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andré felipe de lima

HELENO, O ‘FILHO DE ARES’, OU O CENTENÁRIO DE UM DEUS ALVINEGRO

por André Felipe de Lima


No período em que fui repórter do já extinto Jornal do Commercio, no Rio de Janeiro, tive o imenso prazer de ter como colega o monstro sagrado da imprensa carioca Carlos Rangel, o querido “Rangelão”, que, como denota o apelido, tratava-se de um camarada alto no tamanho e, evidentemente, na competência como repórter. Na camaradagem também. “Rangelão”, uma figura sempre amável, infelizmente, não está mais entre nós, e lamento profundamente nas várias vezes que conversamos, entre intermináveis doses de café no botequim em frente à redação, não termos abordado sobre a figura de Heleno de Freitas. Falávamos de política, economia e cultura, mas jamais sobre Heleno. Pena…

Carlos Rangel escreveu uma biografia sobre Heleno intitulada “O Homem que sonhou com a Copa do Mundo”. Livro que este jornalista incauto só leria muitos anos depois para escrever sobre Heleno para a enciclopédia “Ídolos-Dicionário dos craques”, hoje recolhida em meus drives, gavetas e estantes da minha redação particular. Os empenhos pioneiros de Carlos Rangel e, pouco antes dele, de João Máximo e Marcos de Castro foram fundamentais para que entendêssemos (ou começássemos, pelo menos, a compreender) a incomum trajetória de Heleno. Mas foi a obra singular de Marcos Eduardo Neves, ao seguir o caminho da excelente investigação após um papo com Luiz Mendes, que revelou de vez quem foi Heleno de Freitas.

Heleno faria 100 anos neste dia 12 de fevereiro. Nenhum jogador teve a vida tão bem desenhada, perfeita para roteiros de cinema, teatro, novela, livros ou seja lá que meio de arte for possível nestes dias tão midiáticos em que vivemos. Cada momento da vida do Heleno tinha um norte trágico que pedia a boa palavra, o bom texto, a narrativa precisamente calculada pela arte que tão bem pintou-o como craque da pelota. Sim, desde a infância essa verve contornava Heleno. Um animismo sempre pareceu ladeá-lo.

Não diria que o grande craque noir brasileiro vivia às turras com o destino. O destino sim é que estava domado por ele. Pelo menos era assim que pensava Heleno e foi assim que o gênio genioso (como o definia Luiz Mendes) viveu. Brigando e vivendo, sejamos sinceros. Guerreando consigo mesmo, assim construía-se sua verdade. A cada grito com um companheiro de time ou treinador, Heleno parecia gritar com seu próprio ego.

Mas o irascível Heleno era o grito encarnado. Se não descarregava sua fúria contra alguém, despejava-a em seus chutes ou cabeçadas fulminantes. Sua face apolínea era a máscara para um Ares essencialmente enrustido, mas que o movia intensamente. E foi este mesmo deus grego que o batizou, que parece tê-lo adotado logo no primeiro grito do Heleno antes mesmo da pia batismal. Foi Ares quem definitivamente o desenhara. Pintou Heleno, sem tintas dionisíacas; pintou-o um grego guerreiro, que não poderia ter outro nome senão este que recebera em São João Nepomuceno e que foi devidamente imortalizado nos gramados e na Pérgola do Copacabana Palace, onde fumava seu cigarro e bebia seu uísque, observando o tempo e as beldades na sofisticada piscina. 

O interminável sonho chamado Heleno jamais nos deixará, como bem o descreveu Nelson Rodrigues: “Não há no futebol brasileiro jogador mais romanesco”. Como discordar do “Anjo pornográfico”? Como discordar do Rangelão? Como discordar do João Máximo e do Marcos de Castro? Como discordar do Marcos Eduardo Neves? Todos (ao seu modo) viram Heleno jogar, sobretudo Marcos Eduardo, que sequer era nascido quando Heleno foi acolhido por seu pai Ares, no Olimpo. Marcos, como nenhum outro, esteve perto de Heleno. Foi, talvez, seu melhor amigo. Amigo do solitário filho de Ares. Heleno tinha o mundo a sua volta, mas não as pessoas deste mundo.

Definitivamente, se houvesse futebol na Grécia Antiga, a Grécia das odes ao belo, ao harmoniosamente belo, certamente o seu deus da bola seria aquele solitário alvinegro. Seria Heleno.

