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andré felipe de lima

RONDINELLI, A ‘PEDRA FUNDAMENTAL’ DE UMA ERA RUBRO-NEGRA

“Ele é o jogador que tem alma. Isso é o que eu queria dizer: sem alma não há um grande jogador. Na decisão de 1978 contra o Vasco da Gama, ele tinha aquele impulso profético do gol. Rondinelli é um jogador de grande emoção, de grande coragem, de grande vontade de vencer, que crava no peito a estrela rubro-negra. Rondinelli é dono dessa mística da camisa rubro-negra, dono de uma torcida, de uma nação, de uma religião. Ele é o padre da religião apaixonante, ele é o ídolo de sangue da torcida”. Palavras de Nelson Rodrigues sobre o “Deus da Raça”, e é apenas o preâmbulo de uma grande história!

por André Felipe de Lima


Não é pretensão o título ali de cima. Sim, foi o zagueiro Rondinelli o responsável pelo início da maior era da história do Flamengo. Com o seu gol nos últimos momentos da espetacular final do Campeonato Carioca de 1978, contra o Vasco, Rondinelli, que hoje comemora seu aniversário, tornou-se a “pedra fundamental” de um longo período marcado pelas maiores glórias do time mais popular do Brasil.

Talvez, se Rondinelli não tivesse assinalado aquele gol, a história seria outra. Mas o “talvez” não coube na trajetória do zagueiro, que, após aquela conquista sensacional, foi elevado ao posto de “Deus da Raça” pelos fiéis torcedores do Flamengo.

Rondinelli é inesquecível para eles e para mim, um vascaíno, que sofri amargamente com aquele córner magistralmente batido pelo Zico, com endereço certo: a cabeça do Rondinelli. A subida canhestra do zagueiro na bola foi impiedosa com Leão. Que, com o seu notório “golpe de vista”, jamais imaginou que a pelota invadiria a rede cruzmaltina. Mas invadiu. E assim começou a história…

Rondinelli nasceu em São José do Rio Pardo, interior paulista, em 26 de abril de 1955, mas parece ser mais carioca que muitos que nasceram em um dos dois lados do Sumaré. Aprendeu a ser campeão desde cedo, e, obviamente, com o Flamengo. Foi bicampeão carioca de juvenil em 1972 e 73 e levantou o primeiro título profissional em 1974, o Campeonato Carioca, a primeira conquista daquela geração assombrosa.


Daquele título em diante, ver o nome de Rondinelli nas seleções da rodada dos jornais de segunda-feira era mais comum que feijão com arroz. E não havia botafoguense, vascaíno ou tricolor que torcesse o nariz para ele. O cara era bom mesmo. Logo, não escalá-lo em times da rodada corresponderia a uma perversa inveja dos rivais. Mão, portanto, à palmatória de todos, que se renderam ao Rondinelli.

Um dos seus fãs foi o técnico Carlos Froner: “É corajoso, dono de grande habilidade, bastante veloz e técnico. Bate quando acha que é preciso bater e pede calma aos companheiros na hora certa”. O gaúcho Froner sabia das coisas…

Rondinelli sempre foi um cara na dele. Tímido e avesso a elogios rasgados. Ficava vermelho quando os ouvia. Chegava a baixar a cabeça, como escreveu o repórter Luiz Augusto Chabassus, em 1976. Quem o levou para a Gávea foi o sergipano Velal, que jogou no Flamengo. Certo dia Velau (vejam só) decidiu montar uma oficina mecânica na cidade de Rondinelli. “Velal já havia trazido o Zanata (conterrâneo de Rondinelli) para o Flamengo. Fiquei muito empolgado quando, em 1970, ele disse que eu também poderia fazer testes no Rio”. Foi recebido por Jouber, que o aprovou. A família estava ressabiada. Não queria que o menino morasse sozinho no Rio. O avô Silvio (sempre ele) é quem convenceu os pais a o deixarem seguir no Flamengo.

Deveria ter crescido mimado, afinal tem quatro irmãs, e ele o único homem. Era de classe média. Estudava, mas gostava mesmo é de jogar bola. Os pais, ao contrário de muitas biografias de outros craques, não se importavam muito se o menino trocava as matinês de cinema nas tardes do fim de semana por uma pelada na rua. “Eles não ligavam para o meu interesse pelo futebol. Achavam que ia continuar estudando. Em compensação, meu avô Silvio, que já morreu, sempre procurou me incentivar”, disse Rondinelli, em 1976.

O vovô Silvio era um italiano de Luca, cidade próxima a Roma. Torcia efusivamente pelo “vecchio” Palestra Itália, e fazia questão de “doutrinar” o neto com as maravilhas de que eram capazes os craques palestrinos, como Djalma Santos, Tupãzinho, Ademir da Guia, Dudu e Servílio. “Ele queria que eu fosse um craque como eles”. Haveria de ser, sem dúvida, mas precisaria percorrer um longo caminho na Gávea.

No Rio, Rondinelli morava na concentração do Morro da Viúva com todos os meninos de sua geração de ouro, entre eles Geraldo “assoviador”. O garoto promissor do Velau, do Jouber, do Modesto Bria e do Valter Miraglia tornou-se presente em 1974. E presente em todos os sentidos semânticos e saudáveis que a impoluta palavra sugere. Rondinelli foi presente para o Flamengo, em especial. “Foi aí, no início de 1974, que assinei meu contrato de profissional com o Flamengo. Passei a ganhar 4500 cruzeiros por mês. Aluguei com o Cantarele um apartamento na Praia do Flamengo e tudo ficou melhor”. Melhor ficou mesmo para o Flamengo, que passou a contar com o mais eficiente beque da cidade.

Todo rubro-negro que se preza idolatra Rondinelli. Tanto que em muitas escalações de “times dos sonhos” do Flamengo, ele aparece lá, na zaga, “brigando” com cobras como Domingos da Guia, Reyes, Pavão e Mozer.


Em novembro de 1979, o carioca Luiz Allan de Almeida, autor do livro “Rondinelli, o Deus da Raça”, da Editora Fusão, fez uma pesquisa entre as diversas torcidas do Flamengo na época para saber quem era o maior ídolo da moçada na ocasião. “Fiquei surpreso com o resultado: ele é mais ídolo do que o Zico. Por quê? Rondinelli dá a sensação de ser amador, de jogar por puro amor à camisa, coisa que você não encontra nos outros. É disso que a torcida gosta”, declarou o apaixonado rubro-negro Allan de Almeida.

O histórico de Rondinelli permite isso. Houve um Fla-Flu amistoso em 1977 (vejam bem, amistoso) em que Rivellino tentou dar um balãozinho no zagueiro, na entrada da área, mas a coragem do beque foi impressionante. Rondinelli mergulhou nos pés do tricolor, e de cabeça tomou-lhe a bola. No final, deu Flamengo, pelo placar de 3 a 0.

“Sou sempre assim: na área, não brinco. Dou bico pra cima, para os lados, quero ver a bola sempre longe do gol do Cantarele. Agora, se der para sair jogando, sem trazer qualquer perigo para o nosso goleiro, então saio. Numa bola dividida, por exemplo, vou para ganhar. Ou paro a jogada ou saio com a bola dominada. Um adversário dificilmente leva vantagem comigo. Pensa bem: sou um dos últimos jogadores pela frente de um atacante. Depois de mim, só tem o Cantarele ou, no máximo, um jogador do Flamengo que venha na minha cobertura. E, às vezes, esse meu companheiro já chega meio vendido no lance. Então, ou ganho, ou paro a jogada. Mas sem violência. Decisão é uma coisa, violência é outra”, ensinou o craque, em entrevista realizada em 1977, com o saudoso repórter Raul Quadros.

MEU ‘MALVADO’ VASCAÍNO FAVORITO

O maior adversário de Rondinelli não foi propriamente um time de futebol. Foi um centroavante. Foi Roberto Dinamite. Os dois estiveram frente a frente pela primeira vez numa ensolarada manhã de sábado, em dezembro de 1972, decisão do Campeonato Carioca de juvenil. A peleja aconteceu no velho estádio da Gávea. O Flamengo venceu de 2 a 0 e ficou com o título. “O jogo ainda estava uma zero e o Vasco pressionava. O time deles era muito bom. O Fumanchu era o ponta-direita, o Gaúcho jogava na frente ao lado do Roberto. Sei que houve um córner, nós dois pulamos e ele me deu uma cotovelada. Quando caímos, quase rolando no chão, ele me deu uma cusparada. Nem vacilei, pisei na perna dele”.


O lance desdobrou-se em uma onda do Dinamite, que rolou no gramado, “urrando” de dor. O objetivo, claro, era convencer o juiz a marcar o pênalti. Mas o árbitro comeu mosca, ou seja, não viu o lance. Quatro anos depois, a mesma cena se repetiria com os dois quase se engalfinhando na decisão do terceiro turno do Campeonato Carioca de 76. Dessa vez o juiz viu. Era a forra do vascaíno.

