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andré felipe de lima

CHICO, DO VASCO, 100 ANOS

por André Felipe de Lima


Os gaúchos não se destacam apenas pela garra e pelo espírito combativo — muito pelo contrário — se as gerações mais novas deleitaram-se com a habilidade de um Ronaldinho Gaúcho, outras podem dar testemunhos de um craque gerado no sul. Chico, que era destro e iniciou a carreira como ponta-direita, foi ponta-esquerda do Vasco e daquele escrete da Copa de 1950, que tinha nada menos que seis titulares oriundos do time de São Januário. Era o Expresso do Vasco. Tinha todas as qualidades de um craque, com técnica, velocidade, drible fácil e chutes potentes e certeiros, com ambas as pernas. E, claro, a tal raça comum aos gaúchos: apanhou de sabre dos policiais argentinos na briga generalizada do Sul-Americano de 1946, em Buenos Aires, depois de revidar uma entrada maldosa de um zagueiro argentino. Naquela partida, teria um gol legítimo anulado pela arbitragem, que alegou impedimento. Marcou quatro gols na Copa de 50. Atuou no Vasco de dezembro de 1942 a 53.


Francisco Aramburu, o grande Chico, faria 100 anos neste dia 7 de janeiro de 2022. Ele nasceu em 1922, em Uruguaiana, e travava duelos memoráveis com Biguá, lateral do Flamengo, paranaense de Irati, no time rubro-negro desde 1941. Pareciam ferrenhos inimigos, mas atuaram juntos nas seleções carioca e brasileira. Em São Januário, o Vasco recebia o Flamengo, que tentava o “tetra”. Com o placar apontando 1 a 1, aos 43 do 2º tempo, Biguá ficou de costas para o gol, espreitando o que Chico faria, e Lelé bateu para o gol. A bola bateu na trave, na nuca de Biguá e entrou no gol. O lateral caiu chorando, ainda tonto com a pancada.

“A própria torcida do Vasco não festejou o gol com muita alegria, em respeito ao drama que eu vivia. E a primeira mão que se ergueu para me ajudar foi a do meu grande adversário, Chico. Ele me levantou, me abraçou com carinho, me consolou.” Respeito comum a outro futebol, de outro tempo, confirmado pelo depoimento de Chico: “Eu fui lá ajudá-lo, disse-lhe que erguesse a cabeça, porque ele não tinha culpa nenhuma. A dor de Biguá me feria. Naquele momento, chorei junto com ele. Naquela época o futebol tinha rivalidade dentro do campo, assim mesmo, se respeitando os adversários”. Biguá, grande amigo de Chico, morreu em 9 de fevereiro de 1989.

Chico também defendeu o Ferrocarril, de Uruguaiana, de 1939 a 41, e Grêmio, de 1941 a 43, antes do Vasco da Gama, pelo qual foi campeão carioca em 1945, 47, 49, 50 e 52, e campeão do primeiro Sul-Americano de clubes, pelo Vasco, em 1948. Jogou pela seleção na Copa contra a Iugoslávia, em 1º de julho de 1950, Suécia, no dia 9, Espanha, no dia 13, e Uruguai, no dia 16, a grande final.


Como todos os craques que estiveram em campo naquele Brasil e Uruguai de 16 de julho de 1950, no Maracanã, Chico sofreu e… denunciou. Ele confidenciou ao repórter Geneton Moraes Neto que o técnico Flávio Costa assumiu a responsabilidade pela derrota ao pedir ao lateral Bigode que mudasse o seu estilo [viril] de jogar. “Nosso treinador disse a Bigode que exigia disciplina. Se houvesse derrota com indisciplina, o indisciplinado seria o responsável. Se houvesse derrota com disciplina, ele, o treinador, seria o culpado. Bigode, então, modificou o estilo de jogo”, confirmou o ponta, que “pressentiu”, logo após o Brasil fazer 1 a 0, que, caso ele, Chico, não “parasse” Obdúlio Varela, o jogo estaria perdido. Pediu apoio a Ademir de Menezes e a Zizinho e ouviu dos dois que deveria seguir a recomendação de Flávio Costa.

