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andré felipe de lima

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O COMEÇO DE TUDO

por André Felipe de Lima


A maior linhagem do futebol brasileiro tem um sobrenome inconfundível: Da Guia. O último da dinastia chama-se Ademir, ou simplesmente “Divino”, como o batizou a apaixonada torcida do Palmeiras. Sobre ele, o cronista Armando Nogueira escreveu: “Ademir da Guia, tens o nome, o sobrenome e a bola do craque”. O pai do craque, Domingos, o “Divino Mestre”, vaticinou em 1944, quando ele e Dona Maria, avó de Ademir, brincavam com o menino em um parque de Caxambu : “A nova geração de craques ‘made in Da Guia’ chamar-se-á Ademir. Ademir da Guia. Tem dois anos agora, mas já sabe usar os pés com eficiência. Não pode ver uma pedra ou uma bola de papel no chão que não sinta logo o desejo de chuta-la. Olha lá o que ele está fazendo. Está chutando o copo que trouxe para beber a água magnesiana. Ponha diante dele uma bola de borracha e verá como sabe o que deve fazer. Está ali o futuro Da Guia, o zagueiro mais caro da América do Sul. Dele é que vou cuidar, quando me aposentar”. E o pai cumpriu o prometido.

Foi nas ruas do bairro Bangu, na zona oeste do Rio, em que Ademir da Guia deu os primeiros passos, os primeiros chutes. Seus pais Domingos [o maior zagueiro da história do futebol brasileiro] e Erothides sempre zelaram pelo jovem que mais tarde encantaria banguenses e palmeirenses. Sobrinho dos incompreendidos craques de Moça Bonita Luis Antonio da Guia [vetado das primeiras seleções brasileiras no início do século por ser negro] e Ladislau da Guia [um dos maiores artilheiros da história dos campeonatos cariocas], Ademir jogava suas “peladas” nos campos de terra batida, que, mesmo após cinco décadas desde o surgimento daquele russinho de olhos claros e bom de bola, ainda insistem em encantar as crianças do bairro. O mesmo onde o próprio Ademir nasceu, no dia 3 de abril de 1942.

Ademir nasceu Da Guia, mas o nome principal foi uma homenagem de Domingos ao grande amigo e craque vascaíno Ademir de Menezes. Para desespero da torcida rubro-negra, que chiou muito por causa da reverência ao ídolo do time rival.

Antes de completar seis anos, Ademir da Guia, que acompanhou os pais a São Paulo quando Domingos jogava pelo Corinthians, retornou à rua Sulamérica, 1160, em Bangu. Aos sete, dividia o tempo entre a piscina do Bangu e as aulas do primário no colégio Getúlio Vargas. Evidentemente que o menino também jogava bola, mas a natação foi o esporte que norteou a infância e pré-adolescência do lourinho.

Em 1953, defendeu o estado da Guanabara no campeonato brasileiro de natação e, no ano seguinte, sagrou-se campeão carioca infanto-juvenil de natação pelo Bangu.

Mas outro esporte começou a motivá-lo. Os jogos no campo do Céres F.C. e as idas aos estádios para ver seus ídolos Rubens, do Vasco, e Dequinha, do Flamengo, o animavam mais que as piscinas. Dequinha, centromédio clássico, um dos melhores jogadores que já vestiram a camisa rubro-negra, foi a principal referência estilística para Ademir da Guia no início da carreira .

Mas o futebol estava dificultando os estudos. Ademir cursava o ginasial no colégio Campo Grande e, depois, no Belisário. Repetiu a sétima série e abandonou os estudos.


O moleque russinho seguiu a trilha do pai e dos tios e foi parar no Bangu, mas, curiosamente, quem o levou, em 1956, para lá foi um colega de “peladas”, o menino Durval. O técnico da garotada era o ex-atacante Moacir Bueno, que após alguns treinos de Ademir, o colocou na equipe. O filho de Domingos da Guia se preparava para ingressar nas divisões de base do Bangu, que já começava a esboçar o time que seria campeão carioca em 1966. Mas sem Ademir, que definitivamente marcaria seu território na história do futebol brasileiro somente no Palmeiras. Mas, antes disso, há uma singular trajetória vivida no Bangu.

Zizinho, o grande ídolo do Flamengo, do Bangu e do São Paulo, já havia ingressado na carreira de treinador quando teve o privilégio de acompanhar os primeiros passos de Ademir da Guia, em 1960, no time principal do Bangu, que enfrentaria a equipe do Vasco. Eram dois jogos, um entre os times principais dos dois clubes e outro entre os de reservas. Ademir já era titular no time de “cima” e Ziza pediu ao presidente do Bangu que liberasse o filho de Domingos e Ananias para o time de “baixo”. Mesmo descrente o cartola autorizou a liberação dos dois garotos. “Escalei Ademir como centroavante. O Domingos veio falar comigo”, disse Zizinho ao escritor e maestro Kleber Mazziero de Souza, biógrafo de Ademir.

Domingos da Guia alertou que Zizinho iria “acabar com o garoto” já que Ademir nunca havia jogado como centroavante. O Mestre Ziza ponderou ao preocupado pai: “Não tem problema. Ele não vai esquecer o que já sabe […] Vai aprender a partir para cima dos zagueiros, a entrar na área pelos dois lados.”