“Com um minuto de jogo, o Vasco deu um ataque, e acompanhei o Roberto até a linha de fundo, protegendo a bola. Ele chutou, pensei, o juiz deu tiro de meta. Só que caímos fora do campo e tivemos um início de briga ali mesmo. O Cantarele havia batido o tiro de meta, o Renê (zagueiro vascaíno) já havia dominado a bola no meio de campo e eu, sentindo que havia levado a pior na briga, parti pra cima do Roberto, dando-lhe uma cotovelada. O Agomar (juiz Agomar Martins, que passou a cantar bolero em Porto Alegre) estava em cima do lance e deu o pênalti”.

Roberto recordou a jogada, e descreveu o final: “Bom, assim que levei a cotovelada, me atirei no chão. Era o que tinha de fazer, pô!, já que estava na área do Flamengo e o pênalti beneficiaria o Vasco. O Rondinelli ficou mais bravo ainda e disse ao Agomar que ele teria de nos expulsar, não marcar o pênalti. Bom, acabei batendo o pênalti e fazendo o gol”.

O jogo terminou 1 a 1, com Geraldo descontando para o Flamengo. Na decisão por pênaltis, o Vasco derrotou o adversário. Consumou-se, portanto, a doce vingança do Dinamite.

Os jogos entre os dois sempre foram encarniçados. Dava gosto assistir Vasco e Flamengo no Maracanã; Roberto e Rondinelli se enfrentando era um colírio. Os dois hoje são bons amigos. A indispensável rinha dos gramados ficou no passado. Sem ela, afinal, o futebol fica insosso. Quando conseguem se encontrar para uma resenha, os dois riem de tudo. Inclusive das brigas e catimbas que fazem parte do dia a dia dos boleiros.

Sobre Rondinelli, Roberto sempre dizia: “É, sem dúvida, um dos maiores zagueiros que conheci. Provavelmente, o mais difícil de ser vencido”. Rondinelli costumava retribuir a gentileza do adversário e grande parceiro de histórias do Clássico dos Milhões: “Dificilmente ele vem com a bola dominada e, quando isso acontece, sai de baixo. Seu estilo é de jogar mais fixo, dentro da área. Qualquer vacilada, ele enfia a cabeça, mete a perna, o gol está feito. Por isso, eu procuro sempre me antecipar”.

Rondinelli foi sempre muito leal. Mostrava a sola dos pés, às vezes, claro. Mas qual zagueiro não bate às vezes? Zagueiro em campo abstrai qualquer laço afetivo, e parte para dentro de qualquer atacante metido a besta. Durante uma boa peleja não pode ser diferente. Futebol é arte, mas também tem lá sua dose de arrojo. Sem essa combinação, fica difícil sair do gramado com a vitória. Rondinelli dominava esse equilíbrio. Por isso, com ele na zaga, o Flamengo ficava mais tranquilo e as taças eram erguidas.

O sonho do velho Silvio se concretizou. Rondinelli foi mais que um craque. Um deus guerreiro dos rubro-negros. O “Deus da Raça”.

DE ‘CALU’ A DINAMITE, CONSTRUIU-SE A VOCAÇÃO DO GOL

No dia 13 de abril, Roberto Dinamite faz anos. O menino tímido superou duas complicadas cirurgias na infância e fez, na década de 1970, muitos meninos (como este pequenino jornalista) a se apaixonarem pelo Clube de Regatas Vasco da Gama… para sempre.

por André Felipe de Lima


“Apresenta uma morfologia ideal para ser o que é: ponta-de-lança nato. Forte e resistente, chega a parecer tão leve por causa da altura. DE qualquer maneira, é um jogador que se equilibra muito bem sobre as duas pernas e para derrubá-lo é preciso que o marcador ganhe impulso ou dificulte seu pé de apoio. Se desvantagem às vezes leva, é quando perde a noção do lugar favorito (direito). A sua força assenta na soma da massa física com velocidade (grandes passadas para atingir o gol), mas o melhor proveito vem do trabalho constante, do permanente castigo que representa para os zagueiros adversários, com aquele empenho infatigável e constante, nas boas e nas más, nas limpas e nas divididas. Golpeando sempre o mesmo ponto, Roberto é capaz de minar a resistência de qualquer um”. Jamais li, vi ou ouvi definição tão perfeita como essa escrita pelo incomparável repórter Geraldo Romualdo da Silva para o que representou nos gramados o cidadão Carlos Roberto de Oliveira, o inesquecível Roberto Dinamite, o maior artilheiro da história do Clube de Regatas Vasco da Gama.

“Vim do infantil de Caxias, gosto de música pop, soltar pipa, ler e garanto que o que aprendi não foi nada na escola, mas na luta pela sobrevivência, sofrendo e esperando: a pelada é que ensina o melhor e o pior”, disse o então garoto “Dinamite” ao repórter Geraldo Romualdo, em 1975, um ano após da primeira grande conquista nacional do Vasco.


Roberto era ainda menino. A infância e adolescência vividas no humilde bairro de São Bento, em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, onde nasceu na madrugada de 13 de abril de 1954, não foi fácil. De família pobre, com mais um irmão (José Antônio) e uma irmã (Ana Lúcia), o caçula Dinamite foi galgando degrau por degrau até chegar ao topo. E esse topo tem marca: Vasco.

O menino Calu, apelido que guarda desde a meninice, foi a alegria do batalhador Maia, seu pai, que tanto duro dava em uma repartição pública para sustentar a casa, mas que realizou no filho pródigo o sonho de um dia ser jogador de futebol. Sonho deste cronista e de muitos leitores dessas despretensiosas linhas biográficas. Maia disputava peladas como goleiro nas peladas empoeiradas e lamacentas de Caxias. Foi num daqueles campinhos de trave sem rede que Roberto começou a nascer.

Maia distraía-se sempre que uma moça bonita pintasse na linha lateral. Foi uma delas que o fez daquela pelada do Maia a mais memorável de todas. Foi, talvez, o pior desempenho dele em um jogo de futebol, mas certamente o mais sensacional gol que marcou com o seu coração. Do olhar maroto para a beira do campo, veio a carinhosa conversa fiada com moça Neuza. O romance começou, e como escreveu Paulo César Pinto, biógrafo de Dinamite, “tinha Calu outro caminho que não o futebol?”.


O garoto logo na infância começou a compreender o que uma bola de futebol poderia fazer na vida de um menino humilde. Sonhava acordado com arquibancadas, bandeiras e o grito eloquente da torcida entoando seu nome: “Calu! Calu! Calu!”. O pequeno Roberto mal sabia que uma explosão de felicidade e amor o aguardaria anos depois, num campo mágico, histórico e mítico de São Cristóvão.

Nem mesmo as preocupantes cirurgias que fez aos oito (tumor na coxa esquerda) e aos 12 anos (princípio de osteomielite decorrente de uma pelada na rua) impediram que o jovem Calu consumasse o seu destino: o futebol transformaria o rapaz tímido e de poucas palavras no maior goleador que os cruz-maltinos conheceram.


Quem foi buscá-lo no modesto São Bento, time de peladas do bairro em que morava, foi o célebre treinador Gradim, olheiro da melhor estirpe e sabedor como poucos das coisas da bola. Gradim perambulava de pelada em pelada para pescar futuros craques. Pescou um graúdo. Em novembro de 1969, o magrelo Calu, com 15 anos, chegou à São Januário. Foi aprovado no teste e em um mês deixou a escolinha do clube para integrar o time juvenil sob o comando do velho Célio de Souza. Dali em diante só mesmo a definição do saudoso locutor Waldir Amaral para resumir o que representaria Roberto para a história do futebol: “A vocação do gol”.

Assim, nós, vascaínos, fomos aprendendo a gostar de futebol. A amar o Vasco. Graças às centenas de vezes que gritamos gol. Gol do nosso Calu. Gol do nosso menino explosão, amado e tão bem protegido pela querida Jurema. Gol de um gigante chamado Roberto Dinamite.

LEANDRO, O ESTETA DA BOLA

É bem provável que jamais apareça um lateral-direito como Leandro no Flamengo. Foi estupendo, um ídolo. Neste sábado, 17, o craque faz anos. Nas linhas abaixo, uma crônica sobre a trajetória do Leandro.

por André Felipe de Lima


— Olhe, primo, acho que você não vem treinar no Flamengo porque tem medo.

— Medo?! — indagou, contrariado, o outro primo, que completou a resposta com uma altivez comum aos que nasceram para brilhar:

— Se você for lá comigo perguntar a hora e o local do treino, venho hoje mesmo.

O garoto não se intimidou. Entrou no clube, com o primo a tiracolo, e realizou o primeiro treino com a camisa que jamais deixaria de vestir ao longo da carreira. O menino, hoje um ídolo inquestionável, chama-se José Leandro de Souza Ferreira e se tornaria uma espécie de Nilton Santos rubro-negro. Tanto ele quanto o “Enciclopédia” do Botafogo jamais vestiram outra camisa que não fosse a do clube do coração. No peito de Leandro bate o escudo do Flamengo, no de Nilton Santos, o do Botafogo. Nenhum outro brasão rouba-lhes o amor.

Foi assim, em 1977, com essa compreensível empáfia juvenil, que Leandro ingressou no clube da Gávea para tornar-se o melhor lateral-direito da história do Flamengo, superando na mesma posição outro “imortal” rubro-negro, o grande Biguá, mítico craque dos anos de 1940 e de 50.

