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andré felipe de lima

‘MUNDIAL’, ‘LIBERTADORES’ E MUITA CHORUMELA

por André Felipe de Lima


Provocar. Não há verbo mais adequado no dia a dia dos apaixonados debates clubísticos. Ora, em 1948, o Vasco conquistou o memorável Torneio Sul-americano, no Chile, o “irmão mais velho” da Taça Libertadores da América, feito devidamente reconhecido pela Conmebol. Pois bem, o Vasco da Gama é o primeiro campeão continental das Américas e fim de papo. Aliás, a Fifa, também reconheceu, enfim, o “título mundial” do Palmeiras, conquistado, no Maracanã, em 1951. Deveria fazer o mesmo com o Fluminense, que levantou a mesma Copa Rio, no ano seguinte, ou também fazer do Vasco um legítimo campeão do mundo, após a conquista do Torneio Octogonal Rivadavia Corrêa Meyer, competição que substituiu a Copa Rio, em 1953, e nem destaco aqui o badaladíssimo Torneio Internacional de Paris, realizado em 1957, quando o Vasco desbancou o poderoso Real Madrid, de Di Stéfano, Puskas, Gento e muitos outros craques, o Racing Paris e o alemão Rot-Weiss Essen. O fato é que todas estas grandes competições — destaco apenas a Copa Rio e o “Rivadavia” — contaram com mais de seis clubes oriundos dos principais centros futebolísticos do mundo. Torneios muitos mais disputados e infinitamente mais empolgantes que o insosso Mundial de Clubes bancado pela Fifa desde 2000. E, convenhamos, a International Soccer League, disputada em 1960, em Nova Iorque, e conquistada pelo Bangu, também é uma “copa do mundo” de clubes, ora essa. Nosso Alvirrubro carioca é, sim, em tese, campeão mundial, e ponto final. Pensou que parou por aqui? Nada disso. A mesma competição seria disputada até 1965, sendo que o “campeão do mundo” de 1962 — mesmo ano em que o Santos conquistava a sua primeira edição da Copa Intercontinental ou Mundial Interclubes, como queiram — foi o querido América do Rio de Janeiro.

Por aqui, a CBF decidiu que a Taça Brasil, várias vezes conquistada por Santos e Palmeiras, deveria ingressar na lista de campeonatos nacionais iniciada com o título do Atlético Mineiro, em 1971. É justo, em termos. A Taça Brasil, em sua fórmula, assemelha-se mais à atual Copa do Brasil. Já a antiga Taça de Prata, ou Torneio Roberto Gomes de Pedrosa, disputada entre 1967 e 1970, está mais adequada ao modelo deflagrado em 1971. O que muita gente esquece é que o Atlético Mineiro seria, em tese, o legítimo primeiro campeão nacional de clubes ao levantar heroicamente a Copa dos Campeões, de 1937, organizada pela extinta Federação Brasileira de Futebol (FBF). O Galo disputou a taça, em pontos corridos, contra outras cinco equipes, dentre elas Fluminense e Portuguesa de Desportos. Mérito indiscutível.


Essa barafunda de conquistas pode ser motivo para o Flamengo requerer junto à Conmebol o título de “Campeão Sul-americano”, de 1961. Isso porque, em fevereiro daquele ano, o rubro-negro foi campeão do primeiro Torneio Octogonal de Verão, que reuniu a nata do futebol continental. Em campo estiveram Boca Juniors, River Plate, Nacional de Montevidéu, Cerro Porteño, Corinthians, São Paulo e Vasco da Gama. Todos contra todos, ponto corrido para valer. Longe da fórmula do mata-mata da Libertadores, que é até emocionante, mas que pode resultar em algumas injustiças históricas.

Se o “Mundial” valeria para o Palmeiras, vale também para Fluminense e Vasco. Se Santos e Palmeiras assumiram a pecha de maiorais em taças nacionais, reconheça-se (ou, pelo menos, deveriam) o pioneiro título do Galo mineiro. Se a Conmebol reconheceu o Vasco de 1948, por que não reconhecer o Flamengo de 1961? Seria o rubro-negro, portanto, “tricampeão” continental após levantar a Taça Libertadores de 2019?

Tudo é realmente polêmico, mas um prato cheio para fazermos do futebol um inesgotável manancial de saudáveis e acalorados bate-papos. O que desejamos, realmente, é que nossos times sejam campeões. Se a Fifa ou a CBF não reconhecem as conquistas… azar delas, e, garçom, traga, por favor, outra gelada, porque o papo só está no começo.