O treinador chamou o garoto Ademir em um canto e o orientou a utilizar as passadas largas que o caracterizavam em campo para ganhar mais velocidade ao entrar na área adversária. Resultado? O Bangu detonou o Vasco nos dois jogos.

O pai garantia que nunca influenciou o filho no estilo. Para Domingos, Ademir “nasceu sabendo jogar futebol”.

Amanhã, você terá os detalhes do começo da carreira de Ademir da Guia no Bangu. Até lá.

PUSKAS E A MAIOR INJUSTIÇA DE TODAS AS COPAS

por André Felipe de Lima


“Eu estava com a razão. Tinha certeza de que com aquele jogo lento e quase exclusivamente defensivo venceríamos o Brasil. Sucede apenas que não contei com as possibilidades de Garrincha. Iniciamos a Copa com uma equipe que deveria ser modificada. Isso só foi feito contra o Brasil. Com aquele mesmo time e apenas uma modificação — Di Stefano em lugar de Adelardo — jamais teríamos sido derrotados”. Estas palavras do genial Ferenc Puskas, referindo-se à vitória da seleção brasileira na Copa de 62 e à derrota de sua Espanha para os brasileiros no mesmo mundial, acolhe uma dose cavalar de despeito. O que era perfeitamente natural. Afinal, Puskas é considerado um dos maiores e melhores jogadores de futebol em todas as épocas, mas o destino negou-lhe o prazer de erguer a taça Jules Rimet uma única vez sequer. 

Mas o que ele fez com a canhota no Honved, clube onde despontou na sua terra natal (a Hungria), e depois no Real Madrid, em um dos times mais extraordinários da história, definitivamente não tem parâmetro. Foi, contudo, a partir da seleção da Hungria que o mundo conheceu a magia do futebol de Puskas, e foi com aquele esquadrão que o próprio Puskas conheceu o sonho e o pesadelo ao mesmo tempo. 


Na Copa do Mundo de 1954, o gênio da bola e sua poderosa Hungria, que também contava com craques do porte de Czibor e Kosics, tombaram diante da Alemanha de Fritz Walter na final pelo placar de 3 a 2. Perderam para os alemães que semanas antes haviam sido humilhados pelos mesmos húngaros pela acachapante goleada de 8 a 3. O mundo jamais compreendeu aquela derrota da Hungria que, para muitos, até mesmo mais que o Maracanazo de 50 e o fracasso do Carrossel Holandês em 74, constitui-se na maior injustiça da história das Copas. Daí a compreensão que devemos ao Puskas pelo despeito com a vitoriosa seleção brasileira em 62.

As marcas de 54 nunca o deixaram em paz. No fundo, mas bem no fundo de sua alma nunca se resignou após o apito final do juiz inglês Ling. A imagem daquele momento, que deveria ter sido um sonho, traduziu-se em pesadelo. As pessoas que lotaram a arquibancada do estádio Wankdorf, em Berna, recusavam-se a acreditar no que acabaram de assistir. A Hungria, que havia sido campeã olímpica dois anos antes, estava destroçada. Quanto à Alemanha, que buscava um motivo de orgulho para a sua nação após a tragédia do regime nazista e a Segunda Guerra mundial, resgatara sua autoestima. O genial Puskas somente chorava lágrimas contidas.

Se no futebol o país de Puskas viveu aquela tragédia, na política não seria diferente. Dois anos após a derrota em Berna, os húngaros se defrontaram com a acidez do regime soviético que impregnou a política do país anos após a Segunda Guerra. Movimentos sociais tentavam manter a Hungria no rumo democrático, mas os rebeldes foram sufocados. Entre eles o militar Puskas. Sim, Puskas era major do exército húngaro quando a revolta social contra os soviéticos eclodiu em outubro de 1956 e logo foi sufocada no mês seguinte. Porém o craque não estava no país. Ele viajara com o Honved para Bilbao, onde disputaria, em 22 de novembro de 1956, contra o Athletic local, um jogo pela segunda edição (1956/57) da Copa dos Campeões da UEFA, a Champions League como hoje a conhecemos.


Temendo o retorno ao país dominado pelos soviéticos, Puskas liderou os companheiros do time para que não retornassem à Hungria para o jogo de volta contra os espanhóis. Todos toparam e o Honved encarou o Athletic Bilbao em Bruxelas. A tensão era grande e os desconcentrados húngaros acabaram eliminados da competição. 

Longe da Hungria, os craques do Honved realizaram amistosos pelo mundo (inclusive no Brasil) para manter o mínimo de renda possível. A Fifa foi uma grande barreira para aqueles jogadores. A entidade máxima do futebol proibia todos eles de jogarem até que regularizassem a situação com a Federação Húngara de Futebol. Essa ladainha durou mais de um ano até que oito dos craques do Honved decidiram regressar ao país enquanto o restante, incluindo Puskas, Kosics e Czibor, optaram por outros rumos.