‘POPÓ ERA DANADO NA BOLA’. ASSIM FALAVA SANTA DULCE

por André Felipe de Lima


Lá pelos idos de 1920 havia, em São Paulo, Friedenreich. No Rio, então capital federal, havia Russinho. E na Bahia o maior de todos os jogadores do Brasil — pelo menos para fãs ilustres como Jorge Amado e Irmã Dulce, nossa Santa Dulce dos Pobres. Havia na boa terra Apolinário Santana, popularmente conhecido como Popó, um mítico craque do Botafogo de Salvador e, sobretudo, do Ypiranga, clube cuja charmosa camisa aurinegra era a mais amada na cidade até a popularização do Esporte Clube Bahia e do Vitória nos anos de 1930 e fins de 1940, respectivamente.

Aos 13 anos, Irmã Dulce, antes de se tornar a grande religiosa de Salvador, sempre ia ao Campo da Graça somente para ver Popó. “Se ele fosse vivo hoje eu acho que era Pelé. Era danado na bola”, disse ela, em entrevista dos anos de 1980.

Há alguns anos tive o imenso prazer — mesmo que por telefone — de bater um longo papo com o biógrafo de Popó, o professor e historiador Aloildo Gomes Pires, autor do livro “Popó: O craque do povo”, lançado em 1999 e, hoje, uma obra rara de se encontrar, inclusive em sebos. “Em meados dos anos de 1970, quase duas décadas depois da morte do jogador, lembro de minha sogra jogando futebol com minha filha, de apenas 2 anos. E gritava: Chuta, Popó! Chuta!”, disse-me Aloildo, descrevendo a cena também mencionada na biografia do ídolo.

Hoje, dia 9 de fevereiro, Popó nasceu em Salvador, mais precisamente no bairro Rio Vermelho. Lamentavelmente, as gerações mais recentes ignoram quem foi Popó, ídolo e orgulho da Bahia em passado remoto, sobretudo por comandar com genialidade e coragem a seleção baiana campeã brasileira interestadual em 1934, até então a principal competição nacional de futebol, derrotando na final o temido escrete paulista.


Em Salvador, os transeuntes que passam pela principal via do bairro Engenho Velho da Federação, a “Apolinário Santana”, sequer imaginam que o camarada que emprestou o nome para aquela rua foi um dia o mágico da bola Popó, que tanta cobiça despertou nos clubes cariocas, principalmente o Fluminense, que até uma excursão a Salvador incrementou para tentar seduzi-lo.

No dia 15 de abril de 1923, no inesquecível Campo da Graça, Popó, defendendo o escrete baiano, destruiu o poderoso Tricolor das Laranjeiras. Após o jogo, um cartola do Fluminense enviara ao Rio de Janeiro o seguinte telegrama que, laconicamente, dizia: Fluminense 4 x Popó 5”. Ou seja, os cinco gols foram dele, que foi um dos jogadores mais versáteis de seu tempo. Jogou de zagueiro, centroavante, mas brilhou mesmo como um elegante centromédio (hoje, volante).

Popó foi o gênio em “melar” (antigo significado para drible em Salvador). Diz a antiga quadrinha: “Chuta, chuta/ Popó chuta/Chuta, por favor/Mela, mela, mela, mela/Mela e lá vai gol”. Como bem o descreveu o cordelista Edosn Bulos, também citado por Aloildo na biografia do craque, Popó “foi Botafogo e Ypiranga/ não brigava ou tinha zanga/ era um Deus enaltecido”. 

Considerando a paixão nos depoimentos, Popó deve ter sido mesmo tudo o que escreveram e falaram sobre ele.

NO VÍDEO ABAIXO, IRMÃ DULCE CONFESSA O AMOR PELO YPIRANGA E POR POPÓ:

#Ídolos #Popó #HistóriadoFutebolBaiano #YpirangadeSalvador #AloildoGomesPires

BUIÃO FEZ DA BOLA DE FUTEBOL UM ÔNIBUS. E FICOU RICO

por André Felipe de Lima


Os colegas caçoavam do menino João Bosco dos Santos por ele ser baixinho e um pouco gordinho. Logo passaram a chamá-lo de Bujão.

O técnico do time da garotada, o Juca Sapateiro, gostava de mandar publicar no jornal de Vespasiano, cidade mineira onde nasceu o garoto João Bosco, as proezas e as escalações do seu time, inclusive com os apelidos de cada menino. Todo mundo tinha um. Ninguém ficava impune.

Em uma daquelas resenhas do Juca Sapateiro, saiu “Buião” em vez de “Bujão”. Dali em diante João Bosco seria “Buião” para sempre.

O menino gordinho, mas muito bom de bola, nasceu no dia 31 de janeiro de 1946. Desde pequeno, com apenas sete anos (apesar do sobrepeso), se insinuava um ponta-direita veloz. Aos 10, estava no Vespasiano e, aos 16, no Independente, na segunda divisão do campeonato mineiro. Trabalhava como garçom em Vespasiano, mas mantinha a esperança de, um dia, jogar futebol à vera. O sonho não estava tão distante. Havia olheiros do Atlético Mineiro e do Cruzeiro assediando pai de Buião.

