao filho o necessário para prosseguir nos estudos, apesar dos esforços desenvolvidos nesse sentido, de vez que sua situação financeira não era das melhores. Em vista do que ocorria, Dequinha foi encaminhado a uma oficina mecânica, onde deveria iniciar a aprendizagem do ofício, para garantia de seu futuro.[4]


Sem dúvida, Dequinha foi o jogador mais badalado pela torcida do Flamengo na primeira metade da década de 1950

Foi trabalhar na oficina de Tertu Ayres, em Mossoró, em 1944. Recebia 30 cruzeiros de salário mensal. Quem o ensinou os ofícios foi Waldir, seu chefe e mestre da oficina e que o levou para trabalhar em outra oficina, na qual conheceu Sabino e Manoel Andrade, seus dois novos amigos. Já contava 16 anos e sequer guardou o mínimo resquício daquele menino levado que fora. Tornou-se responsável e trabalhador. Um exemplo para os rapazes de Mossoró. “Graças a esses amigos, consegui obter uma progressão sensível em meus salários, que de 150 cruzeiros passaram a 240 mensais”, disse Dequinha, que ficou na oficina, logo em Mossoró também, até setembro de 1947. Seguia o jovem para Natal, no Rio Grande do Norte, em busca de crescimento profissional[5].

Pensara em ingressar na Marinha[6], mas o pai não via a ideia com bons olhos. “Tive vontade de entrar na Marinha. Aquela farda me enchia os olhos. Ficava enciumado quando via a marujada entrando nos navios para conhecer novas terras. Ainda mais que tinha colegas mecânicos na Marinha”. O pai de Dequinha é quem o impediu de ingressar na força armada. “O ‘velho’ deu o contra. Não consentiu de maneira nenhuma. Eu pensei que jamais conheceria o estrangeiro, mas o Flamengo me deu essa satisfação.”

DE MOSSORÓ À NATAL

A primeira vez que Dequinha calçou um par de chuteiras foi em 1946, defendendo o Atlético F.C., de Mossoró. Atuava como ponta-esquerda. E com o clube, disputou o campeonato da cidade, sua primeira competição. Em julho do mesmo ano, seguiu para o ABC. F.C., da mesma cidade, clube em que permaneceu até fevereiro de 1947, quando seguiu para o Potiguar. De onde embarcou num pau de arara e rumou para Natal[7], o que seus familiares, sobretudo o pai de Dequinha, definiam como uma “ridícula aventura”[8].


Uma visita ao pai, Luiz Gonzaga, ao lado de irmãos, parentes e amigos de Mossoró

Chegando a Natal, Dequinha hospedou-se em casa de sua tia, D. Belinha Mendonça, que passou a desempenhar em sua vida o papel de uma segunda mãe. Em busca de um trabalho na nova cidade, Dequinha encontrou, casualmente, o amigo Cezário, com que jogara no Potiguar, de Mossoró. Comovido com a situação do jovem, Cezário encaminhou-o ao ABC, de Natal, com cujo clube Dequinha conquistaria seu primeiro título na carreira, o campeonato da cidade, em janeiro de 1948. Vicente Farache, então técnico e presidente do ABC, apostara em Dequinha, que, embora não fosse profissional, era tratado como tal. Tinha casa, alimentação e uma parruda ajuda de custos de 600 cruzeiros mensais. Gostavam tanto de Dequinha que Antônio Farache, irmão de Vicente, presenteou Dequinha com um relógio de ouro caríssimo[9].

Com as incursões do ABC em Pernambuco e no Ceará, Dequinha despertou a cobiça de grandes clubes, como Fortaleza, Ceará, Sport e Santa Cruz. Mas a proposta que mais encantou o então jovem craque partiu de Rubem Moreira, cartola do América, da capital pernambucana, em dezembro de 1948. Sua “fuga” do ABC estremeceu a relação de Dequinha com todos no time potiguar. “Pela madrugada, eu deveria embarcar no avião que me levaria ao destino, mas os diretores do ABC já haviam suspeitado de tudo, naturalmente levando em conta a presença dos emissários do clube pernambucano e que estiveram à minha procura. Diante do rumo que tomaram as coisas, vi-me obrigado a confessar o meu arrependimento, prometendo aos meus bons e inesquecíveis amigos dr. Vicente e Sr. Antônio Fracahe, que jamais pensara em deixá-los.” Dequinha desistira do América na última hora, mas o assédio dos clubes não cessara. Em fevereiro de 1949, o Sport convidou Dequinha para passar o carnaval em Recife. A ideia ia muito além de uma festa momesca. Dequinha seguiu para a Mossoró a fim de rever a família e depois partiu para a capital pernambucana, em sua primeira viagem de avião[10].