‘DE LOUCO E FELINO, TODO GOLEIRO TEM UM POUCO’

por André Felipe de Lima


“Comecei como o fazem todos, ou seja, correndo atrás de uma bola pelas ruas ou pelos campos de várzea. Até que um belo dia, lembro-me bem, pois tinha 10 anos de idade, houve um pênalti contra o nosso lado. Eu atuava na extrema direita, porém o nosso arqueiro abandonou o posto no momento da cobrança da falta. Como naquele jogo valia tudo, fui para o arco ver se conseguia defender. Um ‘grandão’, moreno, com um corpo bastante avantajado, correu e soltou um tremendo balaço de pé direito. Vi que a bola vinha como um foguete e, rapidamente, saltei de encontro à menina. Senti um impacto na cabeça e caí. Depois de ficar atordoado por uns instantes, voltei ao estado normal, em meio a abraços e vivas dos meus companheiros. Tinha defendido com uma cabeçada — aqui entre nós, sem querer… — rebatendo o couro para o meio do campo. Depois dessa, meteram-me na cabeça que eu devia ser goleiro.”

O ex-goleiro Luiz Moraes, o “Cabeção”, cujo apelido não poderia ser outro, nasceu em São Paulo, no dia 23 de agosto de 1930. No gol do Corinthians, na década de 1950, foi o grande rival do inesquecível Gylmar dos Santos Neves, que era exatamente um dia mais velho que ele. “Fiquei sendo Cabeção, simplesmente, e chego ao cúmulo de sentir estranheza quando alguém de chama de Luiz. Luiz Moraes, para mim, é um nome diferente e assume ares de importância”, declarou Cabeção, quando começava a despontar no time do Corinthians.

O pai, o português Adolfo, um mecânico e corintiano não muito convicto, pois não era muito fã do futebol, queria, contudo, vê-lo um dia jogador, mas a mãe, a brasileira Josefina, sempre se mostrou um pouco contrariada com o propósito. Como impedir, porém, o filho, que ainda bem pequeno, gritava pelos pulmões “Gol!!! Gol de Teleco”? Adolfo vaticinara: “Este diabinho ainda vai jogar no Corinthians”. Josefina argumentava que o futebol “não dá camisa” para ninguém, e que o mais sensato seria estudar para se defender dos imprevistos que a vida nos apresenta. Mas Adolfo insistiu em sua intuição.

Corria o ano de 1937, quando o pai pegou o menino pelo braço, vestiu-o com um terninho branco de marinheiro e rumou para o Parque São Jorge, santo chão corintiano. Queria fazer-lhe um mimo: mostrar, bem de perto, o ídolo Teleco. O menino tinha sete anos e, lógico, ficou extasiado porque não conhecera apenas Teleco, mas um panteão de craques. Lá estavam Jaú, Jango, Brandão, Filó Guarisi e Munhoz. Nunca vira uma bola genuinamente de couro até aquele inesquecível dia. No ano seguinte, Cabeção já era sócio do clube e do quadro infantil do Timão. “A gente entrava lá [no Parque São Jorge], brincava com eles [os jogadores], antigamente, quando era moleque, e eles pagavam [entradas para o cinema]… tinha o Cine São Jorge [hoje uma loja de calçados], na avenida Celso Garcia […] E esses jogadores antigos pagavam o cinema para nós. Segunda-feira, como era folga deles, eles, mais uns quatro ou cinco jogadores do juvenil, eles pagavam a entrada para a gente ir lá no cinema. Então, a gente conviveu muito com esses jogadores antigos e foi criando raízes dentro do clube”, declarou Cabeção em 2011, durante depoimento para o projeto Futebol, Memória e Patrimônio, do CPDOC/FGV.

Convivendo com cobras do futebol, Cabeção foi galgando, passo a passo, todas as categorias até chegar aos aspirantes, em 1946, sob o olhar clínico do treinador Dante Pietrobon, com quem tudo aprendeu no arco. Uma ascensão extraordinária para o orgulho de Adolfo e de Josefina, pais “corujas”, e claro, do tio Salvador Salerno, quem mais o incentivava, comparecendo, inclusive, aos treinos e até às peladas do “River Plate”, time de várzea onde Cabeção também despontava. E foi por conta desse “River Plate” que Cabeção foi agraciado com todo o uniforme do River Plate original, o famoso millionarios de Buenos Aires. Em 1947, o time argentino excursionou por São Paulo. Após um jogo preliminar no Pacaembu, defendendo o juvenil do Corinthians, Cabeção invadiu o vestiário do River e pediu aos gringos, na maior cara dura, um uniforme completo do time portenho. E os caras deram camisa, short, meião… Cabeção levou a melhor.