Ao completar 18 anos, em 1964, o arisco ponta foi levado pelo treinador Afonso Bandejão para Atlético Mineiro, que confirmara a contratação com o pai de Buião, antes do rival Cruzeiro. A estreia aconteceu no jogo contra o Paraense, de Pará de Minas. E não é que o garoto Buião fez o gol da vitória?

Torcida entusiasmada e cartolas felizes, uma fórmula que rendeu, no dia seguinte ao primeiro jogo, um contrato de dois anos com o Galo. E Bandejão, que, como zagueiro, também defendera o Atlético por mais de uma década, conseguiu ser contrato como técnico do Atlético.

Buião mal sabia, mas já era ídolo da torcida. Deixara de ser apenas um dos 15 filhos de uma humilde família para brilhar no futebol. Mais tarde, com o sucesso na posição, chamariam Buião de “o novo Garrincha”. Mesmo com a exagerada comparação, ele foi, com inteira justiça, relacionado entre os 44 pré-selecionáveis para Copa do Mundo de 1966.

Como o futebol de Minas pagava pouco, Buião – mesmo reconhecendo o carinho dos atleticanos e querendo permanecer em Belo Horizonte – transferiu-se para o Corinthians em 1968, permanecendo no clube até 1970.

Muitos o queriam. Buião era cobiçadíssimo, de Norte a Sul. São Paulo e Flamengo eram os mais fortes adversários do Timão no páreo pelo Buião. O Tricolor paulista, por exemplo, ofereceu três jogadores por empréstimo: Benê – craque, mas já em fim de carreira —, Carlos Alberto e Fábio. Mas foi no Corinthians em que ele ficou e onde ganhou, de cara, muito dinheiro.

A ida de Buião para o Corinthians foi uma das maiores transações da época no futebol brasileiro. Algo na casa dos 400 milhões de cruzeiros. Somente ele, que tinha apenas 20 anos e fama de melhor ponta-direita de Minas, teve direito a 15% de luvas. “Pra começar, fiz um contrato inédito, de três anos. Como era proibido, assinei dois contratos: um de dois anos e outro de um.”

Como todo mineiro que se preze, Buião chegou ao Parque São Jorge vestindo um terno de casimira escura e uma camisa social, sem gravata. O Sol naquela tarde de sábado estava forte. O craque tirou o paletó e sentou-se à beira do gramado para assistir ao jogo do Timão contra a Ferroviária, de Araraquara. Concedeu entrevistas, autografou à vontade e foi paparicado por jornalistas, carolas e torcedores. Tornara-se ídolo de véspera.

Buião tinha fé de que traria alegrias para a torcida tanto quanto Paulo Borges, o titular da ponta-direita: “Não perco missa e minha madrinha, Nossa Senhora da Aparecida, haverá de me ajudar. Já pensaram se, na noite de minha estreia, o Corinthians vence o Santos?”.

Chegara para tirar a vaga de Paulo Borges – ídolo incontestável, sobretudo por ter sido o principal ator da epopeica vitória de 2 a 0 sobre o Santos, que pôs fim a um jejum de longos e tenebrosos onze anos (e 22 partidas) sem vitória sobre o rival.

E foi naquele jogo que Buião estreou no Corinthians, com ele na ponta e Paulo Borges sendo deslocado para meia-direita. Pé-quente, esse Buião…

O dinheiro das luvas que recebera do Corinthians, Buião deu ao pai, José Sérvulo, o Barão, para comprar algumas kombis e montar uma frota de transporte escolar. O previdente Buião já pensava no futuro longe do futebol.

Enquanto ainda tinha lenha para queimar nos gramados, Buião disputava a ponta-direita do Timão com Paulo Borges.

Acreditava que seria facilmente o titular. Principalmente após ouvir de Wadih Helu, então presidente do clube, que não contrataria Paulo Borges, pois estava emprestado pelo Bangu e teria de voltar ao Rio de Janeiro.


Mas a pressão da torcida para que Paulo Borges assinasse em definitivo com o Timão foi grande, sobretudo após a vitória contra o Santos. Além da ascensão de Paulo Borges, outros fatos foram decisivos para que Buião perdesse espaço no time.

Após o craque mineiro estrear bem em 1968, o técnico Dino Sani o deixou na reserva no jogo seguinte. Protestou publicamente, especialmente durante entrevistas, e acabou sendo pouco utilizado nos jogos seguintes àquele contra o Santos. Para piorar, discutiu duas vezes com Rivellino, durante os treinos. Em um dos bate-bocas, por pouco não houve briga corporal.