Ao chegar em Recife, Dequinha hospedou-se nas dependências do Sport, na Ilha do Retiro. Seus primeiros treinos agradaram. Tinha tudo para permanecer no rubro-negro, mas nem o técnico Viola e tampouco os cartolas do clube falavam em contrato. A indefinição incomodara Dequinha, que decidiu atender a um convite de seu conterrâneo, Julio Gezo de Carvalho, que o apresentou a Novamuel, um ex-jogador argentino que defendeu Vasco e que passara a treinar o América de Recife. Negócio fechado. Dequinha trocaria o Sport pelo novo clube e receberia 7 mil cruzeiros de “luvas” e um salário mensal de 800 cruzeiros, durante um ano de contrato. E o resultado durante a primeira temporada foi muito bom, com o América terminando o campeonato estadual de 1949 na terceira colocação[11].

O VERMELHO E O NEGRO NA VIDA DE DEQUINHA


Linha média espetacular: Jadir, Dequinha e Jordan

A performance de Dequinha, que media 1,66m de altura e calçava 41, empolgou Rubem Moreira, que sempre diz-se torcedor do Flamengo. O cartola avisara ao jovem que um dia jogaria pelo time carioca. O assunto esfriou, Dequinha nunca deu muita bola para o vaticínio de Moreira, mas as coisas mudariam em junho de 1950, quando o cartola embarcou para o Rio de Janeiro e levou a tiracolo Dequinha. Bastaram dois treinos para que o técnico do Flamengo, Gentil Cardoso, indicasse a contratação do jovem craque nordestino. O Flamengo autorizou Moreira a negociar o passe de Dequinha com o América, em Recife. O clube da Gávea pagou mil cruzeiros e o negócio foi fechado.

O rapaz, que não fumava e não bebia nada alcoólico, não acreditava que estava na então capital federal, vestindo a camisa do Flamengo e ganhando 4 mil cruzeiros mensais mais 18 mil de luvas, sob um contrato de um ano. Ficaria ainda melhor quando, meses depois de chegar à Gávea, seu contrato seria renovado para dois anos e o salário quase dobrara, saltando para 7 mil mensais[12].

Por coincidência, Dequinha estreou sob o comando do treinador Cândido de Oliveira contra um outro América, porém carioca, no dia 17 de setembro de 1950, jogando no lugar de Hermes, na meia-esquerda e não de centromédio, onde vinha treinando. O jogo terminou 2 a 2. Flávio Costa, quando assumiu o comando do time foi quem percebeu que Dequinha deveria recuar um pouco mais. E o melhor centromédio da história do Flamengo começava a despontar.

“No princípio eu não gostava do Rio. Foi tudo muito difícil para mim. Antes de chegar a treinar no Flamengo, adoeci. Estava com o fígado arrebentado. Também não poderia treinar mesmo, pois já cheguei ao Flamengo contundido. O dr. Gilberto [Cardoso], que, nesse tempo, era o o chefe do Departamento Médico do clube, era quem me animava. E já estava com vontade de voltar. Imaginem que, com três mêses de Flamengo, eu ainda não tinha dado um treino. Dr. Gilberto, porém, mesmo sem me ver jogar, tinha confiança em mim e não me faltou com sua atenção. Até comida especial era feita para mim, por ordem dêle. Por isso eu não posso pensar, nem de leve, em sair do Flamengo, enquanto o dr. Gilberto Cardoso estiver no clube”, disse Dequinha à Gazeta Esportiva[13], em 1954.


O Flamengo vai à Europa em 1951. Dequinha foi um dos destaques da excursão. Na foto, além dele, estão Biguá (no detalhe entre o juiz e Modesto Bria), Bria, um auxiliar da arbitragem, Esquerdinha, Dequinha, Índio e, com o rosto praticamente encoberto, Bigode

Apesar das boas atuações em 1950, Dequinha deparou-se, porém, com uma oposição: o novo técnico do Flamengo, Flávio Costa, que, embora apreciasse o futebol arte de Dequinha, deu a posição de centromédio para o veterano Modesto Bria. O rapaz de Mossoró só teria uma nova chance de brilhar durante a vitoriosa excursão do Flamengo à Europa, em 1951. E não a desperdiçou. Jogou uma barbaridade para nunca mais sair do time titular.