Neste sábado, dia 17, Leandro, um dos mais extraordinários jogadores que o futebol brasileiro já produziu, comemora mais um ano de vida.

Escrevo sobre Leandro porque o que vi jogar e posso afirmar sem pestanejar, meus amigos: era um assombro com a bola nos pés. Polivalente, jogava na lateral, na zaga, no meio-campo e até mesmo no ataque, lá na ponta-esquerda, se assim preciso fosse. Era um jogador completo. Verdadeiramente incomparável. Fez parte da maior geração de craques que o Flamengo já teve, com Zico, Adílio, Júnior, Andrade, Tita, Mozer, Marinho, Lico, Raul, Nunes. Um timaço campeão mundial em 1981. Um time que mais se parecia com uma galeria de arte. Cada craque, uma genuína obra-prima. Naquele mesmo ano, o das maiores glórias do Flamengo em todos os tempos, Leandro declarou: “Até hoje ainda sou um torcedor. Não me importo com o número, com a posição. Minha alegria é entrar e sentir a força dessa torcida”.


O que faziam aquelas pernas arqueadas, meus amigos, era algo fora do comum. Leandro driblava com estilo, técnica, maestria. Sim, Leandro foi um esteta da bola. Uma espécie rara de se ver nos gramados de hoje em dia. Sejam os daqui como os lá de fora. Na arquibancada, em jogos do Flamengo contra seus principais rivais, era comum ouvir o seguinte quando Leandro tocava na bola: “Vai jogar bem assim lá no cacete!”. Eu mesmo ouvi isso várias vezes no Maracanã ou em um bar debatendo sobre a rodada do fim de semana.

Leandro parecia deslizar sobre a grama tal a capacidade que ostentava para dominar a bola com os dois pés. Um ambidestro que Zico (sim, o Zico, um dos seus mais ardorosos fãs) definia como fora de série. Olhá-lo com a pelota de pé em pé nos iludia. Vê-lo jogar bola fazia com que acreditássemos ser o futebol a coisa mais fácil de fazer no mundo. Bola e Leandro eram, definitivamente, irmãos siameses, simplesmente indissociáveis.

Quando Leandro estreou pelos profissionais do Flamengo, em fevereiro de 1979, não imaginava que chegaria ao topo tão rapidamente e de forma fulgurante a ponto de muitos (este jornalista, inclusive) achá-lo o “melhor lateral-direito” da história do futebol brasileiro. Superior, sobretudo, a dois monstros sagrados da posição: Djalma Santos e Carlos Alberto Torres, que conquistaram, contudo, o que ele jamais conquistou: Copa do Mundo. Será que os dois “cobras” eram tão (ou mais) completos que Leandro? A polêmica é a alma da paixão futebolística. Solte-se, portanto, no ar o saudável debate.

O caminho de Leandro a partir de 1979 não foi moleza. Além de disputar a posição com Toninho, sofrera com várias contusões em 1980, ano do primeiro título nacional do Flamengo. No seguinte, durante o carnaval, seu Puma capotou, e por muito pouco não o matou. Mas as suas inconfundíveis pernas arqueadas, que tantas alegrias proporcionaram, pareciam ser as algozes do craque.


Pernas que representavam um manancial de felicidade pareciam escravizá-lo. Por causa delas (ou das dores que elas provocavam), Leandro por pouco não teve o passe negociado ao Internacional de Porto Alegre, em 1980. O negócio só não foi concretizado porque os médicos do clube gaúcho alegaram que Leandro sofria de uma calcificação incurável no joelho, uma sequela de uma operação de meniscos. Vaticinaram os “doutores” do Beira-Rio: “Esse aí vai ter vida curta no futebol”. Erraram, e feio, para a sorte do Flamengo.

Embora com muito futebol para dar e vender, Leandro sofria dores homéricas. Sempre as sentiu. Desde que começara no Flamengo. Disputou a Copa do Mundo de 1982, jogando naquela que está entre as quatro maiores Seleções Brasileiras da história, ao lado das de 1950, de 58 e de 70. Como nós todos, sofreu com a derrota para os italianos, mas também sofreu com as dores nos joelhos, das quais jamais se livrou. Não me recordo de um jogador de futebol sofrer longos e tortuosos anos com dor. O pior dos convívios, diria. Reinaldo, do Atlético Mineiro, talvez sejam um exemplo igual ao do Leandro. Mas, mesmo assim, não é comum.

Na Copa seguinte, em 1986, Leandro pediu ao treinador Telê Santana para jogar na zaga. Os joelhos já não mais aguentavam. O tal “Mal de Cowboy” estava liquidando-o. O futebol de Leandro estava lamentavelmente acabando. “Cada partida que Leandro disputa é uma obra de arte do departamento médico do Flamengo”, dizia Giuseppe Taranto, médico do clube em 1987. Segundo Taranto, só havia, segundo os conceitos da Ortopedia da época, duas maneiras para corrigir pernas arqueadas como as de Leandro: a primeira opção seria entre dois e cinco anos, ou seja, usar gesso ou dormir com aparelho ortopédico nesta faixa etária; o segundo recurso, bem mais penoso, consistiria em, até os dez anos, submeter-se a uma cirurgia que quebraria as pernas e as engessaria para corrigi-las. Leandro perdera as duas possibilidades. Talvez, não tenha se arrependido de perdê-las.

Em 1983, o craque dava sinais de que o esgotamento físico também o atingira mentalmente. Leandro dizia em entrevistas que desejava abandonar a carreira em 1986, logo o ano da Copa. Nem chegaria, portanto, aos 30 anos.

A vida pessoal vinha sendo inadvertidamente invadida por parte da imprensa. Prato cheio para torcedores de clubes rivais, que o perseguiam insistentemente, com gritos e até faixas ofensivas contra a honra de Leandro. Isso o deixava muito triste.


Após um jogo contra o Bangu, vencido pelo Flamengo, no final de 1983, torcedores do alvirrubro suburbano xingaram Leandro, que, no vestiário, apenas chorou. Afinal, era um ídolo do futebol nacional e não apenas do Flamengo. O mínimo que exigia dos torcedores era respeito.

Famoso, bom de bola e boa pinta, Leandro despertava a inveja alheia com muita facilidade e o suspiro de muitas moças de boas (e famosas) famílias. Neuzinha Brizola, por exemplo, filha do político Leonel Brizola, foi mais famosa pelo estilo, digamos, extrovertido que propriamente por ser filha do ex-governador do Rio. Foi ela também uma “fã” do Leandro a ponto de falar publicamente que esperava um filho dele. As filhas de políticos pareciam se alvoroçar por ele. Andréa Neves, irmã de Aécio Neves e, portanto, neta do ex-presidente Tancredo, foi outra figura pública que teve, em 1985, o nome proximamente associado ao do ídolo rubro-negro. Tornou-se corriqueiro falarem bem ou mal do Leandro, que era uma figura para lá de popular. Especulação com o seu nome era um dos esportes preferidos nos tempos em que brilhou com a camisa do Flamengo. Da arquibancada ou das páginas dos jornais, forjou-se o impoluto ídolo, mas poucos quiseram compreender ou mesmo conhecer o homem Leandro e, sobretudo, os ditames que o guiava em meio ao turbilhão do sucesso.

Semanas antes de a Copa do Mundo de 1986 começar no México, Leandro e Renato Gaúcho tomaram um chá de sumiço e voltaram de madrugada para a concentração da Seleção. Estavam em uma discoteca. O técnico Telê Santana, por mais que gostasse dos dois, não teve escolha e os cortou do escrete. Cortaria (é verdade…) apenas Renato, mas Leandro, demonstrando um senso de solidariedade e justiça, pediu a Telê que o cortasse também. Telê resistiu, afinal era fã incondicional de Leandro, como jogador e, sobretudo, como um homem com caráter irrepreensível.


Telê admirava o espírito amigo que Leandro sempre externou aos companheiros. Fosse no Flamengo ou na Seleção, o craque, embora muito tímido, era bacana com todos. Tele se preocupava com ele como se fosse seu próprio filho, mas não abria mão de tê-lo, como na Copa de 82, na lateral-direita. Mas Leandro não queria mais jogar ali por conta das intensas dores no joelho, especialmente o da perna direita. Preferia manter-se na zaga, na qual o jogo era mais lento e menos penoso para suas combalidas pernas. Introvertido, Leandro raramente (ou nunca, segundo a imprensa) tocava no assunto com Telê. Sem o diálogo, preferiu deixar a Seleção. “Não estávamos de porre, embora houvéssemos bebido. Se o corte era necessário, os dois deveriam ter sido cortados”, ponderara Leandro em uma das diversas entrevistas que concedeu após o episódio com Renato.

Bem antes de Telê saber, o desejo de Leandro em não mais ser lateral foi dito, em primeira mão, ao repórter Ronaldo Castro, que trabalhava na Rádio Tupi: “Não estou resistindo jogar na lateral. Já não tenho pique suficiente para ir e vir, meu joelho dói muito e não aguenta o esforço dos treinos físicos. Não posso ser lateral. Acho que vou embora porque Telê não me aceitará como zagueiro-central.”