Puskas morou um tempo na Áustria, mas não conseguiu jogar bola por lá. Tentou radicar-se na Itália, em 1958, acompanhado da esposa Elisabeth (1934-2015, que o craque conheceu quando ela jogava handebol pelo Kipset) e da filha Anikó (1952-2011). Juventus, Internazionale, Milan e Napoli o disputaram a tapa. Mas o Real Madrid correu por fora e atropelou os clubes italianos na reta final do páreo. Os companheiros Kosics e Cizbor partiram, entretanto, para o arquirrival Barcelona.

O Honved, onde Puskas começara a carreira nos infantis (quando o clube ainda se chamava Kipest), estava definitivamente no passado do gênio da canhota, que assinalou pelo clube 379 gols em 366 jogos, uma média espetacular de praticamente um gol por partida. Muitos húngaros ficaram magoados com ele. Obviamente induzidos por uma propaganda do governo soviético que o pintava como “desertor” e até mesmo “contrabandista”. Isso magoou muito craque.

Mas a vida na Espanha o ajudaria a superar a desilusão com a terra natal. Surpreendera-se com o convite do Real Madrid, e foi sincero com o mítico presidente do clube, Santiago Bernabéu, ao dizer que, além dos 31 anos de idade, estava bem acima do peso. “Estou gordo!”. Mas o cartola deu de ombros para os quase 20 quilos a mais de Puskas.


O risco da contratação foi compensado com 242 gols e 262 jogos. Sobre aquele Real monumental, Puskas disse certa vez ao britânico The Times: “O Real Madrid caminha pela Europa como os Vikings costumavam caminhar, destruindo tudo em seu caminho.”

Vestindo o manto “blanco”, ele formou uma dupla extraordinária de ataque com Di Stéfano e foi campeão três vezes do campeonato europeu de clubes campeões (a atual Champions League); uma vez do Mundial Interclubes (a antiga Copa Intercontinental) e cinco vezes do campeonato espanhol. Em quatro temporadas, Puskas foi o goleador máximo do campeonato nacional da Espanha, país que defendeu em quatro jogos. 

Ferenc Puskas nasceu em Budapeste, no dia 2 de abril de 1927. Há, contudo, registros que apontam o dia 1 de abril. Sua família era bastante humilde e seu pai, que o treinava no antigo Kispest, foi seu principal incentivador para que seguisse a carreira de jogador. As primeiras bolas que chutara na vida eram feitas de papel de jornal e trapos. Seu brilho no Kispset era intenso. Com 16 anos já estava no time principal. O clube mudou de nome. Passou a se chamar Honved, e com a nova chancela conquistou cinco campeonatos húngaros. O craque do time, obviamente, era Puskas.

Se pudesse, jamais deixaria o Honved, seu clube de coração. O destino lhe pregou essa peça. Mas nunca se arrependeu de deixar a Hungria tomada pelos soviéticos. Não concordava com a opressão a que seu povo foi submetido.

O genial Puskas morreu em Budapeste, no dia 17 de novembro de 2006, depois de quase dois meses internado para tratar uma pneumonia. Sofria também do Mal de Alzheimer. 

Seu nome é inesquecível. Seu futebol? Esse, ainda mais. Desde 2009, a Fifa (que o perseguiu na década de 1950) concede o Prêmio Ferenc Puskas ao autor do gol mais bonito do ano. Mas a reverência maior fica por conta de nós, torcedores do bom futebol e de sua linda história. Puskas é imortal.

‘EU SOU O CACHORRO; O FUTEBOL, A MINHA OVELHA’, ASSIM FALOU ALCINDO

por André Felipe de Lima


A família nasceu para o futebol. Dos seis homens de oito irmãos, três eram craques de bola. O mais velho, Kim, foi médio volante ídolo do Aymoré e chegou ao Internacional. Outro, Alfeu, também brilhou como ponta-de-lança no Aymoré e no Inter, chegando à Portuguesa de Desportos e, em seguida, ao Grêmio. O inusitado ficou por conta de uma das duas irmãs conhecida como “Professora Anita”.

A jovem contava apenas 25 anos, em 1965, quando era técnica do time formado por seus alunos e por adolescentes de Sapucaia do Sul, cidade da Grande Porto Alegre, na qual os oitos irmãos nasceram.

Mas o orgulho da família era o caçula Alcindo Martha de Freitas, um jovem com a vocação para o gol, nascido no dia 31 de março de 1945, que, com apenas quatro anos, ainda amamentado pela mãe, dona Olívia, começava a dar seus primeiros chutes no campinho do Sapucaiense. O pai, seu Raimundo, outrora um bom centroavante amador do mesmo Sapucaiense, apenas observava o vigor que aquela criança esbanjava. Uma força que, segundo ele, vinha do “leite materno” e do “sangue de índio”. Uma força que anos mais tarde se traduziria em gols. Centenas deles.

Alcindo — igualmente aos irmãos — começou a jogar bola no infantil do Aymoré, da cidade vizinha São Leopoldo, como centroavante por influência do irmão Alfeu, respeitando, é claro, os conselhos táticos da irmã Anita, que, segundo o próprio Alcindo, entendia tudo de futebol e ganhava todos os jogos contra times treinados por homens. Mas o brilho maior da família ficou por conta de Alcindo, cujo futuro nos gramados brasileiros lhe reservava a glória. Para alcançá-la, lutou muito.