Era uma das promessas para o campeonato carioca de 51, como salientou o repórter Vasco Rocha[14]: “Este ano será dele […] Deverá ser, segundo as previsões otimistas dos entendidos […] uma das revelações deste ano para alcançar pleno apogeu em 52 […] E surgirá como um médio de excepcionais recursos como distribuidor, como preparador de ataques, como coordenador da ofensiva e como controlador da ação defensiva, salientando-se pela sua habilidade no controle da pelota, pela sua maestria na finta e pela eficiência do passe […] Dequinha se tornará, dentro em pouco, afirma-se, o elemento-base para a formação da equipe rubro-negra”. Vaticínio melhor, impossível. Dequinha provou que era craque e foi à Copa de 1954, na Suíça, mas não jogou. Pela seleção brasileira, foram apenas oito jogos, com quatro vitórias e dois empates. Naquele ano, já não ganhava apenas um salário de 7 mil cruzeiros mensais, mas um total de 20 mil mensais, entre luvas e salário.

As folgas de Dequinha no Rio eram na praia, no cinema ou ouvindo bolero e tango. A primeira coisa que fazia ao acordar era ligar o rádio. Mas divertia-se com os dias em que tinha de ficar na concentração com os companheiros de time, ora jogando sinuca, ora gargalhando com as piadas contadas pelo zagueiro Pavão. “São impagáveis”, contou à Gazeta Esportiva, em 1954, Dequinha, cuja preferência literária era José Lins do Rego, rubro-negro dos mais altivos e que participava do dia a dia do clube, chovesse ou fizesse sol. O craque tinha uma predileção na bibliografia de Zé Lins, a obra “Água mãe”, que narrava a vida de um jogador de futebol, do apogeu à miséria. “É uma lição”, descreveu Dequinha[15].

No dia 25 de setembro de 1959, uma sexta-feira, Dequinha sofreu uma grave contusão durante um treino do Flamengo. Após um dividir uma bola com Henrique Frade, teve a perna esquerda fraturada. Fora o acidente mais grave na carreira de Dequinha. Fratura dupla na perna direita. Após meses fora dos gramados, foi sendo esquecido pelos cartolas do clube, embora o craque sempre negara qualquer mágoa com o Flamengo. A prova do descaso seria inequívoca [ou mera coincidência].

Logo após recuperar-se da gravíssima contusão, Dequinha recebeu passe livre. Essa foi a deixa para que Marinho, ex-companheiro de Flamengo e que auxiliava Paulo Amaral no Botafogo, levasse-o, em 1960, para o clube de General Severiano, onde foi submetido a um rigoroso treinamento para recuperar a forma física. Em um jogo contra o Olaria, Dequinha voltaria a pisar o gramado do Maracanã[16].

Difícil foi encerrar a carreira. Com o manto rubro-negro, o craque disputou 374 jogos, dos quais venceu 234 e empatou 70, assinalando oito gols. No Botafogo, percebera que nunca chegaria a tanto. Ficara poucos meses no Alvinegro. Insistiu no Campo Grande, de 1960 a 1962, mas percebeu que deveria parar por ali. Tentou ser treinador, mas contentou-se com a função de auxiliar de Fleitas Solich, “o feiticeiro”, no Flamengo. Permaneceu na Gávea até 1969 e enveredou por clubes sem expressão. Tinha bagagem para treinar clubes grandes, afinal foi o cérebro do Fla tricampeão, mas a timidez que demonstrava foi sempre um grande empecilho para que juntasse dinheiro.