O mesmo Bigode — descreveu Chico, sem citá-lo nominalmente à Geneton — levou um tapa de Obdúlio, o que todos os outros jogadores do escrete negaram: “Não posso deixar de dizer, porque vi: um jogador do Brasil levou um tapa de Obdúlio Varela. Por que ele diz que não levou, eu não sei. Mas levou, eu vi. Aliás, Obdúlio deu um cascudo. Os uruguaios tinham essa maldade. Davam um tapa, davam soco e cuspiam. Depois, diziam que estavam acariciando. Mas nunca admiti essa carícia comigo. Eu estava próximo do lance quando tudo aconteceu. Cheguei a pedir a Obdúlio Varela que fizesse comigo.”


Chico também cita um fator extracampo como aditivo para o fiasco diante dos uruguaios: a divisão do dinheiro que se obteria com a venda do lustre de cristal, conquistado por Jair Rosa Pinto, por ser considerado o melhor em campo em um dos jogos da seleção naquela Copa. Chico reclamou de barriga cheia porque saiu do Mundial com um terreno por ter feito um dos gols da campanha do Brasil. Outros jogadores ficaram a ver navios, sobretudo os da defesa. Os propalados terrenos eram concedidos apenas aos atacantes.

Pela seleção brasileira, Chico entrou em campo 21 vezes, conquistando 12 vitórias, 3 empates e marcando 8 gols. Encerrou a carreira em 1953, no Flamengo, e, durante muitos anos trabalhou como corretor autônomo de seguros.

Um dos melhores pontas da história do Vasco, Chico, morreu no dia 1º de outubro de 1997, no Rio de Janeiro.

ROBERTO DIAS, O MAIOR

por André Felipe de Lima


Como quarto-zagueiro ou volante, ele funcionava, e muito bem. Clássico. Talvez o mais clássico de todos os zagueiros que o São Paulo Futebol Clube já teve. Podemos citar Mauro Ramos de Oliveira, o capitão do bi mundial. Tudo bem. Mauro foi um gigante, um zagueiro técnico, maravilhoso, clássico também. Mas Roberto Dias foi, para muitos tricolores, fundamentalmente os da velha-guarda, o melhor que já despontou nas fileiras do Morumbi. Mais emblemático que o uruguaio Dario Pereyra, inclusive.

Roberto Dias chegou ao São Paulo em 1960. Deixou-o somente em 1973. Verdade que ficou parado ao longo de 1971. Na noite de 7 de dezembro daquele tortuoso ano, Dias voltou ao campo. Matou bola no peito, deu carrinho, desarmou e lançou. Também chiou com o juiz. Obviamente natural. Fez o mesmo com os bandeirinhas e os gandulas. O velho Dias estava de volta. O coração permitira o show, a emoção de ouvir o estádio inteiro gritar seu nome: “Eu sou um ex-cardíaco. Quem consegue suportar todas estas emoções que eu tive hoje não pode ser um doente. Jogar não é nada. Difícil é sentir tudo isso outra vez.”


Dona Rosita, a esposa, chorava copiosamente ao lado da filhinha do casal. A festa para o marido foi inesquecível. Quem esteve no Morumbi sabe bem o que escrevo. Não estive lá, mas costume ler com atenção a emoção descrita por outras penas. A do jornal O Estado de S.Paulo do dia seguinte prova minha tese: naquela noite um ídolo foi reverenciado como pouco se viu ou veria depois na história do velho Morumbi. O coração dera uma trégua ao Dias, e a torcida agradeceu ao céu, ao coração. Agradeceu por Roberto Dias estar ali, na grama, fazendo misérias com a bola.


É inegável a longeva época de brilho intenso que imprimiu no Tricolor paulista. Foi o maior ídolo do clube na década de 1960, embora escassa de troféus para o clube. Em 14 anos exclusivamente são-paulinos, marcou 76 gols em 523 jogos, como aponta o Almanaque do São Paulo, assinado por Alexandre da Costa. Pergunto: qual zagueiro marcou tantos gols como Dias? Acho difícil que tenhamos outro Dias no futebol brasileiro. Pelé, por exemplo, era seu fã confesso. Dizia a todos que nenhum outro o marcou como Dias.

Roberto Dias Branco, bicampeão paulista em 1970/71 pelo Tricolor, faria anos hoje.

