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andré felipe de lima

GANDHI, A BOLA COMO PRINCÍPIO E A PAZ COMO FIM

por André Felipe de Lima


Gandhi faria anos hoje, dia 2. Nasceu em 1869. Quando nos lembramos de paz seu nome é sempre associado. Foi uma das personagens mais espetaculares da humanidade. Morreu vítima da violência que sempre combateu com amor e concórdia. Suas nobres palavras paralisavam tropas, desmontavam armas, e agindo assim ele conseguiu unir a Índia, tornando-a livre, independente sem que ele e seus seguidores usassem da violência para atingir a meta libertadora.

O grande arauto da paz gostava de futebol, e percebeu no esporte um caminho especial para fortalecer seu propósito. Quando estudara na Inglaterra, no final do século XIX, teve o primeiro contato com uma bola de futebol. Já jogara críquete na Índia. Esporte dos ricos. Isso o incomodava. Mas o futebol era diferente, era tendencialmente mais próximo do povo. Apaixonou-se pelo novo esporte. Esteve na África do Sul e lá ajudou a fundar os Passive Resisters Football Club (Resistentes Passivos Futebol Clube), um grupo de três times que trazia como emblema intocável o Satyagraha (a verdade firme).

Aquela viagem de Durban a Pretoria, nos trilhos do solo sul-africano, inspiraria o jovem advogado Mohandas Gandhi. Era 1893. Viajava em um vagão da primeira classe, mas teve de descer. “Este vagão é exclusivo para brancos”. Gandhi indignara-se com o que acabara de ouvir do guarda. Mas não esboçou reação, prosseguiu a viagem em um comboio de terceira classe, no qual havia hindus, como ele, e negros. Mas o pior estava por vir. Mesmo mostrando-se firme e inabalável, foi jogado para fora do trem. Não esboçara reação alguma. Nem com palavras tampouco violência. A noite lhe reservara ao frio da estação de Pitermaritzburg. Dormira ali, no chão, pensando em tudo que acabara de acontecer, porém com uma chama transformadora latente em sua alma. Começaria a mudar o mundo que o cercava naquele instante. O futebol pode ter sido um passo inicial para isso. Como gostava muito do esporte bretão, pressentia que este poderia ser útil no combate à intolerância e ao racismo que avançavam sobre a África do Sul.


O nome Passive Resisters Football Club brotou da obra de Leon Tolstói, de quem era ardoroso fã e amigo. A correspondência de Gandhi e Tolstói foi intensa e por anos. A grande alma hindu, filho de uma humilde família Vaishya; um advogado; encontrara seu paralelo russo, filho de um nobre rico, que renegara a vida aristocrática herdada para, em troca, dedicar-se à humanidade e ao humanismo.

Imbuído de todo amor e vigor, Gandhi não teve mais dúvidas de que o futebol poderia reverter (ou pelo menos ajudar a mudar) o racismo que impregnara a África do Sul. Durban, Johanesburgo e Pretoria presenciaram as primeiras pelejas do times do Resistentes Passivos. Não há registro se Gandhi entrara em campo em um daqueles jogos. Muito provavelmente sim. Mas demonstrava denodo como gestor do grupo futebolístico. A democracia que envolvia o futebol o seduziu. Brotava ali a semente da frondosa árvore cujas flores e folhas se espalhariam inicialmente pela Índia e depois pelo mundo inteiro. O futebol que Gandhi conheceu e ajudou a implantar na África do Sul tem sua parcela nisso tudo.

DA PELADA NASCEU JOEL CAMARGO, A ‘FERA’ MAIOR DO SALDANHA

por André Felipe de Lima


“Besouro!”. Gritou, durante uma pelada, um amigo para o menino Joel Camargo. “Essa é a sua chance!”, completou. E era mesmo a grande oportunidade do garoto, quando, em 1963, um tal Arnaldo de Oliveira, sócio da Portuguesa Santista, viu-o jogar bola pelo time de peladas “XV de Novembro”, do Marapé, bairro de Santos. A família Camargo morava na rua Antônio Bento de Amorim, no mesmo bairro da pelada que revelou Joel Camargo para o mundo. Quem não gostou muito da ideia foi dona Jordélia, a rigorosa mãe. O rapaz perderia o emprego na Delta Line, onde também trabalhava há anos o pai Antônio Camargo, e deixaria de estudar. Os diretores da Portuguesa cobriram o salário minguado do garoto. O sucesso seria inevitável. Muito bem preparado por Joaquim Feliz, Joel mostrava-se a cada treino um jogador fora da curva. Excepcional. O Santos pintou na jogada em 1964, e o levou para a Vila Belmiro a pedido o técnico Lula.