Na noite do dia 8 de maio de 1986, Leandro estava devidamente vestido com o uniforme formal da CBF e com as malas prontas para viajar com a delegação da Seleção rumo à Toluca, no México. Na porta do apartamento em que morava com o primo Raimundo Nonato, que era contabilista da Varig, e o amigo José Marcos, o “Babau”, que era dono de uma loja de fotocópias, virou-se para Nonato e o amigo Vaguinho, presente no local, e exclamou: “Não vou mais!”. Vaguinho, sem entender patavina do que dissera o jogador, questionou: “Não vai para onde, Leandro?”. O craque foi pontual: “Para o México”.

Zico e Júnior, que já estavam no aeroporto, foram ao encontro de Leandro levados por um atônito Nonato. Zico argumentara com Leandro que ele próprio também representava uma inquietante incerteza na Copa. Estava mal fisicamente, mas que mesmo assim desejava estar no México. Leandro não coadunou com a tese do Zico. Os dois teriam se emocionado durante a conversa, mas Leandro mostrava-se inflexível. “Respeitem a minha decisão. Não posso ser lateral, não suportei o que foi feito com Renato e não me sinto em condições de falar com Telê”. Júnior esboçou uma última tentativa para que Leandro mudasse de opinião: “E seus companheiros de 1982? Temos tudo para conquistar a Copa, mas sem você fica bem mais difícil”. Não houve discurso que fizesse Leandro mudar de ideia. Naquela noite, o vôo 1046 da Varig decolaria com uma poltrona vazia.

Que pena Leandro não ter conversado abertamente com Telê sobre a possibilidade de jogar como beque na Copa de 86. Pena, sim, porque, caso ambos, ele e Renato, estivessem no México, o Brasil dificilmente deixaria de ir, pelo menos, à final.

Ao saudoso Tim Lopes e a José Antônio Gerheim, ambos, na ocasião, repórteres da revista Placar, Leandro desabafou: “Olha, sou muito fechado. Sofro, guardo tudo para mim, mas tem uma hora que não dá para segurar. Fui o culpado pelo que aconteceu naquele dia em que chegamos de madrugada à Toca da Raposa. Havíamos saído e, num determinado momento, Renato queria ir embora. Eu insisti para que ficássemos. Quando chegamos na Toca, havia três guardinha na porta e entramos. Ninguém pulou o muro, nem nada, ao contrário do que disseram. E evidentemente senti muito o corte de Renato. Senti e fiquei magoado com Telê.”

O episódio com Telê seria superado anos depois, com os dois, inclusive, trabalhando juntos novamente, no Flamengo. “Criado na Gávea, Leandro desenvolveu uma técnica refinada e, mesmo mudando de posição por questões físicas, marcou sua passagem pelo Flamengo como um dos grandes craques que passaram pelo clube”, assim declarou Flávio Costa, outro grande treinador da história do futebol brasileiro, em junho de 1989, quando Leandro se preparava para retornar ao time após mais uma penosa recuperação cirúrgica em um dos joelhos.


(Foto: Marcelo Tabach)

Leandro, o herdeiro de Biguá e muito superior a Jadir, Toninho ou Léo Moura, outros que trilharam (com maestria) a lateral-direita rubro-negra, foi excepcional. Sequer recordo de alguma pixotada em campo protagonizada por ele. Talvez a única falha gritante de Leandro foi, como o próprio confessou em entrevistas, um gol contra, na final do Campeonato Carioca de juvenis, em 1978. Mas o que representa um gol contra diante de tudo o que Leandro fez em campo e o representa para a memória do futebol nacional?

Leandro sempre soube o que fazer com uma bola de futebol. Por isso, raramente errava: “Fui um moleque fissurado em bola. Joguei até de pé gessado em peladas. Quando não tinha com quem brincar, ficava treinando na parede, aprendendo a matar no peito, dominar. E joguei oito anos de futebol de salão, em Cabo Frio (no litoral do Estado do Rio, para onde foi morar com apenas um mês de idade). Isso tinha de funcionar”. Ora, e como funcionou!

Devemos agradecer, porém, ao modesto clube Tamoio, de Cabo Frio, por revelar o gênio Leandro, o querido “Peixe-frito”, como o chamava o locutor Waldyr Amaral. Agradecer por apresentar ao futebol o Leandrinho da dona Cleuza e do rubro-negro Elisário. O Leandro, ídolo eterno da torcida do Mengão. Leandro… o esteta da bola.

MODESTO BRIA, O ÍDOLO QUE FEZ DO FLAMENGO SUA VIDA

O grande Bria, pai do querido Antonio Henrique Bria Bria, faria anos nesta quinta-feira (8). Foi um dos maiores jogadores da história do Flamengo e até hoje é lembrado pelos torcedores, sobretudo os mais antigos. A seguir, uma breve biografia do grande craque do passado

por André Felipe de Lima


O repórter perguntou: “Que conseguiu você do futebol, Bria?”. Modesto Bria, centromédio extraordinário e ídolo do Flamengo nos anos de 1940, onde formou uma das mais famosas linhas médias da história ao lado de Biguá e Jayme de Almeida, respondeu com a humildade digna de um sábio tibetano e do próprio nome que assina: “Materialmente, quase nada. Apenas um terreninho em Teresópolis. Mas no Brasil obtive muita coisa: amigos que dinheiro algum no mundo pode comprar, um bom clube para trabalhar e um ótimo filho, Antônio Henrique, de 11 anos, que é brasileiro”.

Se os almanaques e pesquisas sobre a história do Flamengo estiverem corretos, Modesto Bria foi o primeiro craque paraguaio a vestir o manto rubro-negro.

Embora dissesse em entrevistas ser apenas “regular”, era um volante clássico, de toque refinado, que ligava a defesa ao ataque com passes precisos, a maioria deles nos pés de Zizinho, meia mais avançado daquele sensacional time tricampeão do Flamengo de 1942 a 44. Bria era peça-chave naquela engrenagem campeã. “Sempre fui centromédio. Não sabia jogar em outra posição”. Foi o jogo da final do campeonato de 1944, o que garantiu o “tri” sobre o Vasco, que mais emocionou Bria. “Vencemos o Vasco por 1 a 0, gol de Valido. Fiz a maior partida da minha vida”.

Aquele Flamengo era ofensivo à beça. Derrubara até mitos de que zagueiro não passava da linha do meio de campo para atacar o adversário. Balela, diria Bria. Domingos da Guia — talvez o maior de todos os beques que já produzimos no Brasil — subia bastante ao ataque. Era o Bria quem dava a cobertura, permanecendo na zaga. Deu tão certo a jogada que o Flamengo foi tricampeão do Rio, sem rivais à altura.

Nascido na paraguaia Encarnación, no dia 8 de março de 1922, Modesto Bria começou a jogar futebol em 1938, com 16 anos, no time amador do Nacional, na capital paraguaia, seu time do coração na infância. No ano seguinte, tornou-se profissional. Órfão de pai e arrimo da mãe, da irmã e do irmão, estudava para trabalhar no comércio. Não tinha muitas pretensões com o futebol. Isso, na adolescência. Mas o rapaz cresceu e mostrou a que veio. Era bom de bola. Defendeu a Seleção do Paraguai duas vezes. Permaneceu no Nacional até 1943, até o compositor e locutor esportivo Ary Barroso o descobrir durante uma viagem ao Paraguai. “Um dia [bendito dia!] Ary Barroso foi a Assunção. Viu-me jogar e ficou tão entusiasmado comigo que não teve dúvidas”.


Quem apresentou Bria ao Ary Barroso foi o tenente-coronel Sylvio Santa Rosa, adido militar no Paraguai e dirigente do Conselho Nacional de Educação Física local. Ary, que fazia um show no Teatro Nacional de Assunção, deu uma escapa durante a folga do palco e foi ver Modesto Bria jogar [e bem à beça!] pelo Paraguai contra a Argentina. O placar terminou 2 a 1 para o escrete de Bria. Ary encantou-se, invadiu o vestiário e o intimou a substituir o argentino Volante, que estava se aposentando no Flamengo. Pegaram um pequeno avião e chegaram ao Rio no dia 27 de agosto de 1943, uma sexta-feira.

Ao descer no Aeroporto Santos Dumont, Bria foi surpreendido por um mar de torcedores. Abraçaram o craque, beijaram e tiraram fotos ao lado dele. Bria já era ídolo mesmo sem entrar em campo. “Cheguei ao Rio e fiquei maravilhado com as belezas da cidade. Estou encantado com o pessoal do Flamengo. Estava cansado sexta-feira e apenas tomei meio litro de leite e dormi. Ontem [sábado], percorri toda a praia do Flamengo e vim à cidade [Centro do Rio] e à redação de A Noite”, disse Bria ao repórter do jornal, no dia seguinte a chegada ao Rio.