DIDI, O MR.FOOTBALL, QUEM DIRIA, JÁ SOLTOU A VOZ

por André Felipe de Lima


Pelé e Sócrates “cantores”. Até mesmo Garrincha e Maradona também “soltaram” suas vozes. No caso deles, o futebol levou a melhor. Mas quem cantava muito bem, e melhor que todos estes já citados, foi o ponteiro Tite, que defendeu Fluminense, Santos e Corinthians entre as décadas de 1940 e 50. Foi Tite quem ensinou Pelé a tocar violão. Por aí se vê que estamos falando de um camarada que manjava de música. Há também os menos famosos (pelo menos por aqui) como o Felipe Gabriel, que ganha a vida na distante Letônia mais cantando que propriamente jogando bola. Porém, em minhas mais recentes andanças por jornais e revistas velhos, resgatei informações que o tempo incumbiu-se de empoeirá-las. Didi, olhe bem, o sr.Valdir Pereira, o Mr.Football da Copa de 58, era também cantor, e de mão cheia. Era fã da Dalva de Oliveira. Queria gravar com ela, mas não rolou. Em dezembro de 1951, o craque arriscou-se, enfim, no microfone ao gravar a marchinha carnavalesca “Meu clube perdeu” composta por Luiz Mergulhão, com arranjo de Pernambuco e Sua Orquestra.

A relíquia em forma de áudio (talvez a única cópia existente) está devidamente preservada no Instituto Moreira Salles, no Rio. Embora Didi já se mostrasse como o nome mais popular do Fluminense naquele ano, a marchinha não fez muito sucesso no carnaval de 1952. Mas Didi, que igualmente ao Tite tocava violão, não desistiu. Desejava gravar para o carnaval de 1956 dois sambas de Monsueto, autor de “A fonte secou” e “Mora na filosofia”. Não se sabe se o MR.Football realizou o desejo. Permaneceu jogando bola, do Fluminense para o Botafogo e na seleção. Mas sem deixar de lado a vontade de cantar, sobretudo após encerrar a carreira nos gramados, como descreveu a esposa Guiomar: “Talvez seja cantor, quem sabe? Sim, cantor. Então vocês não sabem que em 1951 ou 52, Didi venceu um concurso e foi eleito ‘O craque cantor’? Chegou até a gravar um disco na Star, a marcha de Luís Mergulhão, ‘Meu clube perdeu’, com Pernambuco e sua orquestra. Mas isso é apenas, um sonho.”

Perdemos uma voz para o rádio e ganhamos a “folha seca” bicampeã do mundo. Ainda bem.

ABAIXO, OUÇA A MARCHINHA “MEU CLUBE PERDEU”, NA VOZ DO DIDI:

https://discografiabrasileira.com.br/fonograma/95342/meu-clube-perdeu?fbclid=IwAR3QTH9cZs9V5c2DLdnlRE7zfRIOCTnLXxFT8FWr_oV8pI5MLKIJJUZac0Q

FRIAÇA SOBRE A FINAL DA COPA DE 50: ‘AINDA SONHO, MAS NÃO ADIANTA’

Faria anos hoje o grande ponta Friaça. Brilhou no Vasco, no São Paulo e na Ponte Preta. Foi dele o gol do Brasil na fatídica partida contra o Uruguai na final da Copa de 50. Conheça um pouco mais sobre este grande ídolo do futebol

por André Felipe de Lima


O pai apostava no filho como seu herdeiro no comando da fazenda. A aposta era alta e consistia, inclusive, em um curso de agronomia para garantir a boa sucessão. Mas o destino é maroto. Nada e fazenda e tampouco faculdade. Como em milhões de casos Brasil afora, sempre ela, a bola, deu as cartas. Como precisava estudar, deixou a formosa Porciúncula, no interior do Estado do Rio de Janeiro, rumo a Carangola. Entre uma aula e outra, o gosto por correr atrás de uma bola de futebol. Não tinha jeito, o jovem Albino Friaça Cardoso, mais o amigo Elgen, com quem formava uma ala direita de respeito no colégio, só queriam jogar. Nada de estudo. Mas a importância dos dois garotos para a pequena cidade pode ser exemplificada pelo seguinte episódio descrito pelo jornalista José Luiz Pinto: “Por achar que Friaça não ia bem naquele colégio, ou simplesmente por que pensou em transferi-lo para outro, o pai dele foi a Carangola com esse objetivo. Quase houve reunião de diretoria, e o velho Friaça teve uma surpresa ao ver que o filho já era tão importante. Elgen, muito mais adiantado, já ganhava seus cruzeiros como professor de português e matemática, mas o único jeito que a direção do colégio encontrou para impedir a saída de Friaça foi oferecer-lhe o estudo gratuito. Estava contornada a situação e o quadro do colégio continuou a atuar com a ala Elgen e Friaça.”