Da pelada das ruas do Marapé para as gramas dos estádios paulistas, foi mesmo um pulo. Joel passou a ganhar muito mais dinheiro jogando bola pelo Alvinegro praiano que no humilde emprego da Delta Line. A mãe deu a mão à palmatória. A profissão do filho era mesmo a de jogador de futebol. Silvio, o irmão caçula, então com 14 anos, lucrou com o sucesso do mano mais velho. A mamãe, até então “pé firme”, estava mais mansa, deixando-o também jogar bola. Todo mundo dizia que Silvio era melhor que Joel; que ele jogava mais bola e tal. Joel, em várias entrevistas, reconhecia isso, mas com o nariz meio torto. Os outros dois irmãos, o Jarbas e o Gilberto, também jogavam bola como Joel, que no iniciozinho de Santos tinha como principais conselheiros os consagrados Dalmo, Lima e Mauro Ramos de Oliveira. Na posição dele, a quarta zaga, havia dois medalhões: Haroldo e Calvet. Mas Joel também jogava às vezes como médio volante. Foi essa versatilidade que o levou à seleção brasileira num passe de mágica, e logo no primeiro ano de Santos.

Joel era um zagueiro estiloso, mas que não mandava recado aos atacantes. Se tivesse de descer a lenha em quem entrasse na área santista ou da seleção, não pestanejava. Todos esses, digamos, preceitos encantaram João Saldanha, o técnico da seleção brasileira que se preparava para a Copa do Mundo de 1970. João — pessoa maravilhosa, porém notório “pavio curto” — orgulhava-se de suas “feras”. Uma delas, talvez a “fera das feras”, o Joel Camargo, definido pelo João “Sem medo” como o “melhor quarto-zagueiro do mundo”. Com a saída de João da seleção por injustos e covardes motivos políticos, Joel estava com os dias contados na seleção. Por pouco foi sacado da lista do novo treinador Zagallo. Revelaria tempos depois que houve uma pressão enorme sobre os “queridos” do Saldanha. Lídio Toledo, médico da comissão técnica que assumiria o escrete após a saída de Saldanha, intimou-o a operar as amídalas, caso contrário, estaria fora da Copa. Com medo, Joel, que desistira da cirurgia anos antes, no Santos, acatou a ordem do médico e submeteu-se a desnecessária operação. Ficou fraco, comia muito pouco. Joel não tinha o mesmo vigor mostrado por outros jogadores do escrete. Apesar disso, o “melhor quarto-zagueiro do mundo” do Saldanha foi mantido na lista do Zagallo, porém amargaria a reserva na campanha do “Tri”, no México. Zagallo recuara o volante Piazza, que formaria a dupla de zaga com Brito. A imprensa, sobretudo a paulista, chiou. Joel Camargo estava no auge. Era, sem dúvida, o melhor zagueiro do país na ocasião. O “Açucareiro”, como o chamava o comentarista Mario Moraes, porque Joel simplesmente jogava bonito, como se deve jogar futebol. “Açucareiro” pelos braços abertos e a “doçura” pelos passes milimetricamente precisos. Joel tinha pinta de líbero. Sim, de líbero igualzinho ao alemão Beckenbauer, contemporâneo dele. Jogava na zaga, mas transitava pelo meio de campo. Jogava assim no Santos, sob o comando do Lula; chegou a jogar assim com Saldanha, na seleção, mas parou no Zagallo. Ali, o “líbero” Joel encontrou seu fim. Logo ele, o “Senador”, outro apelido alusivo à sua elegância com a bola nos pés.


Após a vitoriosa campanha na Copa do Mundo de 1970, a vida de Joel Camargo virou de pernas para o ar. A morte rondava-o. Não por doença, mas pelas curvas e ruas de Santos. Joel sofreu dois graves acidentes de carro. Um deles, em novembro daquele mesmo ano do Mundial, com o Opala vermelho que o zagueiro comprou com o “bicho” que recebeu pelo “Tri”. Na tragédia, duas mulheres morreram: Olga Queija e Dilma Muniz Cardoso. Joel seguiu desacordado para a Santa Casa de Santos. Durante dias esteve muito mal. Quebrou o nariz (àquela altura, o de menos) e fez cirurgias no joelho, no tornozelo e na clavícula. Por causa do acidente, foi condenado por homicídio culposo, mas cumpriu a pena de um ano e oito meses em liberdade.