Mas o que poucos sabem é que a espetacular chegada de Bria ao Rio não foi mérito do Ary Barroso, como até hoje muitos acreditam. Antes mesmo de o compositor e flamenguista de quatro costados conhecer o craque, o Flamengo já nutria interesse por Bria, como revelou reportagem do jornal A Noite, de 31 de agosto de 1943, na qual um outro Ary [Fogaça], alto funcionário dos Correios e torcedor fanático do Flamengo, recebeu de um amigo de Assunção recortes de jornal que exaltavam o jogador. Ele não pestanejou, falou com o técnico Flávio Costa e enviou os recortes de jornais a Alfredo Curvelo, cartola do Flamengo. Um repórter do jornal A Noite acompanhou o caso e chegou a redigir o texto de um telegrama de Ary Fogaça a Santa Rosa, de quem o funcionário dos Correios era muito amigo. Santa Rosa veio ao Rio e foi apresentado a Curvelo.

Encantado com o que lera e ouvira sobre Bria, Curvelo e o presidente do Flamengo, Dario Melo Pinto, autorizaram Santa Rosa a iniciar as negociações com o Nacional. Ou seja, a vinda de Bria com Ary Barroso foi apenas fruto de uma reportagem sensacionalista do matutino O Jornal, cuja seção de esportes estava sob o comando do compositor e locutor esportivo. O espetáculo marqueteiro promovido por Ary Barroso deu certo. Centenas de torcedores foram ao aeroporto receber o jogador e a versão falaciosa de que Ary Barroso trouxera Bria “no grito” prevalece até hoje. “Foi o que de mais emocionante poderia ter havido. O Flamengo teria que enfrentar o Fluminense, nessa semana. O jogo era no domingo e praticamente estávamos em cima da hora. Viemos de teco-teco, um aviãozinho de apenas três lugares, eu, Ary Barroso e, obviamente, o piloto”.


Biguá, Bria e Jayme de Almeida

O craque custou ao rubro-negro noventa mil cruzeiros entre passe e luvas. Dinheiro pra chuchu naquela época, que obrigou ao Flamengo recorrer a um empréstimo do Banco do Brasil, cuja última parcela foi paga somente em janeiro de 1944.

O passe de Bria estava bastante concorrido. Além do Flamengo, o Gimnasia y Esgrima, da Argentina, queria o centromédio. O Nacional recusou a oferta por considerá-la baixa. Mas outro argentino quase atropelou o clube brasileiro. O River Plate oferecera 150 mil cruzeiros. Mas como a remessa do sinal demorava a chegar por conta de entraves burocráticos, o Nacional optou pela oferta do Flamengo.

No dia 12, Bria estreou contra o Fluminense, em jogo que terminou empatado em 2 a 2, Perácio marcou os dois gols do rubro-negro, com Invernizzi e Carreiro descontaram para o tricolor. A crônica esportiva escreveu que Bria jogou bem, com passes precisos, ótimo posicionamento, mas com muito trabalho para marcar o meia Tim. Não era para menos. Tim foi um jogador mágico.

Outra informação pouco conhecida é que o coronel Santa Rosa tinha outro endereço programado para Bria no Rio de Janeiro: as Laranjeiras. A sorte ajudou, emperrando a ambição milionária do River Plate e o ligeiro Ary Barroso tratou logo de embarcar o craque em um teco-teco rumo à Gávea.

Bria pensara jogar apenas dois ou três anos pelo Flamengo. Mudara radicalmente de ideia. Descobria ser a Gávea o seu segundo lar. Construíra em seguida uma linda família. Por dez anos defendeu o Flamengo. O amor pelo clube preto e vermelho o completava na alma. Foram registrados 360 jogos pelo rubro-negro e oito gols contabilizados. Chegou a ter o passe emprestado ao Santa Cruz de Recife, em 1952, mas a paixão pelo Flamengo era mais forte. Voltou à Gávea no mesmo ano para encerrar a carreira, cedendo a posição para outro magnífico volante da história do Flamengo: Dequinha. “Era um tempo bom. A vida era mais tranquila e o jogador vivia mais. Nas vésperas dos jogos recebíamos a visita de amigos cantores que apareciam espontaneamente para nos ajudar a superar a expectativa. Orlando Silva, Ciro Monteiro e muitos outros cantores rubro-negros da época ficavam conosco até tarde. Eu, Biguá, Zizinho e Pirilo praticamente morávamos na concentração”.

Atendendo ao pedido do então presidente do Flamengo Gilberto Cardoso, Bria, que estava distante do futebol após pendurar as chuteiras, tornou-se treinador dos juvenis em 1955 após uma breve passagem pelo Cerro Porteño. Conquistou um tricampeonato carioca da categoria dirigindo a garotada. Em seguida, foi auxiliar do patrício Fleitas Solich e de Flávio Costa no time principal. Treinou o Ipiranga, de Salvador, mas foi uma página decepcionante para ele. “Fizeram-me pedir um ano de licença ao Flamengo e no fim de dois meses puseram-me no olho da rua, sem respeitar nenhum dos compromissos assumidos. Sorte que imediatamente o Botafogo de lá mesmo da Bahia contratou os meus serviços e não precisei voltar correndo e pedir para o Flamengo interromper a licença já concedida. E estou certo de que os dirigentes do Botafogo baiano não se arrependeram do apoio que me deram, em momento tão difícil”.

Tempos depois, foi um dos responsáveis pela formação de Zico, o maior ídolo do Flamengo em todos os tempos. “Fui eu que busquei o Solich no Paraguai. Busquei também o Benítez, Garcia e Reyes, outros paraguaios que se deram bem na Gávea”. Dizia ter sido Zizinho o melhor jogador que viu jogar pelo Flamengo. Abaixo dele Gérson e Zico. “Na minha posição, o que mais me agradou foi Dequinha, exatamente meu substituto quando parei de jogar”.


Após a morte da esposa Ivone, Bria casou-se novamente. Antônio Henrique é o único filho do primeiro casamento. “Meu filho é técnico em computação eletrônica e trabalha para uma das grandes organizações bancárias do Brasil. Ele e minha nora me deram uma segunda Ivone, a minha netinha. E olhe que podem me chamar de vovô babão como quiserem, mas duvido que exista uma menininha tão linda em todo o universo como a minha netinha”, contou Bria, em entrevista concedida em 1971 para a revista especial “Grandes Clubes Brasileiros/ Flamengo”.

Teve mais dois filhos. Morava em Copacabana e mantinha um sítio em Bananal, no interior paulista. Foi um dos funcionários mais antigos do Flamengo. Trabalhou no clube por mais de 50 anos. Seu prazer era passar o dia na Gávea. Quando podia, ia ao consulado do Paraguai saber das notícias da terra natal. Ao repórter Cláudio Arreguy, confessou em 1992: “Sou meio brasileiro e meio paraguaio. Se as duas seleções se enfrentam, fico dividido. Acabo torcendo só um pouco para o Paraguai. Sou primo-irmão do presidente do Paraguai [general Andrés Rodriguez, que se manteve no poder entre 1989 e 1993]. Nossas mães eram irmãs. Foi minha mãe quem o colocou no quartel. Mas não temos mais contato nenhum. Aliás, há seis anos não vou lá”.

Sentia saudade dos tempos de jogador. Confessava isso aos repórteres e aos mais próximos. “Muitas, mas muitas saudades mesmo. Gostaria de poder retornar à idade que tinha para poder jogar futebol”. Assim Bria resumia sua maior paixão: “O Flamengo é uma vida. Ser Flamengo é um nó na garganta, e nada mais”.

SAPATEIRO, ELE QUERIA SER AVIADOR, MAS SE TORNOU DJALMA SANTOS, O MAIOR

Em junho de 2012, tive o prazer de entrevistar Djalma e promover um emocionante reencontro dele com Masopust, o maior craque tcheco da história. Ambos não se viam desde a final da Copa de 62. Abaixo, a biografia de Djalma Santos, que publicaríamos no extinto projeto da enciclopédia Ídolos-Dicionário dos Craques

por André Felipe de Lima


O menino pobre tinha um sonho. Todo menino sonha. Uns querem ser médico, outros advogado, alguns escolhem, contudo, as profissões mais improváveis. E aquele menino tinha um anseio pouco comum. Queria ser aviador. O pai Sebastião dos Santos, chefe de uma família modesta, com parcos recursos financeiros, sugeria outra carreira para o garoto, alertando-o para a vida difícil que ronda a porta de quem é negro e assalariado no Brasil. “Militar é melhor, filho”. O menino fazia ouvidos moucos. Toda a vez que olhava para o céu imaginava-se no comando de um jato. Mas se o devaneio insistia, ele acordava. Ecoava a voz do pai. Ademais, tinha mais um sapato para consertar e nada de perder tempo.

O menino sobre o qual escrevemos foi sapateiro. Quando não mexia com sapatos, vendia pipoca em portas de circo. Trabalhava de forma incansável, apesar da bronquite crônica decorrente de uma pneumonia, para juntar um dinheirinho e pagar, quem sabe, o tão acalentado curso de aviação.

Em meio a uma montoeira de sapatos, o menino feriu a mão direita. Não podia ser mais sapateiro e tampouco piloto. O sonho, já muito longínquo, tornou-se impossível. Acabou. E foi regozijar-se jogando bola no time de várzea chamado Internacional, o da Parada Inglesa, bairro da zona norte paulistana. Gostava de jogar bola, mas não tinha nenhuma pretensão quanto a isso. Nunca se imaginou no gramado de um estádio de futebol. Seu sonho era o céu. Mas não deu.