Corria o ano de 1943, quando o Vasco apareceu em Carangola para um jogo amistoso. O time do colégio cedeu seus dois craques para o time da cidade, o Ipiranga, enfrentar o poderoso esquadrão cruzmaltino. Os dois jogaram. E muito. Freitas, olheiro vascaíno, nem pensou muito, foi logo oferecendo a proposta aos dois garotos para testes em São Januário. Nada estava, contudo, garantido. Mas, para dois meninos do interior, nada como uma boa aventura na então capital federal.

A presença de Friaça e Elgen foi tão convincente que ambos, em apenas três meses, garantiram vaga no time amador do Vasco, que tratou de segurá-los com um contrato da categoria de não-amador. Em 1945, os dois jovens fizeram parte do time vascaíno campeão estadual de aspirantes. Repetiriam o feito no ano seguinte e, em 1947, ano em que começaram a atuar pelo time profissional, fazendo parte do elenco campeão carioca de 1947. Ou seja, Friaça e Elgen levantaram dois troféus estaduais em um único ano.

Elgen, tempos depois, deixaria o futebol, optando por manter uma padaria em Natividade, perto de Porciúncula. Já Friaça amava o futebol tanto quanto a vida no campo, em Porciúncula, onde nasceu no dia 20 de outubro de 1924. Sua vida era o Vasco, ao lado de companheiros como Djalma, Maneca, Lelé, Chico e, posteriormente, Ademir de Menezes. Todos atacantes responsáveis pelo fortíssimo ataque do Expresso da Vitória, alcunha da equipe vascaína base da seleção de 1950 apontada como a melhor do País na época. Em São Januário, Friaça também conquistou o primeiro campeonato sul-americano de clubes, em 1948.

O atacante tinha como principais qualidades a precisão nos passes, chutes — que diz ter aprendido com Jair Rosa Pinto — e cruzamentos, além de ser habilidoso e rápido.

Quem diria… Friaça era torcedor do América. Desfilava em São Cristóvão exibindo um cinto, presente que ganhou quando morava em Carangola, e que estampava na fivela as letras A.F.C.. Simplesmente as iniciais de América Futebol Clube. Jogava no Vasco, titular absoluto, Friaça estava “dando sopa” no saguão de São Januário, quando um cartola lhe importunou por que usava um cinto do América se jogava no Vasco. Friaça não deixou por menos: “Quem disse ao senhor que eu torço pelo América? Sou Vasco desde garotinho. Essas letras no cinto são as iniciais do meu nome, Albino Friaça Cardoso.”


No Vasco, Friaça sentia-se em casa, mas o craque amadureceu e sentiu-se valorizado. Pediu aumento dos valores das luvas. O companheiro Elgen fez o mesmo. Friaça insistia em 160 mil cruzeiros e o Vasco não ia nem a 100 mil, ficando nos 96 mil. O impasse perdurava, sendo que, justamente naquela época, o Vasco excursionava pelo México. Na volta ao Brasil, Friaça desembarcou diretamente para Porciúncula ao invés sem, porém, prosseguir na discussão contratual com os cartolas vascaínos. Nenhuma das partes cedeu.

Em sua fazenda, Friaça recebeu um telefonema do ex-jogador vascaíno e agora olheiro Figliola, que dizia ao craque ter comprado seu passe e o oferecido ao São Paulo. Tudo dependeria apenas — dizia Figliola — de ele, Friaça, aceitar ou não jogar no futebol paulista. Friaça imaginaria tudo, mas não abandonar o Vasco daquele jeito, repentinamente desconfortável.