A situação complicara no Corinthians, com Buião tendo o passe emprestado à Ferroviária, de Araraquara, em 1970. Uma curta temporada de apenas quatro meses, que só serviu para desestimulá-lo ainda mais.

Buião regressou ao Corinthians, que já não tinha mais Paulo Borges, mas tinha o jovem Vaguinho (Wagno de Freitas) despontando na ponta-direita. Buião acabaria deixando o Parque São Jorge e seguindo para a Gávea, em 1971. No Flamengo, ficou por empréstimo durante um ano, alternando grandes atuações com outras sofríveis.

O Flamengo se interessou em mantê-lo, mas o Corinthians pediu os mesmos 400 mil cruzeiros que pagara ao Atlético Mineiro quatro anos antes. Os cartolas rubro-negros desistiram de Buião, que voltou ao Parque São Jorge, imaginando uma nova fase, de gols e estabilidade. Nada deu certo para ele.

A segunda passagem pelo Corinthians foi menos auspiciosa que a anterior e, em 1972, acabou emprestado ao Atlético Paranaense, levado por Almir de Almeida, que ainda acreditava em seu futebol. Buião não voltaria mais ao Corinthians, que defendeu em 57 partidas , marcando apenas dois gols.

“Eu me acomodei. Se tivesse pegado firme, estaria lá até hoje, como o Vaguinho, que chegou depois. Mas não dava, eu não tinha ânimo. O banco era duro demais para quem tinha 22 anos e estava em plena forma. Cada vez que eu me lembrava da minha saída do Atlético, eu chorava. Mas a culpa foi minha, eu não lutei como devia pra sair daquela situação de reserva.”

No Rubro-Negro da Baixada, Buião foi apontado o grande destaque do campeonato paranaense de 1975. No ano seguinte, deixou o clube com o qual jamais conquistou títulos; o que não lhe impediu de manter grande empatia com a torcida e tornar-se ídolo, um dos maiores nos anos de 1970.

Se a torcida o idolatrava, não se pode dizer o mesmo do então presidente do Atlético Paranaense, Anísio Khouri, que ofereceu ao Buião menos do que recebia como salário para permanecer no clube. Buião por pouco não aceitou, não fosse uma proposta do já extinto Colorado. O duro foi ter de pagar ao Atlético 60 mil cruzeiros de rescisão contratual, pois Buião era o dono do próprio passe ao deixar o Corinthians.

Depois do Furacão da Baixada, outros clubes passaram pela vida de Buião, ou vice-versa: Grêmio, Rio Negro (Manaus), Sampaio Corrêa (Maranhão)  e Noroeste (Bauru). Sem sucesso.

Nem o Timão, nem o Mengão, tampouco o Atlético Paranaense lhe deram um título. O único troféu que Buião levantou foi pelo Colorado, mesmo assim dividindo o campeonato paranaense de 1980 com o Cascavel.

Mas pode-se dizer que Buião é um dos maiores ídolos da história do Colorado. O começo no clube, em 1977, foi pedreira. Por pouco, não foi dispensado. Só seria reconhecido no ano seguinte, quando o escolheram o melhor ponteiro do futebol paranaense, feito que repetiria em 1979.

No ano seguinte, o Coritiba o queria no time. Pedido do treinador do Coxa, Mario Juliato, ao presidente do Coritiba, Amauri dos Santos. Mas as negociações não avançaram.

Quando encerrou sua carreira, em abril de 1982, no próprio Colorado, que inesperadamente o dispensou, Buião, sem clube que o quisesse, retornou a Vespasiano.

Em abril do ano seguinte, cartolas do Atlético Mineiro e do Colorado, talvez por remorso, decidiram homenageá-lo com placas e um jogo entre os dois clubes, no Mineirão, que contou com um público de mais de 50 mil pessoas. Do meia Marinho, ídolo do Colorado como ele, recebeu uma placa; de Éder, também ídolo do Galo e seu conterrâneo, recebeu outra.

Foi tudo inesperado. Buião chegara ao estádio apenas para assistir ao jogo, mas os dirigentes dos dois clubes o obrigaram a entrar em campo e a vestir as duas camisas para a merecida homenagem ao grande ídolo que foi no passado. Buião foi um dos melhores ponteiros que Minas Gerais e Paraná já viram jogar.

FAMÍLIA ACIMA DE TUDO

Desde os tempos em que viajava o Brasil por conta da carreira de jogador de futebol, Buião fazia sempre o possível para ficar perto da numerosa família, em Vespasiano, onde, após pendurar as chuteiras, dedicou-se apenas à sua empresa. Até como motorista de sua própria frota ele trabalhou.