Dentro de campo, não era mais o mesmo cracaço. Estava na reserva do Santos, mas ainda mantinha a imagem de jogador brioso. Após a tragédia automobilística, os cartolas do alvinegro decidiram que na Vila Belmiro não dava pé. Não negociaram o passe dele. Naquela circunstância, um jogador ainda jovem como Joel, o passe livre soaria como desprezo. E foi exatamente assim que aconteceu. A diretoria não o queria mais na Vila Belmiro. Segundo o jornal O Estado de S.Paulo, o diretor de futebol Katutoshi Ono encabeçou a lista dos insatisfeitos com Joel. Nela constariam até Mauro Ramos de Oliveira (que um dia foi referência para Joel) e Pepe, ídolos do clube: “Saí do clube por causa da minha imagem negativa. Se eu fosse encarado como um bonzinho, não ganharia o passe, porque ninguém libera jogador que está por cima. Acredito que julgaram que eu seria prejudicial se permanecesse lá”.

Ofereceram o passe de Joel Camargo ao futebol francês. Foi a primeira grande estrela do futebol brasileiro a defender, entre o final de 1971 e fevereiro de 1972, o hoje badalado e milionário Paris Saint Germain, dos arquimilionários Neymar, Cavani e Mbappé. Ficou poucos meses na capital francesa. A família, sobretudo a pequena Simone, com poucos meses, não se adaptava ao clima local. A menina vivia doente. A esposa e Joel tinham extrema dificuldade com o idioma. Joel ouvia em francês as reclamações do técnico. Respondia em sonoro palavreado de baixo calão português. Ele, esposa e filha estavam completamente isolados. Os cartolas franceses aceitaram o pedido do deprimido Joel, que deseja voltar ao Brasil após o término do curto contrato.

O regresso mostrou-se uma lástima para o craque. Nada dava certo. Esperava uma volta triunfal, com clubes disputando a tapa o seu passe e com a torcida entoando seu nome nas arquibancadas. Nada disso aconteceu. Longe disso, perambulava por times pequenos, de norte a sul do país. Em setembro de 1973, o CRB, de Alagoas, dispensou-o porque o jogador “havia viajado para destino ignorado” e “vinha cometendo indisciplinas”. Reportagem do jornal Folha de S.Paulo alegava que Joel mostrava um lado visceral preocupante. Brigava com companheiros do time, gritando com todos em treinos e jogos, e tentara até agredir José Casado, um cartola do clube.

Joel dizia que, desde que sofrera aqueles dois acidentes de carro, a opinião pública e a imprensa o perseguiam, acusando-o de ter dirigido embriagado. Negava ter bebido naquela noite do acidente e acusava os críticos de racismo. Foi ele um dos primeiros jogadores a tocar no assunto abertamente, e em alto e bom som, no futebol brasileiro. “O preconceito existe, e eu sempre falei disso. Na época do acidente, fui crucificado por causa da minha cor. Eu era o único que falava de preconceito naquela época. Meus colegas de time me chamavam de radical, mascarado, pediam pra eu deixar essas coisas pra lá. Fui dar entrevista uma vez e queriam que eu dissesse que não existia preconceito no Brasil. Porra, eu sou preto! Sei como as coisas funcionam. O pessoal diz que eu sou orgulhoso, mas, hoje em dia, para um crioulo como eu ser proprietário de um apartamento em edifício a uma quadra da praia, entrar no elevador e cruzar com o vizinho, é jogo duro. O preconceito de cor é do c… Não querem saber se eu fui jogador. Até a vizinhança aqui se acostumar comigo foram anos. Só quem é preto sabe. E ainda dizem que o negro é preconceituoso. O Pelé, por exemplo, acha que fez muito na luta contra o racismo. Mas ele não fez porra nenhuma. Sempre olhou o lado dele. Imagina se o Pelé tivesse se casado com uma negra? Seria fantástico.”, recordou Joel Camargo, em 2014, em depoimento ao repórter Breiller Pires, da revista Placar.


Para se ter uma ideia da má vontade com Joel, basta resgatar o título de uma reportagem da Folha de S.Paulo, de 1973: “O mesmo Joel, frio e amargo”. O repórter o definia como um sujeito “introvertido”, mas que dava sempre a impressão de estar “mal-humorado”, “revoltado”. “Um desconfiado”. “E Joel não faz nenhum esforço para parecer diferente”, escreveu o jornalista. A mesma reportagem também cometera o sacrilégio ao afirmar que o futebol de Joel Camargo foi apenas “bom”. “Prepotente”. Essa era a palavra mais comum com a qual boa parte da imprensa injustamente e sem alteridade o definia.

“Eu vou voltar. Eu quero voltar. E sei que vou conseguir. Não penso em provar para este ou aquele que fui injustiçado, esquecido ou magoado ou sei lá o quê. Eu vou voltar por mim”. Joel não voltaria mais. Com as críticas e o desempenho aquém do que sempre foi capaz, Joel dava adeus ao futebol.