“O meu avô era italiano, mas era corintiano. Tinha esta diferença, porque, geralmente, o italiano era palmeirense, e o meu avô era corintiano e ajudou muito o Corinthians […] ele era cocheiro. Tinha uma carroça de aluguel. Carregou muita coisa para fazer o Corinthians que é hoje, que antigamente era do Sírio (O Esporte Clube Sírio foi o antigo dono do campo do Parque São Jorge, comprado pelo Corinthians em 1926 para a construção do histórico estádio). O Corinthians comprou e meu avô levava muita mercadoria e muita madeira para fazer o estádio […] terminar o campo de futebol. Torcia para o Corinthians. A minha avó, não sei, porque ela não falava. Minha mãe também não ligava. Meu pai, português, também não ligou muito para futebol. Eu tinha uns tios que jogavam na várzea. Estes me incentivaram muito. Torciam para o Corinthians, foram atletas do Esperia – antigo Esperia –, mas não eram muito ligados ao futebol.”

Até despontar entre os profissionais, Cabeção dividia o futebol com o estudo noturno e o emprego em uma loja próxima a sua casa. “Antigamente, só tinha escola na cidade [no Centro] […] Estudava à noite. Quando perdia o ônibus ou o bonde, tinha que ir a pé da Liberdade até o Parque São Jorge. Era uma caminhada muito violenta e de madrugada. Apesar de que, naquele tempo, não tinha tanto perigo, como tem hoje. Você ia sozinho… Não cheguei a me formar em nada. Mas fiz essas três fases do primário, ginásio e científico.”

O tempo passou e, em 1948, portanto um ano antes de ingressar no time profissional do Corinthians, Cabeção por pouco não seguiu para o Fluminense, que insistira em seu concurso. Foi o alerta para que os cartolas corintianos assinassem num rompante o primeiro contrato com o talentoso goleiro para mantê-lo no Parque São Jorge.

Como profissional, disputou 323 jogos e sofreu 419 gols. Subiu ao time principal em 1949, junto com Idário, Roberto e Luizinho. Apesar de ser revelado pelo time da “fazendinha”, Cabeção, que dizia se espelhar no goleiro Jurandyr, do Flamengo, ouvia do ídolo a frase “Goleiro de pé vale por dois. Goleiro deitado está morto”. Seguia-a sem questioná-la.

Cabeção peregrinou por vários clubes. Quase jogou pelo Porto, de Portugal, mas o Corinthians não quis vender seu passe. Mas a resistência dos cartolas duraria pouco. Sem espaço por conta da forma exuberante de Gylmar, deixou o Corinthians em 1954 e seguiu, por empréstimo, para o Bangu. No ano anterior, porém, já na reserva de Gylmar, para quem perdeu a posição em definitivo em 1952, Cabeção chegou a ser hostilizado pela torcida que até então era sua fã incondicional. Mesmo com Gylmar balançando no posto de titular após a goleada de 7 a 3 para a Portuguesa de Desportos, valendo pelo segundo turno do campeonato paulista de 51, Cabeção não conseguiu manter a unanimidade, embora suas atuações fossem impecáveis e a imprensa paulista continuava a exaltá-lo, especialmente após as defesas sensacionais na final do Torneio Rio-São Paulo de 54, que garantiu o magro placar de 1 a 0 contra o Palmeiras. Nem isso o segurou no Timão.

Após improdutiva passagem pelo Bangu, que defendeu apenas 14 vezes, Cabeção aportou, em 1955, na Portuguesa de Desportos — uma de seus principais momentos no futebol, ao lado de feras como Julinho Botelho, Pinga e Djalma Santos. Talvez o melhor time da história da Lusa, que teve Cabeção embaixo das traves na inesquecível conquista do torneio Rio-São Paulo de 55.

Finda a gratificante experiência na Portuguesa, Cabeção retornou ao Corinthians, em 1958. O regresso ao time de origem foi de idas e vindas, ou seja, em 1961 foi emprestado ao Comercial de Ribeiro Preto. Um relâmpago. Ficou apenas alguns meses e voltou ao Timão, no qual permaneceu até 1966. No final da carreira, defendeu o Juventus, do bairro paulistano Mooca, de 1967 a 1968, e a Portuguesa Santista, em 1969. Do futebol, ganhou o suficiente para investir em imóveis e a eterna reverência das torcidas corintiana e da Lusa.