Foi numa daquelas peladas do Inter da Parada Inglesa que o garoto que sonhava ser aviador, então com 11 anos, conheceu Bruno. O amigo, esse, queria mesmo é ser jogador de futebol. Estava inclusive na Portuguesa de Desportos. E sugeriu que fossem juntos à sede da Lusa. Talvez houvesse uma oportunidade para o colega, que vinha jogando bem na várzea, esquecer de vez aquela história de avião. O garoto pensou: “Na Portuguesa poderei permanecer na sapataria e continuar a juntar dinheiro para o curso de aviador…”. O sonho persistia. Já havia feito testes no C.A. Ypiranga e até no Corinthians, mas acabou mesmo fincando pé na Lusa, em 1948.


Eis o preâmbulo daquele que se tornaria o maior lateral-direito de todos os tempos no mundo: Djalma Santos. Ídolo da Portuguesa de Desportos, do Palmeiras e do Atlético Paranaense. Ídolo imortalizado pelas jogadas geniais; pelos quase 100 jogos com a camisa da seleção brasileira e pelas duas Copas do Mundo conquistadas.

Filho de Sebastião com Norma Nogueira dos Santos, Djalma Santos, cujo nome que consta na certidão de nascimento é Dejalma dos Santos, nasceu a 27 de fevereiro de 1929 na rua Prates, no Bom Retiro, bairro da pauliceia. Para o bem do futebol desistiu da sapataria e da carreira na aviação e estreou na Portuguesa no dia 9 de agosto de 1948, em uma partida do time de aspirantes contra o Corinthians. A escalação na ponta da língua [ou da caneta, como preferirem]: Ivo, Ferreirinha e Aníbal; Laudelino, Djalma Santos e Piloto; Constantino, Duílio, Alves, Farid e Oscar.

No time profissional, a estreia aconteceu dias depois em 16 de agosto, contra o Santos, que venceu de 3 a 2. A Lusa entrou em campo com Ivo, Lorico e Pedro; Silveira, Djalma Santos e Hélio; Renato, Pinga II, Nininho, Pinga I e Simão, os dois últimos autores dos gols da Portuguesa.

Reparem as duas escalações citadas acima. Vejam que Djalma Santos está como centromédio. Ou seja, a lateral-direita só entrou em sua vida quando a Portuguesa, no ano seguinte, contratou Brandãozinho, volante notório, também ídolo da história do clube Rubro-verde.

Djalma Santos já se insinuava acima da média dos outros jogadores. Tinha um fôlego incomum, embora fumasse como um sem número de jogadores famosos de sua época. Beber? Nem pensar. Era alérgico ao álcool.

Algo improvável nos idos de 1950 seria um lateral avançar até a intermediária adversária e centrar a bola para os atacantes. Ainda mais improvável, quando esse jogador cobrava laterais jogando a bola como se estivesse efetuando um cruzamento certeiro para o atacante cabecear contra a meta oposta. Isso tudo Djalma Santos fazia.

Com a Lusa conquistou os primeiros títulos na carreira. Foi campeão do torneio Rio-São Paulo, em 1952 e 55, e do Fita Azul, em 1951 e 1953. Disputou 453 jogos entre agosto de 1948 e maio de 1959 quando o Palmeiras pagou 2,7 milhões de cruzeiros, quantia extraordinária para a época. O pé-de-meia estava garantido. Já poderia casar. E o fez com Mercedes Campos dos Santos. Da união dos dois nasceu a única filha do casal, Laura Andreia.


Foi Djalma Santos o primeiro jogador a completar 100 jogos pela Portuguesa de Desportos. “Durante 11 anos joguei na Portuguesa e não fui campeão paulista. Sempre torço para a Portuguesinha um dia chegar lá. Ela merece”. O último jogo do craque pela Lusa ocorreu na vitória de 6 a 3 sobre o Palmeiras, em partida válida pelo torneio Rio-São Paulo e realizada no dia 29 de abril de 1959. Em campo estiveram: Carlos Alberto, Djalma Santos, Hermínio, Valter e Pedro; Odorico [Vilela] e Ocimar: Didi, Alfeu, Ditinho e Melão [Babá].

O locutor esportivo Fiori Gigliotti rebatizou Djalma Santos. Para ele, o craque representava “O Pedacinho Preto de Deus”. Levando ao pé da letra, a frase não é tão ortodoxa assim, ou será que o pedaço maior de Deus é branco? Mas o locutor o fez de boa fé impressionado com as jogadas do craque, como aquela em que Djalma levantava a bola com o pé esquerdo e cruzava com o direito para a área adversária. Gigliotti quis apenas reverenciar um dos baluartes da Primeira Academia do Verdão ao lado de Ademir da Guia, Dudu, Servílio de Jesus Filho, Tupãzinho, Geraldo Scotto… que time!

O début aconteceu diante do Comercial de Ribeirão Preto, pelo Paulistão, no dia 30 de maio de 1959. Ou seja, dias após assinar o contrato. Deu Palestra. 6 a 1.

Ao vestir Alviverde, o lateral conquistou tudo. Ou quase tudo. Levantou três vezes o troféu de campeão paulista [1959, 63 e 66]; uma do Rio-São Paulo [65] e outra do Torneio Roberto Gomes Pedrosa, a Taça Brasil, em 1967. Faltaram apenas a Taça Libertadores e o caneco do Mundial Interclubes.

A Libertadores esteve bem perto, mas Djalma atrasou mal uma bola para Valdir de Moraes. O atacante Spencer aproveitou a bobeada do lateral e marcou o gol que deu a vitória de 1 a 0 ao Peñarol, no estádio Centenário, no dia 4 de junho de 1961. No jogo seguinte, realizado sete dias depois, no Pacaembu, os uruguaios empataram em 1 a 1 e levaram a taça.

Foram quase dez anos no Parque Antarctica, de 1959 até o jogo de despedida, um amistoso contra o modesto Cianorte, no dia 28 de julho de 1968. Vitória apertada do Palmeiras de 4 a 3, na casa do adversário. Ao todo, Djalma disputou 498 jogos, venceu 295 e empatou 105, marcando apenas 10 gols pelo Alviverde. “Fiquei dez anos e dois meses na Lusa. Quando saí, foi a transferência mais cara da época, para o Palmeiras, depois da Copa de 1958. Fui vendido porque a Lusa comprou o Canindé. Eles tinham que reformar o estádio, mas não tinham grana. Além do Palmeiras, o Corinthians e o Fluminense queriam meu passe. Mas aí o Oswaldo Brandão, treinador, e o Julinho Botelho, ponta-direita que tinha jogado comigo, foram em casa. Eles estavam no Palmeiras e me convenceram. Me lembro que recebi muitos telefonemas e cartas na época dizendo: ‘O Palmeiras não aceita crioulo’. Acho que fui o primeiro crioulo que jogou lá. Fiquei dez anos e quatro meses”.


Reportagem do jornalista Armando de Castro, em 1961, reforça a versão de Djalma Santos. Castro comparava o Palmeiras daquele ano com o Palestra Itália do começo dos anos de 1940, que contrariou parte da elite paulistana por inserir dois jogadores negros em suas fileiras: Caieira e Og Moreira. “Tanto é que os dois mulatos conseguiram ótimo ambiente entre os ‘italianos’ que, no entanto, forçados pelo subconsciente, apelidaram um deles de Toscanini […] Vejam, no entanto, o esquadrão principal do Palmeiras de hoje. Estão ali dois mulatos [Zequinha e Chinesinho], fato que, como já frisamos, nada tem de inédito. Mas está ali também um negro retinto [Djalma Santos]. Os dois ‘rosadinhos’, vistos de longe, confundem-se com os demais. A impressão do público que lota as nossas praças de esporte é que o zagueiro-direito é o ‘astro-negro’ do Parque Antártica. E o público está certo”.

A Castro, Djalma reconheceu temer o ingresso no Palmeiras, mas que encontrou forças na criação que recebera dos pais para enfrentar qualquer discriminação de que fosse vítima. “Posso dizer que, graças aos meus pais, nunca me senti inibido na vida. Meus tempos de criança não foram sopa, não. Os ‘velhos’ davam duro e agente tinha que ajudar em alguma coisa. Mas não me lembro nem um dia em que eu me sentisse diminuído entre os meninos brancos ou mais ricos, tanto na escola como nos brinquedos de rua. Esse meu gênio folgazão vem desse tempo. Nas piadas, ninguém tirava farinha comigo. E nunca ouvi, nas conversas dos meus pais, nada que dissesse respeito a discriminação racial. Por isso, cresci assim e acho que brancos e negros, é tudo a mesma coisa.”. Na mesma entrevista, ao se referir sobre seu gosto por cinema, disse o seguinte sobre o filme “Carmen Jones”, de 1954, uma adaptação do teatro realizada pelo diretor Otto Preminger e que teve como atores principais, todos negros, a bela atriz Dorothy Dandridge e Harry Belafonte: “”E nunca um filme me impressionou tanto como aquele ‘Carmen Jones’. Um colosso. Só negros, todos eles dando um ‘show’ de arte. Fiquei orgulhoso dos meus ‘patrícios'”. Castro, então, indagou: “Você chama aos artistas de ‘patrícios’ só por terem a sua cor?”. O craque emendou a resposta: “Por isso mesmo. E principalmente para mostrar aos racistas ianques que os negros valem tanto como eles, talvez até mais do que eles”.