Com cerca de 30 anos, e ainda com o vigor ideal para jogar tudo o que sabia, optou por outro caminho: o cais do porto de Santos. Durante 20 anos, foi estivador. Com 55 anos, aposentou-se. Vendeu medalhas e troféus. Tudo, enfim, que conquistara com o futebol. “Entrevistem Pepe, Mengálvio, Coutinho. Procurem o Zito. Eu sou apenas um estivador”.

Lutava contra o alcoolismo e a diabete, que lhe obrigou a amputar um dedo do pé. Em fevereiro de 2009, um baque. Perdera a esposa Arina Werneck Camargo, companheira que muitas vezes puxou a orelha de Joel, pedindo ao marido que parasse de beber por conta da doença. Com a morte de Arina, o quadro depressivo intensificara-se. Simone, a filha única que chegara bem miúda a Paris em 1971, cuidou do pai até o fim, quando Joel decidiu partir para sempre, logo após as revelações que fez ao Breiller Pires e pouco antes de começar mais uma Copa do Mundo na história do futebol brasileiro. A lamentável Copa de 2014, que Joel, o “melhor quarto-zagueiro do mundo” certamente não veria, pois o futebol há tempos o abandonara. Bem antes de sua morte.

ZIZINHO OU, COMO MOSTROU JAPIASSU, UM PROFESSOR DE FUTEBOL

por André Felipe de Lima


Fui fã do Moacir Japiassu, da pessoa, do jornalista, do mestre. Lia-o frequentemente nos jornais ou revistas. Aprendi um pouco mais da nossa maltratada língua com ele. Nesta sexta-feira, dia 14, comemoramos o aniversário de outro mestre, mas do futebol. O Mestre Ziza, o Zizinho, o ídolo do Pelé e de muitos meninos e marmanjos que o viram iluminar o futebol. Mas, afinal, o que tem a ver o Japiassu com o Zizinho? Ora, a paixão pelo futebol e o fato de o Japiassu ter escrito sobre ele, em 1965, quando ainda engatinhava na carreira. Zizinho acabara de chegar ao Bangu para assumir o cargo de treinador, e coube ao Japiassu escrever a vida e obra do Ziza para o Jornal do Brasil. “Zizinho foi durante 10 anos o ídolo que a torcida chamava de Mestre e em 1950 obrigou um jornalista inglês a usar, para defini-lo, uma palavra até então reservada aos cientistas: gênio”, escrevera Mestre Japiassu.

O pai do Zizinho tinha um sonho: ver o filho jogador de futebol, mesmo que somente no time que organizava: o Carioca. Zizinho tinha apenas seis anos quando perdera o pai. A infância, acreditem, não foi com muita bola. Para ajudar à mãe viúva, Zizinho teve de trabalhar ainda garoto. Foi ajudante de mecânico e tempos depois funcionário na Lloyd Brasileiro. Difíceis tempos que o ensinaram, moldaram-no, tornando-o um grande ser humano, um amigo, pai, irmão, companheiro que todos queriam um dia ter.


O que aprendera ainda rapaz, tristemente longe do pai, foi essencial para garantir-lhe serenidade após a Copa do Mundo de 1950. A derrota na final para os uruguaios deixou um amargo ensinamento ao Zizinho: o excesso de otimismo é o maior inimigo de um time de futebol. Dali em diante, Tomás Soares da Silva não seria apenas Zizinho. Seria muito mais que apenas um homem e sua alcunha. Seria Mestre Ziza. Inquestionável testemunho autorizado do futebol, com teses essenciais para quem se diz pretensamente jogador de futebol, e mais que isso: arvora-se craque:

“Craque é o jogador que, não importando o seu porte físico, pode com a categoria desequilibrar uma partida, definir um jogo, mudar um resultado. Craque é aquele que sabe limpar uma jogada na defesa, vislumbrar a jogada num relance, criar o espaço — mínimo que seja — entre uma floresta de pernas, na pequena área, e bater na bola com a certeza do gol.”


“A humildade levou o Brasil às Copas de58 e 62. A humildade que aliada à confiança e vontade de vencer nos tornou invencíveis, porque nossa capacidade técnica sempre foi e será indiscutível, inigualável.”

“Desprendimento é não pensar primeiro no dinheiro e depois ganhar a Copa. Coragem é não ter medo de perder o jogo, porque este é sem dúvida um dos maiores inimigos de um time de futebol.”

Ah, Zizinho… que saudade, e parabéns para você, seja lá em que hoste celestial esteja, defendendo-nos, com amor e bons fluídos, do mal futebol que nos aflige.