Tinha a convicção que vida de jogador de futebol é curta e sucesso nela é efêmero. Ganhar dinheiro com o futebol era até possível, mas investir bem depois de deixar a bola é que representa o grande desafio.

Muitos, mesmo com idade avançada para um atleta, ainda insistem. Buião sempre definiu a postura como falta de consciência do ridículo, como declarou, em 1980, ao repórter Jorge Eduardo , de “O Estado de S. Paulo”:

“Quando o profissional deixa de servir, em qualquer circunstância, aí sim, chegou a hora; e se ele insiste no erro, passa a ser motivo de chacota e humilhações. E eu não quero que isso aconteça comigo.”


O pai e dois irmãos (dos 15 filhos de “seu” Barão) sempre trabalharam com ele na Viação Buião. Além do ex-ponta, dois de seus irmãos também foram jogadores de futebol: um, defendeu o Valeriodoce de Itabira (MG) e o Goiânia; enquanto o outro não passou de juvenil do Atlético Mineiro.

A esposa, a paranaense Maria Aparecida Barros dos Santos, com quem Buião se casou em 1974, trabalhava como trocadora no ônibus em que o ex-jogador dirigia. Formada em Engenharia Química, ela deixou o emprego público no Paraná para acompanhar o marido no novo empreendimento. Infelizmente, Maria faleceu. Com ela, Buião teve três filhos.

Buião, que montou seu negócio durante os 18 anos de carreira, tem hoje dezenas de ônibus e a Viação Buião é concessionária do transporte coletivo de Vespasiano.

Mas o futebol permanece na vida do ex-craque. Quando lhe sobra um tempo, assiste aos treinos no centro de treinamento do Atlético Mineiro e arrisca uma pegada de treinador. Dirigiu o Valença, clube amador da sua cidade, mas sem compromisso formal. 

Buião achou que política era tão fácil quanto jogar futebol. Arriscou-se nas eleições de 1998, mas não conseguiu eleger-se a deputado estadual por Minas Gerais.

Foi melhor mesmo permanecer cuidando do empreendimento e curtindo as lembranças de que um dia ele, o craque Buião, foi ídolo do futebol brasileiro comparado até mesmo com Garrincha.

ZAMORA, O ÍDOLO QUE GANHOU A “VIDA” DE PRESENTE

por André Felipe de Lima


“Quando alguém é uma lenda, sua vida não é mais dele, mas é composta de fragmentos de vida que outros imaginavam, viam, sentiam. Quando alguém é chamado de “Mito”, como se fosse chamado de “Divino”, não é possível questionar a objetividade da história e, desse modo, realidade e ficção, versos meio cozidos, se juntam nas biografias até que se desenhe caricaturas onde havia apenas carne, pele e sangue”. Essa definição lírica assinada pelo escritor espanhol Marcos Pereda é a melhor que li sobre Ricardo Zamora, o maior e melhor goleiro espanhol de todos os tempos. Zamora faria 119 anos hoje. Foi tão extraordinário que o chamavam de “Divino”. Lendas e verdades — como bem definiu Pereda — caminharam juntas para narrar o que foi e o que jogou Zamora. Os mais velhos ou mesmo os que conhecem a história do futebol espanhol não têm dúvida em afirmar que foi o “Divino” o melhor arqueiro que já vestiu as camisas do Espanyol, do Barcelona e do Real Madrid. Sim, nenhum outro o superou até hoje embaixo das balizas nos três grandes clubes espanhóis. 

Rebelde para uns, mito para outros. Mas em comum para todos… excepcional. Zamora voava junto à bola. Seguro, firme, inabalável diziam os que o viram jogar. A rebeldia foi percebida mais no Zamora que escrevia. Zamora, sim, escreveu. Teve seu momento de periodista, e isso aconteceu logo no começo da Guerra Espanhola, em 1936, quando produziu alguns artigos para o jornal católico YA, que, embora conservador em seu começo, em 1935, mostrava-se contrário ao obscuro generalíssimo Franco, que já ansiava o poder. Embora os esquerdistas não vissem Zamora com bons olhos, ele — pelo menos naquele começo de conflito armado — estava do lado bom da luta fratricida em solo pátrio. Não coadunava com a república golpista instaurada. Um dos episódios que confirmam a rebeldia de Zamora contra a mobilização ditatorial franquista aconteceu durante um jantar oferecido aos campeões da Copa do Rei de 36. Um fotógrafo teria registrado o momento em que Zamora brindou a todos com um resistente discurso: “Viva Madrid! Viva a Espanha!”, em clara oposição a Franco. Mas um jornalista no local complementou: “E viva a república!”. Zamora silenciou. Todos silenciaram naquele instante como se obedecessem à “ordem” do “Divino”.