O tema “racismo” era recorrente na carreira de Djalma Santos. Ele aprendeu a lidar com o assunto, mas sem conformar-se: “Infelizmente, até aqui no Brasil, de vez em quando aparecem casos desses. Não me esqueço o que fizeram ao pugilista Luiz Inácio. E quem pode garantir que tal afronta não contribuiu para o declínio desse ex-campeão? Eu, por exemplo, sou um negro que gosta da raça mas que tem, graças a Deus, um bom ambiente entre os brancos. Por isso é que perdoei o que fizeram ao meu ‘patrício’ mas, confesso que sofri tanto quanto ele. Mas um dia, os negros hão de se unir e terão representantes seus nas Câmaras, nas Assembleias Legislativas, no Congresso Nacional. Aí então veremos […] Os diretores [do Palmeiras] me tratam carinhosamente. Os companheiros não passam sem as minhas ‘gozações’ e me chamam de ‘Negrão’. Mas esse ‘Negrão’ me soa tão bem que parece que eles estão me chamando de irmão”.

ENTRE OS MAIORES


A grande vitrine para Djalma Santos foi a seleção brasileira, com a qual encantou o planeta sendo quase uma unanimidade, ao lado de Garrincha, Pelé e Nilton Santos. Os três craques não estiveram, porém, no jogo que a Fifa organizou em 1963 para comemorar os 100 anos da criação do futebol e da Liga Inglesa. Mas Djalma Santos esteve. Foi o único jogar brasileiro convidado para vestir a camisa da seleção do “resto do mundo”, com Puskas, Yashin, Masopoust, Di Stefano, Eusébio e outras feras, que enfrentou o English team, que não teve como derrotar um elenco como aquele e acabou perdendo o jogo pelo placar de 2 a 1, diante de um estádio Wembley lotado.

Durante muitos anos acreditou-se que Djalma Santos havia superado a marca das 100 partidas com a seleção brasileira, mas, em 16 de setembro de 1997, a Fifa corrigiu a estatística do craque na seleção, concluindo que foram 98 e não 100 jogos vestindo a amarelinha. O equívoco estava na coleta de dados sobre o jogo Brasil e Paraguai realizado em 13 de novembro de 1955. O Brasil venceu de 3 a 0 e havia um Santos em campo, mas sim o Nilton, o enciclopédia, e não o Djalma. O jogo contra um combinado Berlim, Ulm e Frankfurt também perdeu o caráter oficial após a Federação alemã de futebol constatar que a seleção no gramado não era a da então Alemanha Ocidental. Djalma, dessa vez, estava em campo. De qualquer forma, o lateral marcou três gols com a camisa brasileira. Isso é insofismável.

A estreia de Djalma Santos no escrete canarinho aconteceu durante o empate sem gols com a seleção peruana, em 10 de abril de 1952, em Santiago. Jogo que valeu pelo campeonato pan-americano. Por causa daquele 0 a 0, o técnico Zezé Moreira, de quem Djalma sempre gostou e admirou, sofreu horrores. Torcida e imprensa não perdoaram o resultado pífio. Como a partida foi marcada na mesma época da Semana Santa, Zezé foi o “Judas” da vez. O “malharam” sem dó. Na verdade, faltou paciência e sobrou indelicadeza. Zezé e o seu escrete, que contava com o jovem talento Djalma Santos, venceram todos que viam pela frente. O primeiro a tombar foi o Panamá, com uma goleada de 5 a 0. A primeira vitória de Djalma com a amarelinha.


Em 1954, enfim, a primeira Copa do Mundo da vida do craque. A Suíça o aguardava. A seleção tinha um elenco poderoso, mas esbarrou no futebol mais consistente da Hungria, de Puskas, Kosics e Czibor. Djalma até marcou um gol, de pênalti, mas não impediu a avalanche dos húngaros, que venceram de 4 a 2. Se sobraram gols, sobrou também sopapo. O campo de futebol transformou-se em front e a pancadaria rolou solta. Zezé Moreira, com todos já no vestiário, nus e sob o chuveiro, foi flagrado pela câmara do então repórter fotográfico Armando Nogueira, que empunhou a máquina diante de um basculante e, mesmo sem saber o que a lente captava, obteve a foto de Zezé desferindo uma sapatada em um dirigente húngaro. A imagem é uma das mais emblemáticas do fotojornalismo esportivo.

Naquele mundial, Djalma Santos foi titular absoluto nas três partidas da seleção. Não podiam ignorá-lo, era o melhor lateral-direito em atividade no Brasil, embora não dispensasse, quando necessário, um jogo mais duro contra adversários desleais. Foi o caso de um camarada do Vasas, da Hungria, e que deu um pontapé em Zequinha em jogo contra o Palmeiras. Djalma alertou ao gringo que fora feia a jogada e que não precisava recorrer a tamanha brutalidade. Se o húngaro entendeu ou não o recado do brasileiro, é outra história. Ele riu do apelo de Djalma, que apenas fez um gesto de alerta. Haveria revide. Na primeira oportunidade, Djalma Santos o pegaria de jeito. E foi o que aconteceu. A bola chegou ao jogador do Vasas, que conseguiu escapar do bico da chuteira do brasileiro e, ainda por cima, cuspiu contra o lateral, mas Djalma correu atrás dele feito um doido e socou-lhe o estômago. A bola já estava longe dos dois e, ao que parece, os olhos do juiz também. O húngaro sentiu na pele que com Djalma não se devia brincar.

Mais quatro anos e outra Copa do Mundo. A da Suécia. Durante toda a campanha vitoriosa, De Sordi, lateral do São Paulo, foi o titular. Na véspera da final contra os suecos, o são-paulino sentiu uma contusão e em seu lugar Vicente Ítalo Feola escalou Djalma Santos, que simplesmente, jogando apenas uma partida, consagrou-se como o melhor da posição no Mundial. “Foi o maior momento da minha carreira aquela vitória sobre a Suécia. Na casa do adversário e com a presença do Rei na arquibancada”.

Mas porque Djalma Santos, tecnicamente superior ao então titular, foi preterido por Feola? Alberto Helena Jr. recupera uma história e tenta elucidar o caso. Teria sido racismo?

“Murmurava-se que, nas sombras da barração inexplicável, moviam-se velhos fantasmas que povoavam um relatório elaborado logo após o desastre da excursão brasileira à Europa em 56, segundo o qual jogador negro não era muito confiável nos momentos decisivos, quando se exigia raça e senso de responsabilidade. Quem acompanhara a carreira de Djalma, fosse na Portuguesa, fosse na seleção, não podia vê-lo enquadrado nessa preconceituosa categoria. Afinal, ainda estava viva na lembrança de todos a imagem heroica de Djalma, metendo a cabeça enfaixada por uma banda branca tingida de sangue, fruto de uma das tradicionais guerras entre brasileiros e uruguaios em sul-americano recente, entre a bola e o pé assassino de um avante adversário, sobre a risca, salvando gol certo.”

O episódio a que Helena Jr. se refere aconteceu em Londres e com o ponta-direita vascaíno Sabará, que desceu ao salão de chá do sofisticado Lane Park Hotel, onde a seleção estava concentrada, vestindo um macacão, calçando chinelos e com uma toalha enrolada no pescoço. Sabará, que queria apenas um despretensioso lanche no restaurante do hotel, indignou os preconceituosos ingleses que davam plantão no local. Uma prova cabal de racismo. A Confederação Brasileira de Desportos [CBD] abaixou a guarda diante de situação tão espúria na qual envolveram Sabará.

A nefanda tese dos ingleses e a subserviência dos cartolas da CBD foram desmanteladas quando o Brasil terminou aquele mundial de 58 com Didi, Garrincha, Djalma e Pelé, todos negros, considerados os melhores do escrete. Djalma Santos também viria a ser o melhor lateral-direito da Copa de 1962, no Chile, e Garrincha, o craque do torneio, pondo um ponto final naquele capítulo lamentável de preconceito de cor na história da seleção brasileira.


Sabará, Djalma, Garrincha, Didi… todos não mereciam aquilo. Djalma, por exemplo, dava o sangue pela seleção. No campeonato sul-americano de 1956, atirou-se com o rosto no pé do uruguaio Borges para impedir o gol adversário. O jogo foi 0 a 0, com o Uruguai praticamente campeão e o Brasil, lutando para sair do quarto lugar.

Djalma era fibra, impetuosidade, profissionalismo, lealdade. Dignidade. Jogou mais uma Copa, a da Inglaterra, em 1966, mas a CDB promoveu uma grande lambança política e o Brasil, com um time que não devia nada aos ingleses — que acabaram campeões —, voltou mais cedo para casa.