Algumas lendas são conferidas a Cabeção, como a sua eficiência mais comum em jogos diurnos que noturnos. Mito ou não, isso não importa. Cabeção foi, sem dúvidas, um goleiro bastante regular. O que lhe valeu algumas convocações para a seleção brasileira, inclusive para a Copa do Mundo de 1954, na Suíça, onde foi reserva de Castilho e de Veludo, ambos do Fluminense, sem disputar sequer uma partida. Das atuações de Cabeção com a amarelinha, apenas uma vem à memória. A da vitória do Brasil sobre o Millionarios, da Colômbia, por 2 a 0, no Maracanã, pouco antes da Copa, na Suíça, no dia 9 de maio de 1954. Cabeção entrou no decorrer da partida no lugar de Veludo. Sua maior conquista com a camisa da seleção aconteceu na categoria de amadores, no campeonato pan-americano de 1949, no Chile, um time de jovens talentos que contava com Pinheiro [Fluminense], Vasconcelos [ex-Santos], Tovar [Botafogo] e Tite [ex-Flu e Santos].

Cabeção mantinha esperança de ir à Copa de 1958, mas um desentendimento com o técnico Flávio Costa, da Portuguesa, teria dificultado a convocação do goleiro. Discutiu asperamente com Costa após este culpá-lo pelos dois gols sofridos durante um empate com a Portuguesa Santista. No vestiário, Costa teria ameaçado bater no goleiro, que reagiu atirando uma chuteira contra o técnico. Costa, que era influente na antiga CBD, deixou a Portuguesa meses depois do episódio enquanto Cabeção sofreu uma severa suspensão. O famoso treinador retornou ao Rio de Janeiro e, como afirmou o goleiro, foi consultado pela CBD para avaliar os possíveis nomes para a Copa do Mundo de 1958, na Suécia. Com isso, suspeita Cabeção, seu nome foi definitivamente banido do escrete nacional.

Este não foi o único entrevero de Cabeção com treinadores tidos “casca grossa”. A antiga revista Cruzeiro publicou na década de 1950 aquele que teria sido o motivo da ida de Cabeção para o futebol carioca. O goleiro levou sua esposa ao médico Mário Augusto Isaías, este um apaixonado torcedor e dirigente da Lusa. A cartolagem do Corinthians teria visto no fato motivo bastante para afastá-lo do time. E o fizeram. Cabeção, logicamente indignado, disse que nunca mais vestiria a camisa do Corinthians. Acabou vestindo-a em outras duas fases, mas nunca escondeu a mágoa por este e outros casos relacionados à sua família e o Corinthians.

Muitos anos depois, ele explicou os bastidores do seu afastamento do Corinthians naquela ocasião: “Eles acharam que eu tinha me vendido em um jogo Corinthians X Portuguesa porque o médico da família da minha mulher era presidente da Portuguesa, e a minha mulher precisava ser operada com este médico. Então, eu cheguei pro Brandão, o treinador, e falei: ‘[Oswaldo] Brandão, a minha mulher vai ser operada pelo dr. Mário Augusto Isaías. Já estou avisando, porque nós vamos jogar com a Portuguesa, não quero encrenca’. ‘Não, tudo bem. Tudo bem. Ela pode operar, pode…’. Esse dr. Mário Augusto Isaías tinha salvado a minha sogra de uma hemorragia em casa. […] O jogo Corinthians X Portuguesa foi feito em um sábado.”


Na véspera dos jogos, o técnico Brandão costumava fazer reuniões com os jogadores e antecipar a escalação do time. Naquela sexta-feira ele não fez. Os jogadores ficaram “cabreiros”, como assinalou Cabeção. O treinador só falaria horas antes do jogo. Cabeção, embora titular há alguns jogos, ficara fora do jogo, dando lugar a Gylmar. “Saí do vestiário, nem troquei de roupa, fui ficar no alambrado. Chamei um diretor, falei: ‘Oh, enquanto o Brandão estiver aqui, eu não jogo mais aqui. Eu vou embora. Vocês podem me mandar para onde vocês quiserem, só que com o Brandão, eu não fico mais aqui’. Ele costumava fazer isso com outros jogadores, então ele quis fazer comigo. Fez comigo. E foi danado. Então, saiu publicado em todos os jornais aqui da capital, a carteira [de poupança] de quanto eu ganhava, quanto eu tinha de depósito. Se tinha algum depósito naquela data. Aí, eu me queimei. Me queimei, e falei que enquanto ele ficava aqui, enquanto ele era o treinador, eu ia embora. Fui para o Bangu. Era para ir para o Vasco porque o Barbosa estava terminado de jogar, o Vasco. O Silveirinha me convidou: ‘Vai jogar no Bangu’. E o time do Bangu era bom. E eles pagavam direito”, recordou Cabeção, com uma ponta de remorso, pois preferia ter ido para o Vasco.