O São Paulo o queria e, ademais, o negócio já estava feito. Era inicio da temporada de 1949 e o Tricolor, de Bauer, Remo, Pone de Leon, Teixeirinha e o velho [e ainda craque] Leônidas da Silva, estava disposto a manter a hegemonia estadual, como escreveu o repórter José Luiz Pinto, em 1951, recordando o episódio da saída de Friaça do Vasco. “Falando ao telefone, um tanto atordoado com o inesperado da situação, Friaça acabou aceitando. E assim, quase contra a vontade, lá se foi o craque para a Paulicéia, iniciar uma nova fase de sua carreira esportiva, que por sinal não foi das mais favoráveis. Friaça não conseguiu acertar em São Paulo, sempre em luta com contusões, sem conseguir jamais recuperar a forma, e consequentemente sem aparecer com o destaque que lograra aqui no Rio. Mesmo assim, lutando contra a adversidade, ainda chegou a integrar o selecionado paulista, naquele campeonato brasileiro antes da Copa do Mundo. Mas a realidade mesmo é que ele não se dera bem em São Paulo, sendo que nos últimos tempos chegara a tal apatia pela bola, que pensou seriamente em retornar definitivamente a Porciúncula. Com a fazenda à sua espera, Friaça achou que já era tempo de encerrar a sua aventura pelo futebol. E, quando o Vasco esteve em S.Paulo, Friaça contou suas mágoas a Ademir e ao velho Menezes. Contou que não estava bem física e tecnicamente e que achava extremamente difícil uma recuperação naquela altura: ‘Volto para Porciúncula, ‘seu’ Menezes’. Mas Ademir e o pai, após muito trabalho, convenceram o craque de que tudo ainda podia ter jeito, que bastaria uma mudança de ambiente para a vida parecer diferente ao jovem atacante. Também o Dr. Giffoni entrou com seu conselho e ficou combinado que de volta ao Rio seria tratada junto ao Vasco a sua volta ao Rio. Tudo deu certo e, em São Januário, Friaça entrou nos eixos, recuperando rapidamente a condição física, e voltando à forma técnica, mercê do ambiente de São Januário. Foi uma recuperação completa e dentro em pouco Friaça deixou de lado por algum tempo os seus planos de voltar ao campo.”

Apesar de não estar ambientado na terra da garoa, Friaça ajudou o Tricolor a faturar o campeonato paulista de 1949, quando terminou a competição como artilheiro, assinalando 24 gols. Sua passagem pelo clube foi curta, porém marcante. Com 0,727 gols por partida [48 gols em 66 jogos], Friaça mantém a terceira melhor média de gols da história do São Paulo, atrás apenas da longínqua marca de Friedenreich [0,814], que corresponde a 66 gols/ 81 jogos, e da assinalada mais recentemente por Luis Fabiano [0,737], com 118 gols em 160 partidas.

Veio 1950… e com ele o casamento com Maria Helena — de quem nunca se separou — e a esperança de ser campeão do mundo. E na sua própria terra. O País inteiro era uma festa. Preparamo-la para aqueles que deveriam fazer do Brasil a pátria do futebol, com aquele que seria um título incontestável. A Copa começou. Superamos Espanha e Suécia, respectivamente, por 6 a 1 e 7 a 1, no quadrangular final da competição. Bastaria empatar com o Uruguai no derradeiro jogo para comemorarmos o título.

“De sexta para sábado e do sábado para o domingo, dentro do bar do Vasco da Gama, na concentração em São Januário, eu assinei autógrafos como ‘campeão do mundo’. Assinei!”. Friaça assinou de tudo. Camisas, bolas, faixas, fotos, como descreveu o repórter Geneton Moraes Neto.

Chegara o dia 16 de julho de 1950. Tínhamos, além de Friaça, Ademir de Menezes, Zizinho, Bauer, Danilo, Bigode, Juvenal, Chico, Barbosa… um timaço. Do lado uruguaio, Schiaffino [o que tinha de craque, tinha de esnobe, diziam os próprios companheiros dele], Ghiggia, Julio Perez [que faria relativo sucesso tempos depois no Internacional], Gambetta e ele… Obdúlio Varela, o grande capitão. Na hora do hino dos dois países, com os dois escretes perfilados, a bandeira do Brasil estava hasteada de cabeça para baixo, garantiu o goleiro Barbosa. Péssimo sinal. Muito mal mesmo.