Quando o moleque tornou-se rapaz, deixou Sapucaia do Sul e foi para o time juvenil do Lansul. Após um jogo-treino contra a moçada do Internacional, Alcindo foi “descoberto” pelos cartolas do colorado. Em entrevista concedida ao radialista da rádio Band AM, João Carlos Belmonte, e reproduzida na Internet pelo colunista Marcelo Xavier, Alcindo recordou o início da carreira em que teve de enfrentar legendas do Inter: “Um dia fez [O Lansul] um amistoso com os aspirantes do Inter. Na época, o Inter tinha o Flávio Bicudo, o Dagoberto, Ceconi, Guaporé… era um time fabuloso. Nós perdemos de quatro a três, e eu fiz os três. Depois do jogo, o Abílio dos Reis foi falar comigo, e fez o convite. Só que, chegando lá, tinha o Flávio, o Sadi Schwerz, que era centroavante, o Valdir Fraga, e eu tinha quatro na minha posição, na minha frente, e quem chega de fora, sente dificuldade. Mas como o Abílio me indicou, eu senti que tinha condições de lutar. E acabei fazendo dupla com o Flávio. Eu tinha uns quinze anos. Isso foi 1958″.

Mesmo ainda juvenil do Internacional desde 1958, Alcindo já despertava a cobiça do Grêmio, que o convenceu a passar a temporada de 1963 no São Paulo de Rio Grande. Antes de ir embora do Inter, Alcindo sofreu um terrível assédio moral de um dirigente colorado, na época em que o clube tinha como presidente Luis Fagundes de Mello. Por pleitear uma ajuda de custo para pegar dois ônibus de Sapucaia do Sul até o estádio do Inter, em Porto Alegre, Alcindo, ainda um adolescente, foi humilhado pelo cartola que mostrou para ele o portão do clube caso quisesse ir embora. E foi isso que Alcindo fez.

“Pensei em voltar pro Aimoré ou o Lansul. Mas, dias depois, o Camelinho, torcedor do Grêmio, perguntou em casa por um guri que jogava no Inter. Porque eu tinha um irmão mais velho, o Alcino, que estava no Grêmio. Ele disse que o dr. Kroeff tinha mandado ele lá para me buscar. Só que o Grêmio me deu o dobro sem eu pedir. Lá, eu achei minha casa, e fui muito bem recebido […] fiquei no juvenil, mas jogava nos aspirantes, contra os profissionais. Eu fiquei assim até ser emprestado ao São Paulo de Rio Grande, onde eu fiz um ano de estágio. Em 1962 eu estava liberado, de volta.”

O craque nunca escondeu o desprezo pelo Internacional. Desafeto inconteste dos colorados, Alcindo disse a Ruy Carlos Ostermann que todas as brigas em Grenais começavam por ele, artilheiro mor do clássico, que, aos 19 anos, no seu primeiro GreNal, disputado em 23 de abril de 1964, sob o coro da torcida colorada de “bicha, bicha”, balançou a rede três vezes. No segundo embate, naquele mesmo 1964 [ano de golpe militar], Alcindo não se fez de rogado e partiu igual a uma fera para cima dos colorados. Mais um placar de três a zero, com dois gols dele. “Eles sempre tiveram bronca de mim, e eu deles. Em todas as entrevistas que pudesse falar, sempre procurava botar eles lá embaixo. Podendo pisar em cima, eu pisava”.

O impetuoso estilo reservara a Alcindo algumas chances na seleção brasileira. Aliás, o nome do craque despertara a atenção do técnico Vicente Feola logo após o juiz Armando Marques apitar o final do jogo entre Grêmio e a temida seleção da antiga União Soviética. O placar da peleja, disputada no dia 16 de fevereiro de 1966, no estádio Olímpico, terminou 2 a 0 para os gremistas, com todos os gols assinados pelo centroavante. Aquela performance extraordinária garantiria para Alcindo uma vaga no escrete que tentaria, meses depois, o “tri” mundial, na Inglaterra.

O “Bugre Xucro”, como era chamado pelo narrador paulista Geraldo José de Almeida, não fez sucesso na seleção, mas sua trajetória no Grêmio é incontestável. Estreou no Tricolor gaúcho em 1963, onde permaneceu até 1971. Foi pentacampeão estadual pelo Grêmio [1964, 65, 66, 67 e 68] e artilheiro dos campeonatos de 1965 [21 gols] e de 1968 [12 gols]. 

RELAÇÃO DIFÍCIL COM CARTOLAS


Após o mundial de 1966, a relação com os cartolas do Grêmio ficou instável. Alcindo chegou a ficar inativo, sem contrato com o clube, durante vários meses, em 1970. “Por isso é que eu quero ir embora. Se eles vierem me procurar, vai ser esta a minha resposta”, disse. A verdade é que os cartolas o deixaram propositadamente de lado. Desde janeiro daquele ano, Alcindo sofria com um derrame no joelho direito após submeter-se a uma cirurgia, em novembro do ano anterior. O joelho já andara muito mal, mas o treinador Sérgio Moacir [ex-goleiro gremista] e o médico do clube, Itamar Sofia do Canto, insistiram em escalá-lo contra o Cruzeiro. O jogo classificaria o Grêmio para a fase seguinte da Taça de Prata, o “Robertão”.