A despedida de Djalma Santos da seleção aconteceu no dia 9 de junho de 1968. Fizeram uma grande festa para ele. Merecida. Convidaram o Uruguai para o evento. Brasil 2 a 0, com Djalma sendo substituído por Carlos Alberto Torres, herdeiro da lateral-direita e o capita de 1970, no México.

O craque sempre foi muito sondado por cartolas de vários clubes. Mas um convite, feito em 1968, quando ainda defendia o Palmeiras, o agradou, só não pôde aceitá-lo imediatamente.

CAMPEÃO E ÍDOLO AOS 40 ANOS

O folclórico presidente do Atlético Paranaense, Jofre Cabral e Silva, viajou a São Paulo para buscar jogadores que pudessem ajudar o Furacão e recuperar o brilho. Havia 10 anos que o clube não conquistava sequer um título. Cabral baixou no Parque Antarctica e abordou Djalma Santos. Perguntou ao lateral se ele indicaria alguém do Verdão que estivesse dentro das condições orçamentárias do clube. Condições aquelas que não eram nada salutares. Djalma quis saber qual o salário. Cabral explicou os detalhes e o lateral se ofereceu para ajudar o Rubro-negro na trajetória rumo a um título. Mas com uma condição: só poderia ir no ano seguinte. Antes teria de cumprir contrato com o Palmeiras.

O cartola atleticano aceitou as condições e aguardou Djalma Santos, que, em 1969, com 40 anos de idade, chegava à Baixada. Apesar da idade, sobrava-lhe fôlego incomum. Quem o viu jogar pelo Atlético se espantava. Como poderia, um jogador com aquela idade, dar show em campo? Antes dele, é bom salientar, o craque Zizinho, ao defender o São Paulo em 1957, na casa dos 40, liderou o time ao título estadual. Que dizer de Romário? O baixinho de 40 anos artilheiro do competitivo campeonato brasileiro de 2006.

Djalma Santos tinha consciência de suas limitações físicas. Sábio, quando se deparava com um ponta arisco, veloz à beça, trocava de posição com o lateral-esquerdo Julio, bem mais jovem que ele e outro ídolo da torcida.

O tão sonhado título não veio em 1969, mas de 1970 não passava.

Com Bellini, também fechando o seu ciclo nos gramados, Sicupira, Julio, Alfredo Gottardi Júnior e Liminha, o maior lateral-direito de todos os tempos, enfim, ajudava ao Atlético quebrar o jejum de 12 anos sem títulos. Furacão, campeão estadual de 1970. Durante a inesquecível campanha, o Atlético ficou invicto em 12 partidas seguidas. O último título da majestosa carreira de Djalma Santos, ainda genial com a bola aos 41 anos de idade. E não é que o lateral marcou um gol em Atletiba… foi no jogo em que o Coritiba venceu de 2 a 1, gols de Krüger e Passarinho. O jogo foi realizado no estádio Belfort Duarte no dia 21 de janeiro de 1970.

Missão cumprida. Título na Baixada e Djalma Santos precisava abandonar os gramados. Não dava mais. As pernas já não o obedeciam como antes e nem as mãos. Não conseguia mais os cruzamentos certeiros e tampouco arremessar bolas na área adversária em cobranças de laterais.

Tornara-se um excelente cronista do jornal O Estado do Paraná, onde mantinha uma coluna e pela qual fez uma grave denúncia de havia doping no futebol paranaense. Exigia que tudo fosse investigado, como destacou em depoimento à revista Placar, de agosto de 1970. O alvo da denúncia foi o Grêmio Oeste, de Guarapuava, que, segundo Djalma, tinha até um bom time, mas com jogadores usuários de café com Dexamil e Pervetin, medicamentos na lista negra anti-doping. O alerta já havia sido feita à imprensa local por Pinducão, ex-massagista do time. Djalma, do alto de sua representatividade esportiva, apenas reforçou a necessidade de uma investigação mais rigorosa. A reação da torcida local, quando o Atlético enfrentou o Grêmio, em Guarapuava, foi a mais hostil possível. Dirigiam-se a Djalma e gritavam: “Macaco! Macaco!”.

Era realmente a hora de parar por ali. Ouvir ofensas como aquela não combina com o histórico exemplar e vitorioso de Djalma Santos.

O jogo derradeiro foi contra outro Grêmio, o de Porto Alegre e bem mais conhecido que o de Guarapuava, no dia 21 de janeiro de 1971, com Djalma prestes a completar 42 anos. Dizem que Djalma jogou como nunca, impedindo qualquer graça do ponta-esquerda gremista Loivo.

Foi a despedida oficial, mas no dia 30 de janeiro de 1972, Djalma Santos retornou ao gramado para defender a sua querida Portuguesa na vitória de 2 a 0 sobre o Zaire durante uma partida que marcou a inauguração do estádio do Canindé.

Djalma Santos nunca foi expulso de um jogo de futebol. Sempre afirmou que teve dois mestres que o orientaram na senda do profissionalismo: “Trabalhei com Osvaldo Brandão, que me cobrava em todos os aspectos. Ele queria eficiência no trabalho técnico e tático, quer fosse individual ou coletivamente. Mas é de Zezé Moreira que me recordo com mais alegria. Ele sabia como tratar um jogador”.

Zezé e Brandão deixaram ensinamentos que Djalma quis aplicar com os mais jovens. No Atlético Paranaense assumiu o comando do time profissional, mas por pouco tempo. Sentia mais prazer em orientar a garotada das divisões de base. Treinou equipes juvenis na Arábia Saudita, por quatro meses, e na Itália, onde morou por mais de um ano.

O grande ídolo vivia em Uberaba, no interior de Minas Gerais, ao lado da atual esposa, Esmeralda. Após a aposentadoria, escolheu a cidade mineira como retiro porque a primeira esposa, já falecida, tinha primas que moravam em Uberaba. Sempre que podia, Djalma passava férias por lá.

Coordenou por 11 anos o projeto “Bem de Rua, Bom de Bola”, em que participavam mais de 4 mil crianças da região. Tudo funcionava bem até o ex-ministro dos Transportes, Anderson Adauto, assumir a Prefeitura local. “O projeto foi desfeito por causa desse negócio de política. Não gosto de me meter, não sou de lado nenhum, sou de Uberaba. Mas acabou por quê? Para não deixar lembrança do antecessor”. Apesar do fim do projeto social, Djalma continua trabalhando com crianças, como monitor de esporte de núcleos de treinamento mantidos pelo Governo do Estado de Minas Gerais. Ser treinador sequer passou pela sua mente. “Meu caráter não dá para isso. O treinador precisa ser cara-de-pau”.

No dia 1 de julho de 2013, Djalma Santos foi internado no Hospital Hélio Anglotti, em Uberaba. O quadro de saúde agravou-se devido a uma grave pneumonia e a uma instabilidade hemodinâmica, levando-o ao óbito às 19h30 de 23 de julho.

Os ingleses o chamavam de Lord. Não era para menos. Djalma Santos foi o melhor lateral- direito da história do futebol mundial. Ídolo estelar do nosso olimpo futebolístico, Djalma completaria 88 anos nesta terça-feira, 27. Saudade deste grande ídolo, bicampeão mundial em 1958 e 62, com a seleção brasileira. Saudade do querido “Nariz”, como era carinhosamente chamado, porém com tom brincalhão, por Garrincha, Pelé e Nilton Santos nos bons tempos em que juntos vestiram a poderosa “amarelinha”…

Na foto abaixo, estou em pé, atrás do Djalma Santos e dos craques da antiga Tchecoslováquia, que disputaram a final da Copa do Mundo de 62. Djalma está entre Jelínek e Masopust, este o maior jogador tcheco da história.


Naquela tarde do dia 24 de junho de 2012, em São Paulo, bati um longo papo com todos para edição do documentário “Simplesmente passarinho”, sobre a vida de Garrincha. Entrevistas muito bacanas que, se um dia Deus quiser, poderemos conferir com o lançamento do filme. Foi um encontro emocionante. Eu conversava com Masopust e o seu tradutor no hall do hotel em que gravávamos as entrevistas. De forma inesperada, entra ali o Djalma Santos. Pedi licença ao Masopust e disse a ele que faria uma grande surpresa. Fui ao Djalma, apresentei-me e disse o mesmo. Levei-o ao Masopust. Os dois imediatamente se reconheceram e se abraçaram demoradamente. Masopust chorou comedidamente. Djalma também. Não se viam desde a final da Copa de 1962, no Chile. Foi um dos registros mais bonitos e emocionantes que o futebol proporcionou para mim.

Djalma Santos é um marco na história do futebol mundial. Todo domingo ele levantava às sete da manhã, calçava chuteiras e dirigia o carro por um percurso de cinco quilômetros, de sua casa, na rua Martim Eminato, no bairro de Tassio Rezende, até o Uberaba Country Club. Ele e mais outros veteranos participavam de uma pelada dominical sagrada. “A gente fica só chutando. Depois do jogo, a gente assa um peixe, toma cerveja e joga um baralhinho”. E o Djalma Santos? Como sempre, estava inteirinho da Silva.