O ídolo do Corinthians e da Lusa colecionou títulos pelos dois clubes. Foi campeão paulista em 1951, 52 — quando foi reserva de Gylmar — e 54, todas as conquistas com o Timão. Conquistou também o Rio-São Paulo em 1950, 53 e 54, com Corinthians, e em 55, com a Portuguesa de Desportos, consagrando-se como o jogador que mais edições conquistou do torneio interestadual.

Nos tempos em que defendia o Corinthians, era fã de Zizinho e adorava cinema, sobretudo filmes estrelados por Gary Cooper, Elizabeth Taylor, John Wayne, Jean Simons, Gace Kelly e Ann Miller. Dos atores nacionais, sempre gostou do Anselmo Duarte e da Eliane Lage. Dizia-se devoto de Nossa Senhora da Penha e jamais dispensava uma macarronada.

Quando se aposentou como jogador, imediatamente tornou-se técnico. Treinou categorias de base do Corinthians e conquistou títulos ao longo de 20 anos, período em que revelou grandes craques para o Corinthians, como o centroavante Casagrande, o lateral-esquerdo Waldimir e os goleiros Ronaldo, Solito e Rafael Cammarota.

Em 1981, o grande arqueiro concedeu uma entrevista ao jovem repórter Fausto Silva, que anos mais tarde se tornaria simplesmente o Faustão, um dos mais bem sucedidos apresentadores da televisão brasileira. Cabeção criticava o futebol de então, comparando-o com o de sua época: “Não é saudosismo, não. Mas há cinco anos que não vou a um estádio de futebol. Prefiro ver pela televisão. Sinceramente, não está valendo a pena. Reconheço que o passado não diz nada, cada um tem que viver a sua época, mas a qualidade do futebol caiu […] Tive mais alegrias do que tristezas no futebol. E as mágoas, eu procuro esquecê-las logo. Mas a minha maior alegria foi em 1949, quando fomos campeões do pan-americano de juvenis no Chile.”

Cabeção, neto de italiano [vejam só…] corintiano que cresceu e viveu seus melhores dias no bairro do Brás, bem pertinho do Parque São Jorge, casou-se e teve um filho, professor de Educação Física e campeão de natação, que aos 30 anos morreu vítima de uma grave doença no cérebro. Cabeção largou tudo, inclusive o futebol, para dedicar-se exclusivamente ao filho. Precisou de treze mil dólares para operará-lo no Hospital Albert Einstein, recorreu a cartolas do Corinthians, especialmente o principal deles, Wadih Helu, que alegaram não ter o dinheiro. Um amigo do filho de Cabeção é quem ajudou com a quantia. O rapaz operou, mas o resultado não foi satisfatório. Permaneceu por mais cinco anos em cadeira de rodas. A mágoa com o futebol e com o Corinthians foi grande. Fora esta a segunda grande decepção após o episódio com a esposa. Não quis mais saber do futebol. Um trauma na vida do grande goleiro do passado.

Cabeção foi o único filho de Adolfo e Josefina. A vida é simples e tranquila ao lado da esposa. “Hoje, só vivemos eu e a esposa. Mais ninguém. Tem os parentes, mas são distantes. Mas vamos levando essa vida. Agora, com 81 anos, então, é assistir jogos pela televisão, que é mais fácil do que vir no estádio. E esta é a minha vida, agora.”

Mas Cabeção faz falta aos estádios. Pudera os deuses torná-lo eternamente jovem para nunca mais deixa os gramados. Pudera as gerações que não o viram jogar se deliciarem com os saltos acrobáticos, as “pontes” memoráveis e as defesas com a mão trocada executadas com maestria pelo Cabeção. Nos tempos em que jogava, o eterno ídolo costumava dizer que “de louco e de felino, todo goleiro tem um pouco”. É verdade…

O PRIMEIRO BRASILEIRO A CONQUISTAR UMA COPA DO MUNDO

por André Felipe de Lima


O ano era 1958. O primeiro protagonista, seu Filó, ou Amphiloquio Guarisi Marques, proprietário de uma modesta mercearia, a Santa Clara, no Jardim Paulista, zona nobre de São Paulo. A segunda personagem principal, a seleção brasileira, que se preparava para disputar a Copa do Mundo, que se realizaria nos gélidos campos suecos. Novamente, como acontecia há duas décadas, a imprensa montava guarda na porta do estabelecimento daquele senhor, que nutria o sobrenome “Marques”, herança do pai português Manuel Augusto, segundo presidente da história da Portuguesa de Desportos, e o “Guarisi”, benção da mãe italiana Wanda. Um senhor que desde o “Maracanazo” de 1950 não queria saber de futebol.