Tostão e Piazza, craques do time mineiro e amigos de Alcindo, pediam aos companheiros para que não dividissem a bola com ele. Acataram as ordens dos líderes em campo e nem uma paulada em Alcindo, mas ele permaneceu em campo apenas 20 minutos sem que um jogador do Cruzeiro lhe encostasse. Saiu de maca, contorcendo-se de dor. 

O joelho o incomodara ao longo de 1969, mas ninguém no Olímpico queria saber das lamúrias do jogador. A meta era conquistar o octacampeonato gaúcho no ano de inauguração do estádio do rival, o Beira-Rio, e Alcindo era peça fundamental para o Tricolor. 

Alcindo começara a perder espaço no Grêmio. O ídolo fora posto de lado, esquecido numa sala de musculação, enquanto os cartolas tratavam de arrumar um centroavante para o seu lugar. Já haviam contratado dois, Bebeto e Caio, e trazido de volta ao clube Paraguaio, que estava emprestado ao Cruzeiro e que, após cinco anos como “banco” do Alcindo, tomava dele a posição de centroavante.

Em 1970, entrou em campo raríssimas vezes, como descreveu o repórter Divino Fonseca: “Alcindo ficou tanto tempo fora do time que a torcida até o esqueceu. Este ano não chegou a jogar cinco partidas. Hoje é um centroavante sem reflexos, sem direção nos chutes, que precisa de muita força de vontade e também de muita ajuda. Alcindo está sendo apoiado?”.

O treinador Carlos Froner foi enfático sobre o craque: “Ele teve a sua oportunidade. Não fez gol, saiu do time. Agora disputa a posição”.

A instabilidade de Alcindo no Grêmio parecia refletir-se na vida pessoal do jogador. Com as sucessivas viagens do time para a disputa do “Robertão”, Alcindo mal teve tempo para cuidar de seus empreendimentos. Vendeu dois carros e perdeu um posto de gasolina.

Em outubro de 1970, a relação com o Grêmio ficara ainda mais desgastada após Laci Brenner, representante do clube em Novo Hamburgo, oferecer o passe do jogador, por empréstimo, e, em definitivo, os de Áureo e Hélio Pires, em troca do goleiro Ronaldo, do time local, a revelação do campeonato gaúcho. O negócio não foi adiante.

A principal pergunta que circulava na imprensa esportiva da época é como, de uma hora para outra, um ídolo se transformara em um jogador esquecido pela sua torcida e desprezado por cartolas e técnicos do clube para o qual este mesmo craque conquistara inúmeros títulos?

Alcindo foi, até 1969, o melhor jogador do Rio Grande do Sul. Um ícone superior até mesmo a Everaldo, companheiro de Grêmio e “tri” mundial com a seleção, no México, ou a Bráulio e Claudiomiro, que despontavam no Internacional.

A paixão e respeito de Alcindo pelo Grêmio eram insofismáveis.

Em seu apartamento, no bairro Menino Deus, de Porto Alegre, as paredes eram pintadas de azul claro e as poltronas eram azul escuro.

Isso bastaria para que o respeitassem um pouco mais no Olímpico. Para a sua sorte, o Santos pintou na jogada.

O clube de Pelé queria resgatá-lo para o futebol, mas o Grêmio, que insistia em encostá-lo, fazia jogo duro para cedê-lo ao time paulista, que oferecera, em troca, Joel. Rudy Armin Petry, então diretor de futebol, disse um rotundo “não” ao Santos. Ao Alcindo, ele apenas dizia: “Rapaz, eu não sou contra e nem a favor de sua venda. Para mim, você é o melhor atacante do Grêmio. Se não o escalam é outro problema. Você sabe que em manda no time é o técnico”.

Alcindo teria mesmo é que se virar com Froner, para quem a lógica no futebol era imprescindível: se atacante não faz gols, tem de sair do time. Fosse ele ídolo ou não. A torcida chiou e Froner nem aí para a indignação dos gremistas.

No dia 10 de novembro de 1970, na véspera de um jogo entre Grêmio e Santos, Antoninho, técnico do Santos, virou-se para Alcindo e disse que o queria na Vila Belmiro, que acabara de vender o passe de Toninho Guerreiro para o São Paulo.

O Grêmio ainda tinha esperanças em resgatar a boa forma de Alcindo, que passou um mês na Escola de Educação Física do Exército, na Urca, no Rio de Janeiro, para recuperar o joelho atrofiado. Os cartolas pagaram a hospedagem dele, da esposa e do filho.

A relação com o Grêmio, como era notório, já não era a mesma. O Santos deveria ser mesmo a bola da vez.