Flávio Costa faz um afago em Dequinha no vestiário. Treinador sábio cuida de seus craques como se de um filho amado cuidasse

O erro, segundo o próprio ex-jogador, foi insistir pela longa permanência no Flamengo. Como jogava no clube pelo qual torcia fervorosamente, tal paixão teria lhe impedido de aceitar propostas de outros clubes ou de ter melhores salários porque sempre cedia ao “choro” dos cartolas na hora em que renovava os contratos. Dequinha chegou a ostentar uma frota de ônibus no Rio, mas não tinha o mesmo talento com que liderava a meia canha rubro-negra para administrar negócios. Nos idos de 1950, amealhou um bom patrimônio. Foram dos apartamentos em Laranjeiras, zona do sul do Rio, cinco lotes de terreno em São Paulo e Estado do Rio de Janeiro, comprados do pai do ponta-direita Joel, com quem jogava pelo Flamengo. Além dos imóveis e terras, também comprou uma caminhonete com a qual ele mantinha um serviço de lotação entre a Central do Brasil e o Leblon. Recebia com este empreendimento cerca de 10 mil cruzeiros mensais, que completava o orçamento do futebol.

Quando morreu, no dia 2 de fevereiro de 1997, era funcionário aposentado da Prefeitura de Aracaju, onde trabalhou na Secretaria de Esportes.

Fã dos intérpretes Ângela Maria e Orlando Silva e dos locutores de futebol Oduvaldo Cozi e Rui Porto, Dequinha era reverenciado pela imprensa de sua época como jogador. Assim escreveram, em 1954, para a revista Vida do crack[17], sobre o grande Dequinha: “É um prazer ver-se aquele nordestino a bailar na cancha, deitando cátedra, arrebatando aplausos, E, hoje, simplesmente, o Deca da torcida rubro-negra. Tratamento carinhoso que reflete perfeitamente o desvelo, o carinho, a gratidão dessa torcida tão apegada do “mais querido do Brasil”. Muito educado, querido por todos e avesso ao álcool, Dequinha fora ilibado exemplo dentro e fora dos campos. Por isso tornou-se um dos maiores ídolos da história do Flamengo e ícone de uma época que fez do clube da Gávea o mais querido do Brasil… para sempre.

 

[1] SANDER, Roberto. O segundo tri do Flamengo. Artigo publicado na revista especial Campeonato Carioca 1906 – 2006: 100 anos, editada pelo Jornal dos Sports, S.D. 2006. p. 47.

[2] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Assim surgiu a família de Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 7-11.

[3] Idem. “Assim surgiu a família de Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 12-13.

[4] Ibidem, p. 13.

[5] Ibidem. “Os primeiros passos na vida prática“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 18-9.

[6] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[7] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Em 1946 calçou as primeiras chuteiras“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 20-2.

[8] ROCHA, Vasco. Dequinha, o crack de Mossoró. Reportagem publicada pela revista O Globo Esportivo em 15 de setembro de 1951, pp. 10-1.

[9] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Viagem a Natal — Início de uma nova vida“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 23-5.

[10] Idem, p. 28

[11] Ibidem. “Fugiu de Natal para o E.C. Recife e acabou ficando no América“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 31-2.

[12] Ibidem. “O Flamengo recebe Dequinha de braços abertos“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 41-4.

[13] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[14] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “O Flamengo recebe Dequinha de braços abertos“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, pp. 41-4.

[15] RANGEL, Oriovaldo. “Dequinha queria a Marinha, ‘embarcou’ no futebol“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, novembro de 1954, nº 28, pp. 18-20.

[16] CHERMAN, Isaac. “Desprezado pelo Flamengo… brilha no Botafogo“. A Gazeta Esportiva Ilustrada, São Paulo, 2ª quinzena, agosto de 1961, nº 190, pp. 20-1.

[17] ABREU, Edgard de, CARVALHO, Arthur de, e BARBARIZ, Irapuan. “Dequinha“. Revista Vida do crack, ano I, nº 9, Editora Brasilidade: Rio de Janeiro, janeiro de 1954, p.4.

CARBONE, UM BIGODE, O MARACANÃ E COISAS DE CRIANÇA

por André Felipe de Lima


Onde jogou, recebia apelidos dos mais inusitados. Na época em que defendeu o Internacional, de Porto Alegre, Carbone era o “Caminhão”, segundo o ex-centroavante Claudiomiro. Quando vestiu a camisa do Botafogo, Marinho Chagas batizou-o de “Charbon” (?!) e Ademir Vicente, de simplesmente “Veterano”. 

José Luís Carbone, um dos mais aguerridos volantes do futebol brasileiro nas décadas de 1960 e 70, sobrinho do também ídolo e goleador corintiano Rodolpho Carbone, faz anos hoje.