Zamora sentiu os efeitos do discurso e do que escrevera no YA. Teve de se esconder no primeiro ano da guerra civil. Várias vezes foi dado como morto por jornais da Espanha e até mesmo de outros países europeus. Ora escreviam que o corpo dele tinha sido visto crivado de balas em uma vala ora escreviam que um funeral acontecera em Vallodolid para os restos mortais do goleiro. Zamora “morria” todo dia naquela tragédia que abalara a nação. Mas estava vivo e preso. Tivera a sorte que muitos companheiros de cela não tiveram. Praticamente todos acabaram fuzilados. O mesmo destino teve o poeta Federico García Lorca, naquele mesmo ano sombrio de 1936. A sorte de Zamora foi ser simplesmente Zamora, ou seja, um ídolo. Mas os carcereiros cegos não o identificaram. Um escritor e poeta como Lorca sim. Chamava-se Pedro Luis de Gálvez. Foi ele quem impediu que o goleiro fosse baleado em Madri no início da guerra civil. Na prisão, Gálvez beija-o, abraça-o fortemente e grita desesperadamente: “Vejam, é Ricardo Zamora, o grande goleiro internacional. Ele é meu amigo e me alimentou. Então todos aqui não deixem que toquem um fio de cabelo sequer dele, eu os proíbo! É uma injustiça que esteja aqui!”

Zamora é solto em novembro de 36. Livre, autografa uma fotografia e a envia ao amigo prisioneiro com uma singela dedicatória: “Para o único homem que deixei me beijar na prisão”. No dia 20 de abril de 1940, Gálvez foi sentenciado ao balaço. Zamora depõem em favor ao amigo. Nada adianta a palavra do ídolo. A ditadura, seja ela qual for, não respeita ícones sociais e culturais. Não respeita nada. Nada mesmo. Nos últimos momentos de Gálvez, ele exibiu a todos a foto que recebera de Zamora. Dali para a morte, mas com uma honra indescritível e comovente. 

Zamora permaneceu escondido. Até mesmo a Embaixada da Argentina o acolheu e a sua esposa e filho. Começara a temer grupos mais exaltados dos contrários a Franco. Os dias na embaixada foram muito difíceis para Zamora e a família, que dividiam um cômodo com vários refugiados. A comida era escassa. O desespero era imenso, mas o goleiro acreditava que se saísse às ruas sua popularidade o salvaria. Dissuadiram-no da temerária ideia.

Protegido pelo governo argentino, Zamora seguiu para Nice, na França, e permaneceu em silêncio a ponto de acharem que havia morrido. Mas Zamora decidiu falar. Em 1937, defendia-se ao afirmar que não desejava fazer política; não era fascista e ansiava apenas voltar ao país e fazer o que mais amava: jogar futebol:


“Sempre fui um homem íntegro. Um espanhol cem por cento. Sempre servi meu país com amor e entusiasmo. Acreditava que, no final de uma carreira descrita como gloriosa, tinha o direito de respeitar meus compatriotas. Projetos para o futuro? Não levei um tiro, estou feliz. Sou jovem e forte. Amo meu esporte mais do que nunca e não pensei em abandoná-lo (…) Nos últimos meses, houve muita conversa sobre mim. Sempre lidei com esporte, meu esporte, e nunca intervi na política. Se fizesse política, estaria a serviço do povo. Minha popularidade sempre estará a serviço do povo. Digam na Espanha que não sou fascista e que meu único desejo é voltar para lá e trabalhar para minha terra natal com toda a segurança.”

A polêmica aconteceu, porém, quando regressou à Espanha e participou de um jogo em benefício dos soldados de Franco, em dezembro de 1938, no auge do conflito armado no país. Mas vários jogadores fizeram o mesmo, fossem eles adeptos ou não do regime ditatorial. Os dois lados do conflito o olhavam, no entanto, com desconfiança. Os franquistas se incomodaram com as declarações de Zamora na França e os militantes da resistência definiam o goleiro como um fugitivo da causa, que deveria fazer o mesmo que o ídolo basco do Athletic de Bilbao, o grande Guillermo Gorostiza, ou seja, ir para o front.