Como descrevera ao radialista João Carlos Belmonte, ficara parado durante um ano e meio por causa da ruptura dos ligamentos. Enquanto estava fora do time, foi ao Rio de Janeiro para se recuperar na Escola de Educação Física, no Rio. Lá, jogava animadas “peladas” com Carlos Alberto Torres [ex-Santos, Fluminense e Botafogo], Jairzinho [ex-Botafogo e Cruzeiro] e Paulo Henrique [ex-Flamengo]. Foi sondado por dirigentes do Fluminense, com o qual estava praticamente acertada sua transferência. Mas Carlos Alberto Torres e Pelé foram decisivos para que Alcindo mudasse de praia. Da carioca Praia Vermelha, seguiu para as praias santistas. 

Após um mês no Rio, voltou em forma plena. Foi o melhor em campo contra o Fluminense até marcou um gol. Vibrou como o Alcindo do começo da carreira. Mas especulava-se que a troca do preparador físico jogara por terra todo o esforço pela recuperação de Alcindo, como narrou Divino Fonseca:

“Aí botaram o Alcindo para fazer halteres, 30 quilos, e ele ficou duro, sem condições de jogo. Alcindo chiou, mostrou as recomendações do tenente Carlesso, responsável por sua recuperação no Rio, mas não adiantou. O pessoal do Grêmio o colocava sob peso e obrigava a fazer flexões até cair de cansaço. O médico Eduardo de Rosse diz que é assim mesmo, o preparador Ilton Fritzen, um jovem recém-formado, também. E Alcindo se cala, porque já ficou de fora muito tempo e quer voltar de qualquer jeito.”

Alcindo voltara à estaca zero. Estava na lista de 16 jogadores dispensáveis do Grêmio. Além de Santos, o Flamengo também mostrara interesse por ele. Mas quem levou a melhor foi o clube paulista, que levou para a Vila Belmiro o craque Alcindo e deu, em troca, o jogador Mazinho, que acabou na reserva do Grêmio.


Coincidência ou não, em uma tarde de 1971, um corvo voou sobre a casa dos Martha de Freitas, em Sapucaia do Sul. Domesticaram-no e passaram a chamá-lo de Maneco. Seria o prenúncio de mau agouro? Pobre ave, mas…

No auge da crise que o fez deixar o Grêmio, em 1971, Alcindo ouviu duro discurso do então treinador Oto Glória, em entrevista publicada pelo jornal Pato Macho: “Uso Alcindo como um açougueiro faz com a carne estragada. Coloca na frente e iluminada para despertar o interesse dos fregueses”.

Apesar do descaso dos cartolas e a perda do posto de combustíveis e de dois carros, os sete anos no Grêmio fizeram de Alcindo um homem relativamente bem de vida. Ele conseguiu comprar três imóveis e um carro de primeira linha.

Ficou na Vila Belmiro até 1973, ano em foi campeão paulista pelo clube de Pelé, sem, contudo, jogar a final porque precisava embarcar imediatamente para o México. Aventurou-se no futebol mexicano — a convite do ex-capitão do bi mundial, Mauro Ramos de Oliveira —, primeiramente, em 1973, no Jalisco, onde permaneceu por poucos meses — tempo necessário para desbancar o goleador Osvaldo Castro —, e depois no América do México [de 1974 a 1976]. Foi campeão mexicano, após cinco anos de jejum do América, e artilheiro do campeonato na última temporada pelo clube mais popular do México. 

Retornou ao Grêmio para jogar as temporadas de 1976, em que foi artilheiro, e de 77, ano em que conquistou a confiança do técnico Telê Santana e se sagrou mais uma vez campeão gaúcho, mesmo sete quilos acima do peso normal, para calar a boca daqueles que anos antes o defenestraram do Olímpico.

Aliás, um magistral regresso ao Olímpico. Quem praticamente o trouxe de volta ao Grêmio foi a torcida. Essa nunca o esqueceu. Teve até passeata pela volta do Alcindo…

A maior parte do dinheiro empregado veio dos bolsos dos torcedores, que de quinhão em quinhão, fizeram a sua parte. Não houve alternativa ao presidente do Grêmio, Hélio Dourado, a não ser a de repatriar o ídolo.

“Voltei do México disposto a parar com o futebol. Mas o Vieira, antigo ponta-esquerda e técnico dos juvenis, vivia lá em casa me enchendo o saco para eu ir treinar. Fui.”

Alcindo, após uma ruptura do tendão de Aquiles, encerrou a carreira na Francana, interior de São Paulo, em 1979. No ano anterior, foi o artilheiro do time. Craques como Serginho, do São Paulo, Careca, do Guarani, e Palhinha e Sócrates, do Corinthians, ficaram atrás dele na tabela de goleadores do campeonato paulista, que teve Alcindo com 19 gols.

O Grêmio emprestara seu passe sem nada cobrar. Deseja que Alcindo encerrasse a carreira sob a tutela do clube, mesmo que defendendo outro time.

Em um jogo contra o Corinthians, em maio de 1979, seu time perdeu o jogo, mas ele comoveu a todos, com os dois gols que marcou. Um leão em campo.

Apesar das turras com o Grêmio, não teve do que se queixar.