Mas os jornalistas queriam ouvi-lo. Precisavam extrair dele o sentido de ser campeão mundial de futebol. Afinal nenhum outro brasileiro ostentava algo parecido. Com exceção de seu Amphiloquio, que, na distante data de 10 de junho de 1934, dia em que a Azzurra conquistou sua primeira Copa do Mundo, tornou-se o primeiro jogador de futebol do Brasil a sentir o gostinho de fazer parte do melhor esquadrão do planeta. Tampouco importava se o pavilhão que defendera era pintado com as cores verde, vermelho e branco ou se a Itália, sua nova nação, estivesse sob a ditadura fascista de Benito Mussolini. Nenhum outro teria o mesmo status de Filó, este o apelido que o consagrou nas canchas brasileiras, pelo menos até surgirem, em julho de 1958, Garrincha, Pelé, Didi, Nilton Santos e Cia.

Desejosos em saber como era ser o melhor do mundo, os repórteres o enchiam de perguntas sobre os tempos em que fora um ponta-direita dos mais habilidosos na primeira metade do século XX.

O grande Filó nasceu na rua Araújo, no Centro paulistano, no dia 26 de dezembro de 1905. Ele respondia aos jornalistas com orgulho, mas quase didaticamente. Falava linearmente, ou seja, do início, quando começou aos 12 anos, em 1917, no time infantil do aristocrático C.A. Paulistano, onde jogava o craque Rubens Salles, um dos grandes ídolos da moçada paulistana nos primórdios do futebol no Brasil, para somente depois recordar sobre sua breve passagem pelo time infantil do São Bento, em 1918.

Enchia-se de orgulho ao narrar sua estreia, com apenas 17 anos, no time principal da Portuguesa de Desportos, no dia 30 de abril de 1922, para onde foi levado pelo pai, cartola da Lusa. De cara, deparou-se com o temido Paulistano. E o resultado não seria outro senão a vitória do poderoso clube da aristocracia: 2 a 0. Mas o menino não se importou. Apesar da pouca idade, jogava ao lado de alguns dos primeiros ídolos da Portuguesa, como o goleiro Mesquita; os zagueiros Remo e Gaúcho; a linha média formada por Meirelles, Aloya e Canhoto e os atacantes Salerno, Dino, Coelho e Mancuso. O jovem Filó firmou-se como o novo craque da Lusa.

No Campeonato Paulista de 1924, seu time empatou em 5 a 5 com o Brás. Filó saiu de campo consagrado ao assinalar os cinco gols da Portuguesa. No mesmo ano, lembraram-se dele para compor a seleção paulista. Estreou no dia 9 de novembro, quando os paranaenses conheceram o poder de fogo de Filó, que marcou dois gols da goleada de 5 a 0 aplicada no escrete adversário. Estava cada vez mais difícil mantê-lo na Portuguesa.

Filó, cujo apelido era “Maquininha” devido à versatilidade em campo — cedeu ao assédio dos cartolas do Paulistano, sobretudo o de Antonio Prado Junior, que articulara com representantes esportivos franceses uma excursão inédita de um time brasileiro à Europa.

O futebol sul-americano estava na crista da onda. Os uruguaios conquistaram a medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1924 e, no ano seguinte, Nacional de Montevidéu, Boca Juniors e Paulistano arrumaram as malas de seus craques para uma longa viagem ao Velho Continente. Filó e todos os seus companheiros de Paulistano, como Friedenreich, Araken Patusca, Clodô, Barthô e Mario de Andrada, embarcaram no dia 10 de fevereiro de 1925, em Santos, no navio Zeelandia, do Lord Real Holandês, rumo a Cherburgo, na França.

O Paulistano disputou 10 partidas e venceu nove. Autor de quatro dos trinta gols marcados pela equipe brasileira, Filó foi um dos destaques da extraordinária campanha.

O estádio de Búfalos, em Mont Rouge, Paris, estava lotado, no dia 15 de março de 1925, para o primeiro jogo do Paulistano em solo francês, e logo contra um escrete bleau, blanc et rouge. Na arquibancada havia muita gente de nome, dentre as quais representantes políticos da França e os brasileiros Washington Luís [então governador de São Paulo], Souza Dantas [diplomata] e o príncipe D. Pedro de Orleans e Bragança. Mas o que ninguém esperava — nem mesmo os ilustres brasileiros — era uma goleada de 7 a 2 do Paulistano, com Filó balançado as redes uma vez.