A peleja começou “mordida”, tensa e com os dois times receosos, nenhum dos craques mencionados jogou bem. Resultado, 0 a 0. “Tremi vendo muita gente boa tremendo na minha frente.”

Começou a segunda etapa e Friaça marcou o primeiro gol do jogo, logo aos dois minutos de bola rolando. “A emoção foi tão grande que só me lembro de uma pessoa que veio me abraçar: César de Alencar, o locutor. Quando a bola estava lá dentro, ele gritou: ‘Friaça, você fez o gol!’ Naquela confusão, ele entrou em campo e me abraçou. Nós dois caímos dentro da grande área […] Ali nós já éramos deuses […] Gravei bem o lance do meu gol contra o Uruguai, porque este é o tipo de coisa que a gente guarda. Eu tinha potência na perna direita, graças a Deus. Quando vi, Máspoli, o goleiro do Uruguai, tinha saído. Bati forte na entrada da área — do lado direito para o esquerdo. A bola entrou. O lance tinha nascido de uma combinação minha com Bauer. Assim: Bauer tocou para mim, eu toquei para o Zizinho — que tocou, na frente, para mim. Antes de entrar na área, bati na bola. Tive a felicidade de marcar!”


Delírio no Maracanã. Uns choravam de felicidade, outros pulavam, gritavam. Seríamos campeões. Não tínhamos dúvidas disso. Amávamos nossos craques. Mas o que não esperávamos era Schiaffino empatar o jogo para os uruguaios. Engolimos a seco. Vidente ou não, quem estava naquele estádio, naquele dia, naquele hora, naquele minuto após o gol da “Celeste Olímpica” sofria com o pressentimento mortal. Santo Agostinho, o primeiro filósofo cristão, nos alertava há milênios: “Sofro por ter derramado minha alma na areia e por ter amado um mortal como se ele não fosse morrer”. Estávamos assim, no Maracanã, crentes da imortalidade. Apenas 10 minutos. Esse era o tempo que nos separava da imortalidade. Mas, pela ponta direita, diante os desavisados “arcanjos” Bigode e Juvenal, surgiu o algoz vestido de azul celeste. Ghiggia chutou, entre a trave e Barbosa… gol.

“Eu me lembro de lances que poderiam ter mudado a história do jogo. Eu era um jogador que tinha noção dos passes, principalmente os de perna direita. Houve um lance em que fiz um passe certeiro, para Ademir entrar de cabeça. Eu, naquele estado de nervos, tinha certeza de que Ademir, com a facilidade que tinha para jogar, faria o gol. Mas Ademir praticamente devolveu a bola para mim. A bola voltou na mesma direção! Por aí, dá para ver o estado em que os jogadores do Brasil se encontravam, naquele momento, a dez, quinze minutos do fim da partida. Naquela altura, era tudo na base do ‘valha-me Deus’, porque ninguém entendia nada.”

Nosso olimpo ruiu. Descobrimos que éramos mortais. Restou-nos o silêncio. O trauma foi grande. Nunca mais perdoariam o goleiro Barbosa, o lateral-esquerdo Bigode e o zagueiro Juvenal. Injustiça com os três. Após o inglês George Reader apitar o final do jogo, Friaça apagou. Não que tivesse desmaiado, mas parecia um zumbi no gramado. Como conseguiu chegar à sede do Vasco, em São Januário? Talvez nem o próprio Friaça saiba ao certo. “O trauma foi enorme. Vim para o Vasco. Fiquei, em companhia de outros jogadores, andando de noite em volta do campo, ali na pista. O assunto era um só: como é que a gente foi perder com um gol daqueles?”