Zamora não foi ao campo de batalha. Ouviu críticas até o fim da vida por isso, mas jamais coadunou com Franco, mesmo após o fim da guerra. Recebeu condecorações. Mas pelo que fez como jogador e treinador para o futebol deveria recebê-las sem indagações. Como toda a Espanha, ele dolorosamente resignou-se com a vitória do horror franquista, que atrasou o país durante décadas. Nada podia ser feito contra o poderia bélico que Franco ostentava. Zamora ainda conseguiu ver a queda do regime com a morte de Franco, em 1975. Nunca se manifestou sobre isso, mas certamente estava feliz com a retomada da liberdade de ir e vir. A liberdade inclusive para falar. Viveu-a, enfim, até 1978, o ano derradeiro de sua história, de sua vida, uma vida que lhe fora presenteada em 1936, naquela fria prisão, pelo poeta Gálvez.

RAFAEL, O ‘TURRÃO’… O BANGU PAROU NELE

por André Felipe de Lima


Imagine um corintiano em uma família onde todos torcem pelo Palmeiras. Todos italianos e descendentes. Algo quase impossível aconteceu na casa dos Cammarota, no bairro São Judas, em São Paulo. O menino Rafael era corintiano. Exceção. E queria ser goleiro. Encasquetou que defenderia, um dia, o Corinthians. Ninguém tirava ideia tão fixa de sua mente. Quem ousaria?

Em 1969, Rafael, já com 19 anos, realizou seu sonho. Um professor o levou para uma peneira no Parque São Jorge. Foi aprovado, mas teve de esquentar banco durante quase cinco anos até algum treinador oferecer uma oportunidade. “Ei, você aí. Hoje é o teu dia. Vai estrear, garoto”. Deve ter sido mais ou menos isso que Durval Knippel, o mitológico e polêmico Yustrich, então técnico do Corinthians, disse para Rafael naquela tarde de 1974 em que o Timão disputava um amistoso em Poços de Caldas contra a Caldense. O menino fez bonito embaixo das traves. Titular do time, o goleiro Ado, tricampeão mundial em 70, rasgou elogios ao rapaz.

Mas a permanência de Rafael no Timão não durou muito tempo. Foi emprestado à Ponte Preta. Chegou a ser reserva de Carlos na final do campeonato paulista de 1977. Foram cinco anos no clube de Campinas até ser emprestado ao Grêmio Maringá, o primeiro clube paranaense na vida de Rafael. E o rapaz não decepcionou a torcida. Tornou-se ídolo. Era a grande revelação do certame local. Teve gente do Corinthians atrás dele.

Levaram Rafael novamente ao Parque São Jorge, em 1981. Perguntem ao goleiro se ele gostou? É claro. Afinal, tratava-se de um corintiano nato. Irrevogavelmente alvinegro. A estada foi, porém, pouco auspiciosa para Rafael. Sentou no banco para ver o baixinho goleiro César, companheiro de time, jogar. Não havia Democracia Corinthiana que amenizasse a decepção de Rafael com o seu clube de coração. Gostava dos companheiros. Desejava permanecer no clube, apesar da reserva. Lutava pela vaga com brio, técnica e esmero nos treinos. Esforço que nunca foi problema para Rafael. Mas havia um problema sim: Rafael batia de frente com a Democracia Corinthiana, movimento político dos jogadores do clube que, para o goleiro, soava falso. “Só três” falavam e o resto dizia “amém”. Era o que Rafael dizia naquela longínqua época.


Memória em dia, vamos lá: os pilares da Democracia eram Sócrates, Wladimir e Casagrande, com aval, ressalte-se, do então diretor de futebol, Adilson Monteiro Alves.

Não houve jeito. Rafael colheu desafetos no Timão. Wladimir — em reportagem de 1984, assinada por Roberto José da Silva — chegou a dizer naquele período: “O Rafael prejudicava o bom ambiente que estávamos formando na época. Foi expelido pelo grupo.”

Rafael acabou negociado em 1982 para outro clube do Paraná. O Atlético.

Finalmente a carreira, após mais de 10 anos, decolaria. É o que imaginava. No Furacão, Rafael não chegou a fazer história logo de cara. Sofreu grave contusão em 1982. Rompeu o tendão do pé esquerdo. Por isso fazia outra coisa: sombra para o goleiro titular Roberto Costa, mais um que não morria de amores pelo irascível Rafael. “Ele tem um gênio de lascar, costuma alardear pelos corredores que é o melhor em tudo, o mais profissional. Enfim, uma pessoa difícil de se relacionar”, disse Roberto Costa. No final das contas, Costa saiu e Rafael ficou.

Além do gênio intempestivo, as constantes contusões podem ter sido o grande entrave para que Rafael mantivesse a regularidade nos clubes que defendeu até a chegada ao time da Baixada. Na matemática desesperadora, foram oito. A mais grave em 1978, ainda na Ponte Preta. Rafael treinava quando se chocou com um atacante e teve afundamento do malar. Por pouco não perdeu a visão do olho esquerdo. Teve também a fratura na clavícula, quando defendia o Maringá. Vários meses no estaleiro.