E o Paulistano do Filó não parava de ganhar jogos. Um atrás do outro. Os jornais franceses não falavam em outra coisa senão sobre “les rois du football” [Os Reis do Futebol]. As reportagens do Américo Rocha Neto, do jornal O Estado de S. Paulo, e de Mário Vespaziano de Macedo, do São Paulo Esportivo, também apontavam o Paulistano como um esquedrão imbatível. Quando o Paulistano, no último jogo da campanha, aplicou um rotundo 6 a 0 na seleção português, aí não havia mais dúvida: os caras eram mesmo os maiorais. Mas a peleja contra os lusitanos teve de acabar aos 30 minutos do segundo tempo. Caso a delegação não deixasse logo o estádio, perderia o navio de volta ao Brasil.

Naquele mesmo ano da estupenda campanha do Paulistano pela Europa, Filó vestiu a camisa da seleção brasileira pela primeira vez. Atuou na vitória do Brasil por 5 a 2 sobre o Paraguai, no dia 6 de dezembro de 1925, e fez um dos gols do match. O escrete brasileiro formou com: Tuffy, Penaforte e Clodô; Nascimento, Floriano e Fortes; Filó, Lagarto, Friedenreich, Nilo e Moderato. Filó jogaria mais quatro partidas pela seleção do Brasil.

Em 1926, o ponta-direita ajudou o Paulistano a conquistar o Campeonato Paulista e encerrou a competição como artilheiro, com 16 gols. Na temporada seguinte, faturou o bicampeonato, mas pela Liga Amadora Futebolística [LAF]. No ano de 1929, Filó foi duas vezes campeão paulista. Pelo Paulistano, que disputou o torneio realizado pela LAF, e pelo Corinthians, que disputou a competição organizada pela Associação Paulista de Esportes Atléticos [Apea]. Pelo clube alvinegro, conquistaria o bicampeonato em 1930.

A ITÁLIA NA VIDA DE FILÓ

Com os craques brasileiros se destacando aqui e em jogos no exterior e, claro, com a insatisfação reinante com o amadorismo no futebol, o mercado europeu começou a atrair muitos jogadores. Especialmente a Itália, o novo eldorado. E nem precisaria de sobrenome italiano para que algum craque ingressasse no calcio. Burlavam-se certidões de nascimento e um “Da Silva” se tornaria um “Giuseppe” da noite para o dia. “Oriundi” torto, mas que funcionava. “Qualquer jogador, branco, mulato ou preto podia ir embora. Bastava jogar bem futebol, querer fazer a Europa. O jogador branco, então, tinha todas as facilidades. Era branco se trocasse de nome, se arranjasse um sobrenome italiano, ninguém na Itália daria pela coisa”, destacou Mario Filho. O Guarisi, da mãe, garantiu o passaporte de Filó sem nenhum subterfúgio. Para o cronista, o assédio ao Filó era, descaradamente, o mais acintoso: “O caso de Amphiloquio Marques, o Filó do escrete paulista, do escrete brasileiro. Quem não sabia em São Paulo, os jornais cansados de publicar biografias dele, que Filó era filho de portugueses? Pois chegou a jogar na azurra, posando para os fotógrafos de braços levantados. Aquele ali, de braços levantados, não era o Filó, Amphiloquio Marques, era o Guarisi, Amphiloquio Guarisi.”

***

Esta introdução da biografia de Filó integra o primeiro volume de “Ídolos & Épocas – A Era do amadorismo, de 1900 a 1933”, contemplando biografias de craques com iniciais de A a F, a ser lançado em breve.

A MÍSTICA DA CAMISA SETE

por André Felipe de Lima


Há coisas que só acontecem ao Botafogo. Ouço até hoje essa máxima. Porém, embora a frase tenha sido praticamente patenteada pelos alvinegros, nos últimos 12 anos sequestrei-a para mim. Explico o porquê. Logo que me transferi de mala, cuia e livros para a Tijuca, um, digamos, “espírito que anda” (e não é o Fantasma dos quadrinhos) me cerca vestindo uma camisa sete do Botafogo. A primeira vez que o encontrei foi na fila de um banco. Ele tentou puxar um papo. Não dei muita bola porque estava estressado e fazendo cálculos – aliás, minha vida é mais matemática que literatura ultimamente. Pedi licença ao botafoguense e que me deixasse calcular em paz. Dali em diante, em cada canto da Tijuca e até de Vila Isabel me deparo constantemente com ele e sua indefectível camisa sete.

O camarada parece me seguir. Hoje não foi diferente. Passeando com minha esposa e meu filho no shopping Tijuca, lá estava o cara novamente. Nossos olhares se fitaram, e concluí: trata-se do meu anjo da guarda. Não tenho dúvida disso. De algum lugar do céu, a camisa sete do Mané me acompanha. Passo a passo, ensinando-me a driblar essa tão difícil marcadora que se chama vida. Deveria ter dado atenção ao botafoguense naquele primeiro encontro. Há coisas que só acontecem conosco e, vá lá, ao Botafogo.

