por André Felipe de Lima
“Morri ontem, um domingo. Mais dia ou menos dia, chegaria a hora. Encontrando-me no céu, fui recebido em um camarote concedido por Deus para poucos, honraria que confesso jamais imaginar ostentar ou tampouco ambicionar, não esforcei-me para isso. Tive direito a asas angelicais e auréolas douradas, as mesmas que usei em procissões quando menino em priscas eras imemoriais, antes do nada, portanto, como muitos gostavam de ouvir e ler. Ali, envolvido pela minha imaculada ingenuidade infantil, acreditava em Deus e sequer pensava existir lorpas, pascácios e sacripantas. Perdi-o — o garoto ingênuo — no meio da longa estrada da carne. Culpa minha decerto. Mas Ele, lá do seu camarote, o mesmo onde me encontro agora, cercado de nuvens e luzes indescritíveis, assistia, como faz com todos crédulos ou incrédulos, ateus ou carolas, cada passo dado por esta eterna moribunda alma, sobretudo cada frase que escrevia ou verbo proferido. Perdoou-me por todas as letras das vidas que ousei compor sem lirismo. Era o nu e o cru, e não haveria de ser diferente. Afinal, como sempre afirmava — e Ele pode provar isso nos anais que destina a todos nós— que, embora assumidamente violento quando me sentava diante de uma Remington, mantive muito do menino que fui. Salvei-me aí. Mas nada. Nada mesmo importa neste momento de transição do chão infernal ao teto sublime azul anil mais que a atuação do Edevaldo. Como jogou bem o meu lateral-direito tricolor. Os suíços deram trabalho ontem enquanto me encaminhava para o camarote de Deus. Porém vencemos com um magro 2 a 0. O bastante. Se a seleção foi sofrível aos olhos dos críticos, a mim pouco importa. Edevaldo redimiu o escrete. A tarde antes cinzenta sobre a fronte de Telê coloriu-se em um arco-íris predominantemente verde e amarelo com o lateral indo e voltando de uma ponta a outra do campo com um fôlego inimaginável. Um puro-sangue. O Brasil seguirá firme para Montevidéu, conquistará o Mundialito. Quanto a mim, se Ele permitir, permanecerei aqui, em meu reluzente camarote celestial, apenas observando os encontros e desencontros das carnes de vocês e o que andam fazendo (ou não fazendo) pelo meu Fluminense.”
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No dia 21 de dezembro de 1980, enquanto a seleção brasileira derrotava a seleção suíça pelo placar de 2 a 0 (gols de Sócrates e Zé Sérgio), no estádio José Fragelli, em Cuiabá, preparando-se para o Mundialito, uma mini Copa do Mundo, no Uruguai, perdíamos o “profeta tricolor” Nelson Rodrigues. E também perderíamos o Mundialito. Isso, Nelson não poderia prever.