Nasceu em 1946, na cidade de São Paulo, e começou a jogar bola aos onze anos, no Flor de Vila Formosa. Depois seguiu para a divisão de base do Juventus, quando contava dezesseis anos. Após um jogo do Juventus, foi levado ao São Paulo. E foi no tricolor do Morumbi onde começou a carreira profissional, em 1963. Perambulou pela Ponte Preta, em 1966, mas, no ano seguinte, regressou ao São Paulo, clube no qual permaneceu até 1968. 

Passou rapidamente pelo Metropol, de Criciúma, que na época tinha um time bastante competitivo, de onde saiu o ponta-direita Valdomiro, e depois fincou os pés no Beira-Rio.

No Internacional, Carbone ganhou o estrelato. Era um dos ídolos da torcida e respeitado pela crônica esportiva gaúcha. Foi um dos ícones da equipe colorada que impôs um freio no ímpeto do Grêmio, que almejava o oitavo “gauchão” seguido. Logo na primeira temporada, em 1969, foi eleito o melhor jogador do estado. Nos cincos anos em que vestiu o manto Colorado, de 69 a 73, foi campeão estadual. Depois, sua história seria com o Botafogo.

Vi Carbone em campo defendendo o Botafogo. Embora vascaíno, meu pai levou-me ao Maracanã algumas vezes para ver o Fogão. Acho que foi uma forma de agradecer ao meu avô que, botafoguense, tentava convencê-lo a tornar-se alvinegro levando-o aos jogos para torcer pelo Otávio de Morais, pelo Nilton Santos, pelo Paraguaio, pelo Juvenal e pelo Geninho. Frustrada tentativa do vovô. Para o papai, era Deus no céu e Ademir de Menezes na terra. Segui o mesmo caminho.

Quanto a mim e ao dia em que “conheci” Carbone, confesso, era pequeno e não me recordo muito bem dos jogos. Sei que um deles foi contra o Bahia e terminou 0 a 0. Creio que em 1975 ou 76. Literalmente dormi no gelado cimento da arquibancada do velho Maracanã. Entre um cochilo e outro, chamava-me atenção o Carbone. Havia visto a foto dele no jornal. É, porém, certo: a cabeleira e o bigode do Carbone jamais saíram da minha memória. Tanto que achava bacana. Achava que ao crescer teria o mesmo bigode do Carbone. Coisas de criança. Fiz do craque um dos meus primeiros astros do futebol de botão, uma mistureba de jogadores do Vasco com os do Botafogo. No gol era o Andrada. Miguel e Osmar na zaga. Tinha, na meia, o Carbone, o Manfrini e o Zanata. Dinamite no ataque, com Jorginho Carvoeiro e por aí vai.

A cabeleira e o bigode do Carbone “rivalizavam” com outro famoso bigode, o do tricolor Rivellino. Um verdadeiro “Clássico vovô” dos bigodes. Divertia-me com tudo aquilo. Coisas de criança.

Hoje, aniversário do ídolo Carbone, esta memória veio à tona. Graças a Deus que ainda existem em mim… coisas de criança.

ESCURINHO, O QUE BRILHAVA COMO UMA SARAH BERNHARDT EM PRIMEIRA AUDIÇÃO

Nelson Rodrigues estava certo, Escurinho foi um grande ponta-esquerda e tornou-se merecidamente ídolo histórico do Fluminense. Após deixar os gramados. o craque passou a dirigir um táxi. Escurinho morreu ontem, no Rio de Janeiro, aos 90 anos.

por André Felipe de Lima


Não foi somente o torcedor do Fluminense a perder seu ídolo ontem [12]. Escurinho era querido também por torcedores do Villa Nova, de Minas Gerais, pelo qual foi, inclusive, campeão mineiro pouco antes de migrar para as Laranjeiras. Benedito Custódio Ferreira [seu nome de batismo] nasceu no dia 3 de julho de 1930, em Nova Lima, interior de Minas Gerais. Começou no Olaria, de sua cidade natal. Depois, foi para o juvenil de Morro Velho e mais tarde transferiu-se para Itabira, atuando no elenco do Valeriodoce, ficando na cidade por cinco anos.

Em 1951, Escurinho foi levado por Americo de Souza para o Villa Nova, time que dirigia e que foi campeão mineiro no mesmo ano, permanecendo no clube até 1953. Foi convocado por Martin Francisco para defender a seleção de Minas Gerais. Seu primeiro contrato no Villa Nova foi de 500 cruzeiros mensais, passando depois para 1.200. Recebeu 10.000 cruzeiros de prêmio pela conquista do título de campeão mineiro, além de um emprego de motorista de caminhão e 2.000 mensais.