Apesar de ser reserva de Roberto Costa e da contusão no pé esquerdo, Rafael defendeu bem as cores do Atlético. Mas pressentia que algo mudaria a sua carreira. E de forma positiva. Seria drástico. Da água para o vinho. Mudou mesmo. Em 1985. De clube, inclusive. Rafael já não era mais corintiano tampouco rubro-negro. Era Alviverde.


A saída do goleiro de um rival para outro da mesma cidade provocou a ira de muitos torcedores do Atlético. “Rafael é traidor!” ou “Os cartolas não poderiam vendê-lo para o Coritiba…”, bradavam.

O que teve de gente rasgando a carteira de sócio do Atlético não estava no gibi. Quem ria à toa era o velho “Chinês”. Evangelino Costa Neves era só festa. Tirar um goleiro do rival bicampeão estadual em 1982 e 83, não tinha preço. E o predestinado Rafael finalmente encontrou sua verdadeira casa.

No Coritiba, conquistou a vaga de titular. Intocável, frise-se. Foi campeão estadual em 1986, mas no ano anterior, a maior glória da história dele e do Coxa: o título de campeão brasileiro. Não teve Bangu, não teve decisão de pênaltis, não teve nada que tirasse a convicção daquele goleiro turrão.

Turrão? sim. Desde pequeno, quando torcia pelo Timão em uma família palmeirense; quando era contrário à Democracia Corinthiana por considerá-la elitista; por superar as graves contusões ao longo da carreira. Rafael tinha certeza: “Seremos campeões brasileiros”. O cara defendeu até pensamento. Não passava nada. Foi decisivo no jogo semifinal contra o Atlético, o Mineiro — tirou uma bola em cima da linha que garantiu o 0 a 0 e classificação —, e contra o Bangu, na finalíssima.

Rafael calou a boca de quem o definia como “velho”. Para a crônica esportiva, ninguém o superou debaixo das traves naquela reluzente temporada.

Quando o juiz apitou o final do jogo contra o Bangu, no Maracanã, ele não se conteve. Esbravejou. Retirou do fundo do armário os fantasmas que o assombravam: “O Rafael é campeão brasileiro. Onde está o Corinthians da Democracia?”. O Corinthians o revelou. Mas disputou apenas 31 jogos com camisa alvinegra, como destaca o Almanaque do Corinthians, do Celso Unzelte. O Corinthians nunca quis Rafael, essa é a verdade. Mas o Coritiba o queria. E muito.

Foram tantos os grandes goleiros que despontaram no Coxa…

José Fontana, o Rei, foi o primeiro. Jogou no Vasco e consagrou-se na seleção brasileira em um tempo em que era improvável qualquer jogador que não fosse do eixo Rio-São Paulo vestir a camisa do escrete nacional. Teve também o Ari. Goleiro papa-fina. Ainda no Coxa chegou à seleção. Depois foi para o Botafogo ser reserva de Osvaldo Baliza. Quem não se recorda de Joel Mendes? Já com a camisa do Santos vestiu a faixa de bicampeão paranaense pelo Coritiba. Ou também de Manga, na casa dos 40 anos de idade, fechou o gol do Alviverde em 1978. E o que falar de Jairo, uma verdadeira “muralha”?… mas nenhum deles foi como Rafael. Ele era especial. Afinal, foi campeão brasileiro.


Quando ergueu o troféu máximo do futebol nacional e foi paparicado pela imprensa, Rafael percebeu que a seleção brasileira não seria algo improvável. A Copa do Mundo de 1986 estava à sua porta. Mas o técnico Telê Santana priorizou a turma — sina infeliz — do eixo Rio-São Paulo. Na lista, Carlos, o titular, do Corinthians; Leão, do Palmeiras, e Paulo Victor, do Fluminense. Valdir de Moraes, então preparador de goleiros da seleção, indicou Rafael à Telê, mas o goleirão do Coxa havia recebido uma punição e, por isso, teria ficado de fora da lista. Seria efeito retardado da implicância de Rafael com alguns companheiros da antiga Democracia Cotinthiana?

Rafael Cammarota nasceu no bairro São Judas, na capital paulista, no dia 7 de janeiro de 1953. Quando encerrou a carreira, tentou se alocar em algum clube para treinar goleiros. O Guarani o recrutou.

O ídolo do Coritiba morou um tempo na capital paulista, onde manteve a escola de futebol “São Rafael”, no bairro do Ipiranga. Dividia o tempo com a garotada e com os seus carros, uma paixão de longa data. Mas retornou à Curitiba, onde todo o dia 12 de outubro abraça seu clube querido em mais um dia de aniversário.