LEMBRA-SE DO MERICA? POIS É, BATIA UMA BOLINHA RESPONSA

por André Felipe de Lima


Sempre que alguém citava o Merica, comentava-se — antes de mencionar o futebol que ele jogava — a notória “beleza” do volante. Liminha, que o antecedeu na meia cancha do Flamengo e estava prestes a pendurar as chuteiras, chamou Júnior em um canto, e confidenciou: “O Flamengo encontrou finalmente o jogador para me substituir: é esse Merica. E ele apresenta uma grande vantagem em relação a mim: sabe dar passes longos, que nunca foram o meu forte”.

Viu? Merica era bom de bola, sim. Não era um craque. Fama de ídolo? Sucesso entre as torcedoras? Aí é que não rolava mesmo. Mas era xodó da torcida, sim. Quem torcia pelo Flamengo por voltar de 1976 e 77 teve a mesma impressão do Liminha. O tal Merica, aquele baixinho feio pra burro, que jogava no modesto Atlético de Alagoinhas, na Bahia, era mesmo bom volante. Marcava bem, desarmava e saía para o jogo. Estava longe de ser um Carpegiani ou Andrade, que o sucederam por ali, mas dava (e muito!) para o gasto.

Valdemiro Lima da Silva, o intrépido Merica, nasceu no dia 13 de setembro de 1953, em Acupe, cidadezinha pacata do distrito Santo Amaro da Purificação, do interior baiano. Entre 1975 e 1978, foram 175 jogos com camisa do Flamengo, oito gols marcados, 105 vitórias e somente 24 derrotadas. Com Merica em campo, ficava mais difícil para os atacantes adversários chegarem à defesa rubro-negra. Mas o bom baiano baixinho, e para lá de porreta!, era arretado, e ia para o ataque, quase sempre caindo pela lateral direita. Levava porradas à vera, mas não se intimidava.

Uma vez, em um Fla-Flu de 1976, lá pelos 20 minutos do primeiro tempo, Doval, o gringo, teve a bola “roubada” por Merica, que foi, como de costume, pela direita, avançando sem parar. Deixou Paulinho para trás, porém viu pela frente um menino alto e parrudo. Era o zagueiro Carlinhos. Os dois trombaram. Desabaram. Carlinhos ficou mal. Falta de ar. O médico tricolor Durval Valente ficou sem saber o que fazer, porque o craque Doval também se queixava com ele de dores no tornozelo. Meia completamente rasgada. Foi rescaldo da dividida segundos antes com Merica. O médico do Flamengo Célio Cottechia quis entrar em campo para socorrer Merica, que sob o indefectível sotaque do interior baiano, disse: “Tô bem, dotô, num precisa entrá não”.


No banco de reservas, a rapaziada do Flamengo caiu na gargalhada. O técnico Carlos Froner, todo prosa, vira-se para o massagista, e emenda: “Não disse que ele é dos bons? É de jogador assim que eu gosto”. Hoje em dia, jogador assim, como foi Merica, que recolhia a dor, levantava e jogava, é artigo de luxo. Cai-cai não fazia parte do seu estilo. Aquele Fla-Flu em que jogou à beça foi o vigésimo jogo seguido pelo Flamengo. Liminha ficara mesmo no banco, de onde não sairia mais.

Merica era somente um rapaz. Tinha 22 anos. É o caçula de oito irmãos criados na pequena Acupe, uma comunidade de origens indígena e africana muito famosa na Bahia pelo legado cultural deixado por escravos. Não se constituiu em um quilombo, mas em uma terra para onde iam alguns escravos fugitivos das fazendas e mesmo alforriados, que, enfim, gozavam a justa e necessária liberdade. Eram eles homens e mulheres; crianças e velhos. Todos bravos e aguerridos negros na carne e na identidade. Assim eram os ancestrais do grande Merica, que, acreditem, foi um jovem barbeiro em Acupe, quando começou a jogar bola no time de peladas do Ideal (de Santo Amaro) e, levando mais a sério, no Atlético de Alagoinhas.

Merica sabe que aquele Fla-Flu em que arrebentou em campo jamais saiu de sua mente. Foi a primeira vez que ele se viu cercado de microfones. Se Zico era a estrela, Merica era o reluzente cometa naquela tarde de arquibancada magnificamente colorida de vermelho e preto e de branco, grená e verde.

Mas como o jovem Merica, de uma cidadezinha tão enfronhada no miolo baiano, chegou ao Sul Maravilha, e logo à Gávea? Acerto de contas do Céu com o jovem? Pode ser. Pura sorte? Também. Mas Merica tinha muito mais que apenas estrela. Tinha competência. Jamais se soube o que fez o Flamengo fazer uma excursão pelo interior da Bahia. Mas suspeitava-se que o motivo tinha sido “Merica”. A renda não compensaria o esforço, mas diziam que era vontade de mostrar o time ao povo, que tem direito de ficar bem perto dos seus ídolos. Foi num desses rompantes de alteridade da diretoria do Flamengo que Merica cruzou seu destino com as cores preta e vermelha. O caminho estava aberto para o garoto barbeiro brilhar. Mas quem o viu jogar primeiro e o havia indicado ao Vasco e ao próprio Flamengo foi o comentarista Carlos Marcondes, que trabalhava na Rádio Tupi, do Rio. O Vasco ignorou, mas o Flamengo foi lá conferir se o que Marcondes falava era mesmo verdade.