Ele, Rui Campos, Noronha e Bauer contornavam o gramado de São Januário, completamente sem eira nem beira. Conversavam em busca de uma justificativa para o improvável: a perda do título. Friaça sentira, talvez, mais que os outros porque fora dele o gol do Brasil. O gol que por pouco não consumou a Copa para o Brasil. A Geneton Moraes Neto, ele confessou ter sido aquele dia o “momento mais duro” de toda a sua vida: “Só me lembro de que a gente subiu para o dormitório. Eram umas 11 da noite. Troquei de roupa e me deitei. Não me lembro de nada do que aconteceu depois. Quando dei por mim, por incrível que pareça, eu estava em Teresópolis, no meu carro. Passei pela barreira, fui para um hotel. Quando perguntaram: ‘Friaça, o que é que você quer?’, eu simplesmente não sabia onde estava. Só sabia que estava debaixo de uma jaqueira, no terreno do hotel. Não sei como é que saí com meu carro da concentração. Não sei como fui bater em Teresópolis. Um médico que era prefeito de Teresópolis é que me deu uma injeção. Comecei a saber onde é que estava uns dois dias depois. O pior é que eu também não sabia. De 64 quilos eu passei para 59.”


Friaça deixou a todos muito preocupados. Após o Maracanazo, ficou cinco dias sem enviar aos parentes notícias de seu paradeiro. O mesmo tempo em que estava desmemoriado. Tudo se acalmou quando chegou à Porciúncula. Não soube explicar, contudo, como perdeu a memória. “Deu um branco”. Suspeitou a vida toda tê-la recobrado quando repousava sob a sombra de uma jaqueira. Apenas uma vaga suspeita. Apenas.

Concentrara-se na fé de que receberia a premiação prometida após a final contra os uruguaios. Fizera um gol na decisão e o jogador responsável pelo feito ganharia um terreno, no Leblon. O artilheiro do jogo também levaria para casa um televisor [artigo de luxo, na época, talvez mais importante que o tal terreno], oferecido pela loja A Exposição. Friaça buscou os seus direitos. Queria o terreno e a televisão. Mas ouviu, como resposta, que só levaria os prêmios se o Brasil saísse de campo com a posse da taça Jules Rimet. E sabemos que esta ficou nas mãos do capital uruguaio Obdúlio Varela.

Sem terreno, tudo bem. Tinha uma fazenda enorme em Porciúncula. Mas a televisão era novidade para poucos. Não a deram como prêmio ao Friaça, e ele — talvez de birra — decidiu comprar uma. “Nós, os jogadores, sofremos em todos os cantos, porque, para onde a gente ia, ouvia só duas palavras: Obdúlio, Uruguai.”

DE VOLTA À FAZENDA

Friaça ainda jogou futebol durante mais alguns anos. Após o São Paulo, passou pelo Vasco, Ponte Preta e encerrou a carreira no Guarani, de Campinas, no interior paulista, em 1958. Ao colunista Adriano De Vaney, disse: “Acomodei-me em Campinas. Lá espero viver o resto de minha vida. Sou casado, tenho uma filhinha de 4 anos, Campinas é uma cidade pacata, de hábitos bons, e eu já me afiz à índole de deu povo. O que quero é tranquilidade de espírito, e isso eu encontrei definitivamente”. O que se sabe é que Friaça retornou a sua Porciúncula e hoje mora em uma casa rosa, número 111 da rua Carlos Pinto Filho, mas o futebol nunca saiu de sua vida. Virou técnico do Porciunculense [ex-Fluminense local], nos anos de 1970 e 80. Volta e meia apareciam por lá craques de sua época, como Biguá e o paraguaio Modesto Bria, ambos ídolos do Flamengo; Ipojucan, Jair Rosa Pinto e Ademir de Menezes, amigos dos tempos do Vasco, para disputarem uma pelada.

Friaça transformou-se, contudo, em um empreendedor. Abriu uma lojinha de materiais de construção, mas o tino para os negócios não era seu forte. Passava horas conversando com os clientes sobre futebol. Com o tempo, o filho caçula, Ronaldo, assumiu a direção da loja, que hoje é a maior da cidade, com filiais em Campos e Itaperuna.

Mas o destino lhe impôs outra perda. Mais dolorosa que a do dia 16 de julho de 1950. Em 1992, seu filho Ricardo, com apenas 33 anos, morreu durante a prática de voo livre, em Porciúncula. Muito abalado, como descreve reportagem de Thiago Dias, Friaça foi buscar conforto no álcool. Como já fumava muito, já não faltava mais ingrediente para minar sua saúde. Anos depois, perdeu a visão do olho direito e, em 2006, sofreu um acidente vascular cerebral, que o impediu de movimentar-se.