NOEL ROSA, SAMBA COMO TESTEMUNHA E VASCO NO CORAÇÃO

por André Felipe de Lima


Quando o craque José Monteiro, talvez o maior da história do Andarahy e tão elogiado por Mario Filho no livro “O negro no futebol brasileiro”, morreu em 1919, o menino Noel Rosa, nascido em Vila Isabel, bairro vizinho ao do charmoso clube alviverde, era apenas um menino de nove anos. Certamente ouvia o pai e muitos outros falarem das bravuras do Monteiro. Sem dúvida, Noel Rosa cresceu com uma quedinha pelo Andarahy, um clube que encarava sem temor os adversários endinheirados da zonal sul. Falo de Fluminense, Botafogo e Flamengo, além do tijucano América, o então mais forte e rico da zona norte. O Vasco viria somente na década seguinte. Não deu tempo do Monteiro enfrentar aquele timaço com feras vindas do Bangu, e a lista era recheada delas. Havia Bolão, Itália e, sobretudo, Fausto dos Santos, que cresceu bem pertinho do Noel Rosa, na Aldeia Campista, um pedaço de chão que cobre parte da Tijuca e de Vila Isabel.

Não há, contudo, registros se os dois se conheceram ainda adolescentes. Mas é bem possível, afinal Noel Rosa e Fausto eram assíduos frequentadores de rodas de samba em Vila Isabel e dos empolgantes botequins nas concorridas esquinas do Boulevard 28 de Setembro e adjacências. Esbarrarem-se neles era pule de dez. Tornaram-se amigos, de fato.

Noel Rosa, no começo dos anos de 1930, já se revelava como um dos principais nomes do samba na cidade. Fausto simplesmente era o “Maravilha negra”, melhor jogador do país e único a se salvar do “naufrágio” da seleção brasileira na primeira edição de uma Copa do Mundo, em 1930, no Uruguai.

“Noel Rosa gosta de passear na chuva sem qualquer agasalho e chapéu. É torcedor de futebol, assistindo os jogos noturnos e preferindo, como jogador, Fausto.”

Essa simples nota jornalística perdida em uma página de uma edição da revista Carioca, de 1936, pode ser (acredite) o registro mais assertivo de que Noel Rosa gostava de futebol e era vascaíno de — recorrendo à tradicionalíssima expressão portuguesa — quatro costados. A aparentemente inexpressiva nota pode ter dito muito mais do que se imagina sobre o que poderia acontecer com Noel Rosa no ano seguinte.

Tanto ele quanto Fausto tiveram destinos idênticos. As trajetórias, idem. Além de crescerem na mesma região, ambos amavam o samba. Enquanto um, o Fausto — diziam —, era um “pé de valsa” e bamba de bola inconteste, falavam de Noel que no violão e nas linhas musicais, entre pandeiros e surdos, era um sem igual. Mas os dois eram amigos, o que, lamentavelmente, poucos (ou praticamente nenhum) registros podem confirmar. Mas os indícios nos induzem a crer que eram parceiros nas etílicas rodas de samba da Vila, e sempre abraçados a muitas mulheres. Mas apenas uma parecia ser a companheira de ambos: a lua, a mais genuína “dama da noite”. Os três eram indefectíveis notívagos. Portanto o ocaso das duas legendas culturais daquela década só poderia ser mesmo traduzido por noites enluaradas e românticas sob o fundo musical do samba. A tuberculose acometeu os dois vascaínos. Noel morreria em maio de 1937. Fausto, no ano seguinte.

O Vasco foi — ao menos uma vez — cantado por Noel Rosa. O curioso é que o jogador citado na letra do samba “Quem dá mais?” não foi o amigo Fausto e sim o Russinho, o artilheiro das madeixas louras e olhos claros que começou a carreira (olhe ele aí de novo…) no Andarahy:

“Ninguém dá mais de um conto de réis?/ O Vasco paga o lote na batata/ E em vez de barata/ Oferece ao Russinho uma mulata.”

A “barata” citada no samba era um carro Chrysler que Russinho ganhou após vencer um concurso de jogador mais popular do país promovido pelos cigarros Veado.

Será que depois dessa despretensiosa crônica há ainda alguma dúvida da paixão de Noel Rosa pelo Vasco? O rubro-negro e também genial sambista Wilson Baptista, rival eterno do velho “Queixinho”, que o diga. O “Clássico dos milhões” entre ambos parece mesmo eternizado.