Dos módicos 300 cruzeiros que recebia do Atlético de Alagoinhas passou a receber 5 mil cruzeiros em agosto de 1975, quando chegou ao Rio de Janeiro. Vieram ele e, de contrapeso, o amigo Dendê. Merica deu certo, Dendê apenas curtiu um pouco as belezas do Rio, mesmo assim, entrou em campo 50 vezes pelo Flamengo.

Junior “Capacete”, um dos melhores amigos do Merica na Gávea, lembra que a chegada do baianinho foi cercada de preconceito: “Merica foi alvo de uma campanha nada simpática, parecia mesmo que tinha mesmo o objetivo de ridicularizar o rapaz. Ora porque é feio, ora porque chegou de um time modesto como o Atlético de Alagoinhas. Na verdade, o problema era outro: o Flamengo não estava bem e a diretoria do clube tinha acenado à torcida com contratações. Os nomes de Merica e Dendê, que vieram juntos, não eram bem aqueles que a torcida e os jornalistas queriam ouvir. Só para dar uma ideia disso, basta dizer que houve um momento em que diziam que o Merica, só porque tinha vindo da Bahia, estava fazendo macumba para o Liminha sair do time”.

Rondinelli foi outro craque que deu muita força ao Merica no começo. O baiano encabulado sentia-se solitário no Rio. Só conversava com Dendê. Os jogadores tentavam enturmá-lo, mas o que único que obteve sucesso foi Geraldo, que morreria prematuramente logo após a chegada de Merica. “Só para você ver como era o Geraldo, foi ele o primeiro de nós a ter a sensibilidade para a situação do Merica, a solidão em que vivia. E Geraldo passou a encarnar nele, gozá-lo com brincadeiras. E assim se quebrou aquele gelo. Aí a intimidade foi aumentando, eu e os outros passamos a compreender Merica, um cara apegado demais à família, à sua terra. Hoje ele é um dos caras mais queridos por todos os companheiros”, contou Rondinelli, em 1977, aos repórteres Maurício Azedo e Aristélio Andrade.

Mas tudo aquilo passou. A fase bacana do Merica no gramado superara qualquer dificuldade inicial. Ele voltou à Santo Amaro e casou-se com a namorada Maria Raimunda. Voltou ao Rio e alugou um apartamento em Copacabana. Que fase! Até aquele Fla-Flu fizera 20 jogos pelo Flamengo. Não perdera nenhum. Zico o adorava: “Na cabeça de área é um leão, destruindo com vigor e dando total cobertura aos zagueiros. E não é só isso: é um cara que sabe avançar, ajudar o meio de campo e, se for preciso, fazer lançamentos para os companheiros”.


Merica não fugia do pau. Era valente como seus ancestrais escravos. Não tolerava mimi. E durante outro Fla-Flu, Rivellino deu-lhe um safanão, sem bola, mas quem caiu no chão foi o “Bigode” e não o Merica. Rivellino rolava no gramado, uivando de uma dor inexistente. Puro teatro. Merica, a verdadeira vítima, acabou expulso pelo juiz. Ficou injuriado e partiu para cima do Rivellino, que se esquivou do baixinho. Em Fla-Flu, Merica não dava sopa. Foi expulso algumas vezes.

Era matuto, sem dúvida. Uma vez — contou Júnior — entrou na sauna de camisa, calça comprida e chinelo. Saiu de lá para lá de encharcado de suor. De sacanagem, os companheiros de time, entre eles o próprio Júnior, ficaram do lado de fora esperando a saída do Merica. Dá para imaginar as sonoras gargalhadas dos caras ao se depararem com Merica naquele estado. Mas a emenda saiu pior que o soneto quando Merica, inocentemente, veio com o seguinte: “Puxa, como é que uma sala dessas, danada de quente, não tem ar condicionado?”.

A história de Merica com o Flamengo começou antes da Gávea. Muito antes do carinho e alegria que os companheiros sempre tiveram com ele no clube carioca. Houve outro Flamengo antes, o da rua do Prédio, em Acupe. Foi ali, nas peladas do Mengo de Acupe, que o vermelho e o preto começaram a tomar conta da alma arretada do querido Merica, que recentemente foi homenageado em um torneio intermunicipal de futebol na Bahia. A Taça Valdemiro Lima da Silva. Ficaria mais charmoso e original chamá-la de Taça Merica. Os rubro-negros concordariam, afinal, que se esquece do Merica na Gávea?