O futebol, até 1979, ano em que deixou os gramados, rendera-lhe alguns bons empreendimentos em Porto Alegre e bens, dentre os quais uma fazenda com 20 alqueires, localizada em Santa Maria, no interior gaúcho.

Só mesmo o famoso vigor físico que ostentava para suportar quebrados o pé direito, o tornozelo esquerdo, algumas costelas e os dois braços. E os esfacelados meniscos do joelho, sua mais grave contusão? Só mesmo Alcindo, o “Galo com esporão” para aguentar isso tudo. Até mesmo inimagináveis formas para perder peso — um de seus mais difíceis desafios ao longo da carreira.

Em dia de jogo, se o achassem com quilos a mais, teria de ser submetido a um método incomum: enrolavam-no em quatro grossos cobertores e ficava quatro horas deitado no meio de campo sob um sol escaldante. “A única colher de chá era um guarda-chuva protegendo a cabeça”.

PIONEIRO NA SELEÇÃO

Alcindo girava o corpo com a bola dominada na área adversária como poucos e completou vários lançamentos precisos de Sérgio Lopes com gols fantásticos. Esse foi seu cartão de visita que lhe garantiu vaga na seleção brasileira.

Um dos maiores artilheiros da história do Grêmio, com 261 gols, marcou 636 vezes em toda a carreira pelos clubes em que jogou. Atacante visado pela torcida do Inter, Alcindo protagonizou algumas histórias quase inverossímeis em dias de Grenais, como o de 1965, quando a torcida do Inter vestiu uma camisa nove do Grêmio em um bode preto na arquibancada, o que deixou Alcindo possesso. Em campo, a resposta do centroavante se traduziu em um gol logo aos dois minutos do primeiro tempo. Aliás, em Grenais, Alcindo balançou a rede treze vezes. Em uma única partida marcou quatro contra o colorado em uma goleada de 5 a 1.

Diante de estatística tão favorável, dá para imaginar o que sentia pelo Alcindo o torcedor do Inter. Tudo, menos afeição. Até macumba fizeram para ele.

A história do polêmico Grenal de 1965 rendeu à beça. Logo na manhã do jogo, deixaram no portão do Olímpico um bode preto com a camisa nove Grêmio [a do Alcindo] varado por uma estaca. Trataram imediatamente de avisar ao Alcindo, que foi conferir o “despacho” de macumbeiros do Inter. Ficou indignado e prometeu vingança horas mais tarde, com a bola nos pés. Logo aos dois minutos de jogo, sem que nenhum jogador do Inter visse a cor da bola, matou-a no peito e soltou a bomba. Gol para cortar o efeito da macumba colorada.

A rivalidade com o zagueiro Scala era famosa. Mas o que realmente empolgava a torcida eram os embates — às vezes mais acirrados — entre Alcindo e o goleiro Gainete. “A verdade é que as nossas brigas, às vezes, atraíam mais público do que o próprio jogo”, descreveu Gainete ao repórter Divino Fonseca. E não era lorota do Gainete. Em mais um Grenal, um repórter de rádio pediu ao Alcindo para falar com Gainete, mas sem avisá-lo de que se tratava do desafeto. “Quem fala aí? Quem? Não quero conversa contigo. Vai pro inferno”.


Alcindo foi o primeiro jogador do Grêmio a ser convocado para uma Copa do Mundo. Embarcou com o time de Vicente Feola, em 1966, para a Inglaterra. Jogou contra a Bulgária, no dia 12 de julho, e contra a Hungria, no dia 15. Hoje, Alcindo reconhece que fisicamente não estava preparado para ir à Copa de 66. Mesmo assim, apesar das duas fissuras que tinha no pé — que lhe obrigaram a engessar a perna por duas vezes antes do mundial — e com a pressão dos dirigentes do Grêmio em projetá-lo internacionalmente, seguiu com a desorganizada delegação para a Europa.

Quinze anos após a Copa de 66, acusou o médico da seleção brasileira, Hílton Gosling, de tê-lo anestesiado o tornozelo para que entrasse em campo: “Em dois jogos da Copa de 66, contra a Bulgária e Hungria, ele [Gosling] infiltrou [sic] meu tornozelo”.

Pela seleção, Alcindo atuou sete vezes, venceu quatro e empatou outras duas. Marcou apenas um gol. Seu último jogo com a camisa da seleção foi no empate em 0 a 0 contra o Uruguai, em 25 de junho de 1967.

Alcindo deixou quatro filhos, um deles, o Juan Carlos, nasceu na Cidade do México, para onde o centroavante transferiu-se após a temporada no Santos. Morava em Porto Alegre, onde nem mesmo o diabetes, que lhe custou a visão do olho esquerdo, impedia-o de revelar jovens jogadores. Antes do trabalho social na capital gaúcha, Alcindo trabalhou em Pinhal, a 500 quilômetros de Porto Alegre, como coordenador de esportes da prefeitura local. Como técnico, uma rápida passagem pelo Passo Fundo.

Na estranha e lúgubre noite daquele sábado, 27 de agosto de 2016, o nobre Alcindo morreu vítima da insidiosa e não menos impiedosa diabetes. Estava há dias internado no Hospital São Lucas, da PUC-RS. No mês anterior, o clube gaúcho promoveu uma campanha junto aos torcedores para doação de sangue ao ídolo. Alcindo estava há quatro torturantes meses internado em tratamento.   