No Villa Nova. Escurinho jogava com o meia Gato, jogador vindo do Triângulo Mineiro. Ambos eram considerados “almas gêmeas”. Com os dois tocando a bola, era gol na certa. Escurinho ganhou o apelido de “Homem-gol” e Gato o de “garçom”.

Defendendo o Villa Nova, Escurinho conquistou a torcida. Logo aquele rapazola extremamente simpático começou a se destacar pela velocidade e habilidade, despertando o interesse do Tricolor carioca.

Em 1951, disputavam a “melhor de três” pelo título mineiro o Atlético e o Villa Nova. Os olheiros do Rio de Janeiro voltaram-se para Minas, principalmente para o quadro do Villa Nova, com craques que já demonstravam futuro. Ondino Vieira, então técnico do Bangu, viajou para ver, especialmente, Escurinho. Ao final da partida, Vieira confessou não ter visto nada de mais no atacante, que só chutava com o pé esquerdo. Levou para “Moça Bonita” o arqueiro Arizona e o centromédio Lito. Em 1956, Escurinho já fazia parte da seleção brasileira.

Escurinho vinha se destacando tanto que Zezé Moreira mandou chamá-lo para treinamento nos meses que antecederam a Copa do Mundo de 1954, na Suíça. Apesar de seu bom desempenho, Escurinho foi dispensado por condições físicas desfavoráveis. O extrema-esquerda acabou chamando a atenção do Fluminense, que o contratou por um valor inicial de 12 mil cruzeiros, mais os prêmios e “bichos” pelas vitórias. Chegou às Laranjeiras em 1954. Gato, a “alma gêmea” de Escurinho também ganhou um lugar ao sol e seguiu para o Botafogo.


Quando saiu do Villa Nova para o clube das Laranjeiras, Escurinho recebeu como prêmio pelos serviços prestados ao clube mineiro além de profissional correto e exemplo de disciplina, 100 mil cruzeiros.

Não demorou para que Escurinho se transformasse em ídolo tricolor. Nelson Rodrigues, ilustre torcedor do Flu, definiu o atacante em uma de suas antológicas crônicas: “Escurinho não foi um jogador de duas ou três jogadas. Absolutamente. De fio a pavio das batalhas, ele brilhava como uma Sarah Bernhardt em primeira audição […] os mesmos que xingavam Escurinho já começam a chamá-lo de “o maior”. Eu próprio já me incluo entre os seus entusiastas mais recentes e mais apopléticos.”

Escurinho envergou a camisa verde, branca e grená durante 10 anos. Atuou ao lado de ícones da história do clube, como Castilho, Pinheiro e Telê Santana e ajudou o clube a conquistar os campeonatos cariocas de 1959 e 1964, além de dois torneios Rio-São Paulo, em 1957 e 1960. Escurinho disputou 490 partidas e marcou 111 gols. Está entre os cinco jogadores que mais vestiram a camisa do Fluminense.

O ponta-esquerda esteve em campo em um dos maiores Fla-Flus de todos os tempos. Era a final do campeonato carioca de 1963 e — como diria Nelson Rodrigues — o “profeta tricolor” já cantava a vitória do Fluminense. No dia do jogo, 178 mil pessoas… isso mesmo, o maior público já registrado em uma partida entre clubes em todo o mundo, se acotovelavam nas arquibancadas do estádio para ver um encontro épico entre os dois eternos rivais. No fim do jogo, Escurinho teve a oportunidade de marcar o gol do título para o Flu. Errou a conclusão e o goleiro rubro-negro fez a defesa que garantiu o 0 a 0 e o título foi para a Gávea. No dia seguinte, a emblemática crônica de Nelson Rodrigues: “Amigos, eu sei que os fatos não confirmaram a profecia. Ao que o profeta só pode responder: — Pior para os fatos! E só.”

Escurinho também defendeu o Atlético Júnior Barranquilla, da Colômbia, a Portuguesa da Ilha do Governador — com a qual bateu o poderoso Real Madrid dentro do estádio Santiago Bernabéu, em 1969 — e o Bonsucesso, em 1970, onde encerrara a carreira.