EVERALDO, O OURO DA BANDEIRA DO GRÊMIO

por André Felipe de Lima


“Já ganhei muitos presentes — dois carros, máquina de lavar roupa, relógio — e o carinho de meu povo. Meu contrato termina no dia 6 de fevereiro do ano que vem e então eu pedirei ao Grêmio o que achar que meu futebol vale”. Estas palavras foram ditas ao repórter Divino Fonseca em julho de 1970, um mês após o Brasil conquistar o tricampeonato mundial, no México, pelo inesquecível Everaldo, lateral-esquerdo daquele escrete campeão e um dos maiores ídolos de toda a história do Grêmio. Como a maioria dos craques de sua época, contentava-se com pouco para ser feliz. O que lhe garantisse uma razoável qualidade de vida. Mas tudo que o Grêmio fizesse por ele sempre seria pouco comparado à dimensão que Everaldo representa para gloriosa trajetória do clube gaúcho.

Após a Copa de 70, Everaldo desfilaria pela Porto Alegre sentado em um trono e ganharia muitos outros bens materiais pelo seu heroísmo no México. Do presidente Emílio Garrastazu Médici, ele e todos os companheiros do “tri” receberam um cheque de 25 mil cruzeiros e uma caderneta de poupança de 5 mil cruzeiros. Quando desembarcou em Porto Alegre, recebeu uma TV, um aspirador de pó, uma bandeja de prata, uma placa de bronze, uma chuteira de bronze e dezoito pares de sapato produzidos em Novo Hamburgo, uma taça prateada, vinte garrafas de vinho fabricados em Bento Gonçalves, um troféu da emissora de TV Piratini e um título de sócio honorário da Federação Gaúcha de Futebol que lhe garantia acesso livre aos estádios de qualquer canto do país.

Everaldo era uma sumidade. Acreditava que ficaria rico após o título de 70. Era humilde e, como o descreveu Divino Fonseca, um tanto “ingênuo”. Acreditava piamente que abriria uma loja para explorara Loteria Esportiva. Pelos seus cálculos, ficaria rico em pouco tempo com a lojinha. Afinal, tinha de aproveitar a bajulação. Era incessante o entra e sai de fãs, amigos e “amigos” de Everaldo no apartamento 303, na rua Jerônimo Ornelas, nº 28. Cleci, esposa do jogador que estava grávida, atendia a inúmeros telefonemas de donos de lojas, restaurantes e boates que insistiam em convidar o casal para homenagear o grande campeão mundial. Até um agende de publicidade Everaldo contratou para filtrar os convites. Quando o campo de futebol lhe dava uma folga, Everaldo escrevia crônicas para o jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Ganhava 100 cruzeiros por artigo e, de tabuada em punho, concluíra: “São 30 textos para contar toda a minha história na Copa do Mundo, vou ganhar 30 mil cruzeiros ao final”. Queria ficar rico, o grande ídolo.


Everaldo Marques da Silva era reserva da melhor seleção de futebol de todos os tempos. Naquele time de 70, enquanto o mundo só tinha olhos para Gérson, Clodoaldo, Carlos Alberto Torres, Rivelino, Jairzinho, Tostão e o Rei Pelé, Everaldo, que ocupara a vaga de Marco Antônio, cumpria a risca seu papel de garantir consistência à marcação e fechar a defesa. Aliás, sua principal característica como jogador era justamente a capacidade de defender, embora também atacasse com muita qualidade.

Com a seleção, Everaldo conquistou as maiores glórias de sua vida. Foi campeão da Copa de 1970 e graças a este título virou uma das estrelas da bandeira do Grêmio, clube pelo qual jogou quase toda a carreira. Quando retornou a Porto Alegre, no dia 24 de junho, após a conquista do tricampeonato foi recebido como um verdadeiro herói por uma multidão de aproximadamente 200 mil pessoas. A chegada parecia a de um pop star! O avião que trazia o único jogador de um clube gaúcho na delegação tricampeã foi escoltado pela FAB e, ao desembarcar, Everaldo foi recebido no Palácio Piratini pelo governador Walter Perachi de Barcelos.

Ao descer do avião, no aeroporto de Porto Alegre, Everaldo ficou espantado com a multidão que o cercava, com cerca de 5 mil pessoas [as que Everaldo pôde mensurar]. Perguntou ao presidente Flávio Obino e ao vice-presidente Sérgio Ilha Moreira: “Esse povo todo está aqui por minha causa?”