Friaça é a personagem mítica da pacata cidade do interior fluminense. Lá, ele dá nome ao estádio de futebol, à maior loja da cidade e até ao enredo de uma escola de samba. Em sua casa, sob os cuidados da zelosa Maria Helena, sua primeira namorada e companheira de toda a vida, toma seus remédios com dificuldade. No quarto em que repousa, estão sua memória e o que sobrou de sua carreira vitoriosa, como menciona reportagem de Thiago Dias: o casaco da seleção usado na Copa de 1950 repleto de medalhas penduradas, a bermuda que vestiu na final no Maracanã e a faixa de campeão sul-americano [invicto!] de 1948, pelo Vasco.

O grande ponta-direita do Vasco — seu time de coração —, do São Paulo e da seleção brasileira nunca esqueceu o dia 16 de julho de 1950 e tampouco o título vascaíno de 48. Em vários pontos da casa há uma menção aos dois episódios, inclusive a faixa de campeão sul-americano de clubes, conquistada após o empate de 0 a 0 com a poderosa “la máquina” do River Plate, de Labruna, Losteau e Di Stefano, e o uniforme da seleção de 50, um “sonho” que nunca se apagou, como confessou, antes de sofrer o AVC, ao repórter Geneton Moraes Neto, que perguntou a Friaça se ainda sonhava com o dia daquela final contra os uruguaios: “Foi um sonho… sonhei… ainda sonho, mas não adianta.”

O filho Ronaldo também sonha: “Se o Brasil tivesse sido campeão, a estátua no Maracanã poderia ser do meu pai”. Melhor exprimem a trajetória de Friaça as letras harmoniosas de “Consolo na praia”, do poeta maior Carlos Drummond de Andrade:

Vamos, não chores…

A infância está perdida.

A mocidade está perdida.

Mas a vida não se perdeu.

O primeiro amor passou.

O segundo amor passou.

O terceiro amor passou.

Mas o coração continua.

Perdeste o melhor amigo.

Não tentaste qualquer viagem.

Não possuis casa, navio, terra.

Mas tens um cão.

Algumas palavras duras,

em voz mansa, te golpearam.

Nunca, nunca cicatrizam.

Mas, e o humor?

A injustiça não se resolve.

À sombra do mundo errado

murmuraste um protesto tímido.

Mas virão outros.

Tudo somado, devias

precipitar-te, de vez, nas águas.

Estás nu na areia, no vento…

Dorme, meu filho.

Friaça morreu no dia 12 de janeiro de 2009, no hospital São José do Havaí, em Itaperuna, interior do Estado do Rio, devido a uma pneumonia. Em Porciúncula, tudo lembra o craque. O estádio de futebol, carinhosamente chamado de “Friação”, e as lojas Friaça Center.

Para os moradores da pequena cidade, só há um grande ídolo, um filho dileto.

***

O GOL DO FRIAÇA NA FINAL DA COPA DE 50

NENHUM MAR DE HISTÓRIAS E GLÓRIAS FOI NAVEGADO SEM QUE NELE HOUVESSE O VASCO

Por André Felipe de Lima


Todo mar tem o azul, mas o meu mar, em especial, tem o negro e o branco. Um mar de todos, sem distinção

Assim se fez o meu Vasco, assim se faz o meu mar, assim se faz a minha memória ainda tenra e feliz

Por desde criança ostentar na alma uma cruz

Nunca a da sofreguidão ou mesmo a da dor. Mas a da fé, a da paciência e confiança no mar, o de águas brancas e negras, que na poesia apaixonada cabe, livre e desimpedido das amarras da lógica e das gramáticas. Livre dos chatos de plantão

A pressa única é ver o Vasco no dia seguinte a estampar em cores nos jornais a retumbante vitória.

A malta. A cruz de malta vermelha como o fogo

A nos aquecer de amor

Nem mesmo a fugaz e passageira derrota atormenta o meu mar

Aqui, nas águas jamais turvas, o brilho é eterno

Pois vamos a cantar todos de coração, que o pendão tremula e o navio segue, pois navegar é preciso

E o Vasco nunca omisso ou alheio ao meu amor, corresponde a cada grito, a cada canção

O Vasco é o meu primeiro amigo.

O Vasco é o meu irmão querido.