O ex-ponteiro, diziam, fazia muito sucesso também com as mulheres, inclusive, a ponto de a imprensa vasculhar cada passo do jogador, como o noivado com Dalita, que se dizia encantada com Escurinho. A reportagem abordava, no entanto, de forma preconceituosa o que teria levado a jovem a enamorar-se de Escurinho. O título evidencia isso: “Quem ama o preto, branco lhe parece”. Mas o craque estava cima de qualquer deslize editorial. Nelson Rodrigues incumbiu-se de colocá-lo em um patamar bem mais elevado no altar dos ídolos tricolores. Mas de nada adiantou tanta badalação se apenas histórias o craque guardou daqueles tempos.

Escurinho não enriqueceu com o futebol. Logo após deixar a bola, em 1970, passou a dirigir um táxi na cidade do Rio de Janeiro. Esteve como quando começou a trabalhar ainda garoto, ou seja, na época em que dividia o futebol do Villa Nova, Escurinho dirigia caminhões. Poucos conheciam essa história, a do Escurinho caminhoneiro antes de chegar ao Fluminense.

Mito ou verdade, não se sabe, mas há uma história cômica contada por Gerson Soares — filho da intérprete e ex-companheira de Garrincha — da qual os personagens são Sabará, ex-ponta-direita do Vasco, Garrincha e Escurinho. Logo após a Copa de 1958, na Suécia, todos da comissão técnica e jogadores brasileiros ganharam um Renault Dauphine, um carro, notoriamente reconhecido, minúsculo. Mal cabem nele duas pessoas. Quiçá, quatro.


O roupeiro e massagista Assis, na lista dos felizardos. Mas o camarada não sabia dirigir o carango. Vendeu-o a Sabará, que por sua vez também desconhecia o ofício do volante. Como a amizade entre craques adversários estava acima dos embates campais, Sabará pediu a Escurinho que assumisse o volante. O roteiro diário era este: Escurinho deixava Sabará em São Januário; Quarentinha e Garrincha em General Severiano e Clóvis, nas Laranjeiras. Mas antes do despejo de craques em seus clubes, fazia o caminho inverso. Uma hora ou outra, o dono do carro teria que aprender a dirigir. E Escurinho, toda vez que passava por uma rua deserta na Ilha do Governador, ensinava Sabará os macetes do volante. O ponta vascaíno ouvia, às gargalhadas, as chacotas dos amigos. Garrincha, então, se esbaldava. O Mané era quem mais insistia que estava na hora de Sabará dirigir logo aquele carro. Passou um mês, lá foi Sabará, com a coragem que exibia nos gramados, fazer o mesmo no seu Renault. Quarentinha e Clóvis, aflitos. Garrincha, como sempre, sorrindo. Na Avenida Brasil, só barbeiragem. Quarentinha e Clóvis — espremidos no banco traseiro — pediam a Escurinho que os salvassem do “piloto” Sabará.

Ao chegarem a São Cristóvão, o inverossímil, vá lá, “acontece”. Escurinho pediu ao Sabará que entrasse na segunda rua à direita. Entrou na primeira. Uma carreta estava atravessada na pista. Sabará acelerou ao invés de frear. Já pensou, no mesmo carro, mortos, aquela leva de craques? Deus nos livre. E só poderia ter sido Ele mesmo para livrá-los do desatinado Sabará. O carro — de tão pequeno, mais parecia um brinquedo — passou por debaixo da carreta. Apenas, milagrosamente, um arranhão no teto do automóvel. Um guarda viu a cena. Ligou a sirene da moto, seguiu-os e emparelhou com o carro de Sabará, que estava sem habilitação e acelerou ainda mais. Imagine o desespero dos “caronas”? Garrincha, aliás, o único que se divertia com a situação, pediu a Quarentinha para pôr a cabeça para fora do carro, somente assim, o guarda o reconheceria. Obviamente, o “Quarenta” mandou Mané para aquele lugar…

Sabará, enfim, parou o carro. O guarda, com a arma em punho, disparou: “Amigo, você é um ás do volante…”. Mas o guarda austero, não deu cancha para os craques e intimou todos a descerem do carro. Logo, reconheceu todos. Pediu que Escurinho assumisse o volante e fez questão de dar uma carona, na garupa da moto, a Garrincha até o treino do Botafogo. Uma época de lendas saudáveis sobre os nossos craques que não volta mais.