Everaldo voltou tricampeão do mundo e não eram só os gremistas que o aguardavam, mas o povo gaúcho. Do aeroporto até o Palácio Piratini, onde foi recebido pelo então governador Perachi Barcelos, Everaldo foi ovacionado por fãs que contavam 300 mil, a maior concentração pública numa extensão de 7 quilômetros. Fato inédito.

Ao descer o último degrau da escada do avião, Everaldo sorriu e, em seguida, soluçou. Intercalava riso e choro, erguendo os braços e procurava a esposa, a filha, os irmãos e a mãe com o olhar emocionado. Nem mesmo Figueroa e Falcão, dois ídolos renomados do Inter nos anos de 1970, nem outro jogador gremista posterior ao tempo de Everaldo foram agraciados na mesma proporção do ex-lateral esquerdo no Rio Grande do Sul.

Everaldo distribuiu autógrafos por uma semana, ganhou prêmios, homenagens públicas e foi convidado para banquetes. Pela primeira vez, um jogador do Grêmio sentou ao lado do presidente do Conselho Deliberativo e do presidente do clube. Ele motivou uma reunião extraordinária e festiva do alto órgão diretivo do clube.

Diante de tanta glória proporcionada pelo ídolo, a diretoria do Tricolor resolveu prestar-lhe uma homenagem: desde o dia 30 de junho de 1970, estampa-se uma estrela dourada na bandeira do Grêmio. A estrela é Everaldo. “Com toda a sinceridade, sinto-me feliz. Mais feliz ainda porque senti, ainda lá no México, como estaria o meu povo aqui no Brasil. Quando terminou o jogo, em segundos, eu vi o Brasil inteiro rindo e chorando. Vi a minha Porto Alegre, todos os seus bairros; vi o Olímpico, a minha turma, os jogadores e dirigentes do Grêmio; vi a minha esposa, minha filha, meus irmãos e minha mãe. Vi todos direitinho. Eles pulavam, gritavam, se abraçavam. Quando retornei, foi apenas a repetição do que já sentira lá no México. Tudo isso foi para mim motivo de alegria. Sou tricampeão do mundo. Para mim é um incentivo. Eu sei que agora tenho a obrigação de acertar sempre. Como pessoa, continuo igual. Acho, até, que nem preciso explicar. O meu prêmio maior, repito, foi ter podido ajudar o Brasil a conquistar o título. Para o Grêmio, que é o meu clube de coração, a conquista do tricampeonato representou muito.”


Nascido em Porto Alegre, no dia 11 de setembro de 1944, Everaldo, que começou jogando no Marabá, do bairro da Glória, chegou ao Grêmio com apenas 13 anos de idade para atuar nas categorias de base do clube. Vestiu pela primeira vez o manto sagrado do time profissional, no dia 18 de novembro de 1962, quando o Grêmio perdeu de 2 a 0 para a seleção gaúcha. Em seguida, Everaldo foi reintegrado ao time juvenil. Voltaria, definitivamente, ao time principal no dia 16 de janeiro de 1966, para nunca mais sair da lateral-esquerda. E com toda a pompa. O Grêmio massacrara o Itapuí de Guaíba pelo placar de 9 a 0.

Além do tricolor dos Pampas, o outro clube que Everaldo defendeu foi o Juventude. Porém, ficou duas temporadas [1964 e 65] na Serra Gaúcha e, em 1966, retornou ao clube que o revelou para não mais sair.

Com o Grêmio, conquistou quatro títulos gaúchos [1966, 67 e 68]. Era um jogador muito leal tanto que conquistou o prêmio Belfort Duarte. No entanto, em 1972, durante uma partida contra o Cruzeiro se desentendeu com o árbitro José Faville Neto e o agrediu. O ato de indisciplina lhe rendeu uma suspensão de um ano.

Everaldo gostava de samba. Foi ritmista da escola de samba Bambas da Orgia, o grêmio carnavalesco mais antigo de Porto Alegre e um dos mais populares da cidade. Mas a sua vida festiva e de glórias inigualáveis teve prazo. Um lamentável prazo curto.


No dia 27 de outubro de 1974, a vida do jogador, que se preparava para encerrar a carreira, foi interrompida bruscamente quando o carro que dirigia, um Dodge Dart, bateu violentamente em um caminhão na BR-290. No acidente, morreram Everaldo, então com apenas 30 anos de idade, a esposa e a filha.

Assim como Eurico Lara, lendário goleiro gremista, o lateral tricampeão mundial no México saiu dos gramados para entrar no Olimpo dos mitos tricolores. O craque disputou 364 jogos pelo Grêmio e marcou apenas dois gols. Se Eurico Lara teve o nome imortalizado no hino do clube, a estrela de ouro na bandeira gremista simboliza Everaldo por ter sido o primeiro jogador do tricolor gaúcho a se sagrar campeão mundial.