O ídolo entrou para história do futebol brasileiro como um dos jogadores mais obstinados que o torcedor já vira nos gramados de todo o país. Um terror para os zagueiros, que agradeceram a Deus quando o “Bugre” decidiu abandonar os campos. E isso custou à beça a acontecer. Mesmo contrariando os limites do corpo, ele insistia em jogar bola. “Sabe, lá no Rio Grande do Sul tem um ditado: ‘Cachorro comedor de ovelha, só matando’. Eu sou esse cachorro, e o futebol, a minha ovelha”.

Assim falou o “Zaratustra” gremista.

MUSSOLINI, DOMINGADA E O ‘SUBORNO’ NA COPA DE 38

por André Felipe de Lima


Quantas Copas do Mundo o Brasil perdeu de forma “injusta”? As opiniões divergem. Há aqueles — como eu — que apontam a derrota na final de 1950 e a eliminação precoce em 1982 como as duas maiores “injustiças” com a nossa seleção em todos os tempos. Há quem discorde e alegue terem sido duas derrotas plenamente justificáveis pelos méritos em campo dos briosos craques de Uruguai e Itália, respectivamente. Ouvi de antigos personagens, que, infelizmente, já partiram, ter sido também “injusta” a derrota de 2 a 1 da seleção de Leônidas da Silva, Tim e Domingos da Guia para os italianos (sempre eles!) na semifinal da Copa de 1938, um confronto que sempre foi alvo de inúmeros bate-bocas até o Maracanazo de 1950 ocupar o imaginário futebolístico no país. 

Em 1958, o jornalista José Franco, da revista O Cruzeiro, assinou polêmica reportagem em que o craque Niginho (ídolo do Cruzeiro e do Vasco nos anos de 1930) afirma que os jornalistas Tomaz Mazzoni e Gagliano Neto teriam obrigado o técnico Ademar Pimenta a escalar o ponta-direita Luizinho — ex-craque do São Paulo que aniversaria neste dia 29 de março — no lugar de Tim (ex-Fluminense). Ainda mais traumática teria sido a saída de Leônidas da Silva do time na semifinal contra os italianos. Em seu lugar entrou Romeu Pelicciari (ex-Fluminense), uma escalação que Niginho definia como temeridade. Mas o jogador disse mais: houve suborno naquele mundial. 

Niginho afirmara que o “duce” Benito Mussolini desejava ganhar a Copa de 38 a todo custo e que a inesperada “distensão muscular” de Leônidas da Silva na véspera do jogo contra a Itália foi, no mínimo, “esquisita”. O zagueiro Nariz, que estudava medicina, não teria identificado problema algum em Leônidas. Mesmo assim — acusara Niginho — nosso principal jogador e também artilheiro da Copa foi afastado do jogo capital daquele Mundial. 

Dois dias após a partida contra a Itália, o centroavante teve uma “recuperação” relâmpago e estava em campo contra os suecos, marcando dois gols na vitória que garantiu ao Brasil o terceiro lugar na Copa de 38.

Domingos da Guia também não foi poupado por Niginho. O atacante mineiro achava estranho o zagueiro ter feito um pênalti no italiano Piola, que, na posição em que estava — defendia Niginho —, não marcaria gol algum. “Estava na linha de fundo, sem ângulo para chutar (…) Não tenho dúvidas: não fosse o imprudente lançamento de Luizinho, a ausência de Leônidas no jogo contra os italianos e o inexplicável pênalti de Domingos em Piola, aquela Copa seria do Brasil”. 


Na semana seguinte a declaração de Niginho, Leônidas rebateu-a com veemência. “Um mundo de mentiras”, disse o Diamante Negro, alegando que no primeiro jogo contra os tchecos o Brasil perdeu logo no primeiro tempo dois jogadores (Zezé Procópio e Machado), permanecendo no campo com apenas nove. 

“Foram duas horas de futebol que me estouraram os músculos. Empatamos. Deveríamos voltar a jogar contra os tchecos 48 horas depois. Falei com Ademar Pimenta, o técnico, e ele me disse que eu precisava voltar a jogar, que ia me sacrificar porque o Brasil não podia ser desclassificado. Do primeiro time só jogaram na partida de desempate eu e o Walter (goleiro). Quando ela terminou, meus músculos acusavam o desgaste”, completou Leônidas, citando ainda a longa viajem de 17 horas que a delegação fez (de trem) para Marselha, onde enfrentaria a Itália.

Ao longo da viajem — garantiu Leônidas — aplicaram compressas quentes na perna dele. Nariz (além de jogador da seleção) ajudava o médico Castelo Branco nos cuidados com o craque. Leônidas rebateu Niginho ao alegar que Nariz estava ciente da gravidade da contusão. “Em Marselha, continuei meu tratamento, mas, no dia da partida com a Itália, verifiquei ser impossível o meu ingresso no time.”


Leônidas enfureceu-se de vez com Niginho quando se referiu à acusação de aos jogadores brasileiros: “Deslavada mentira! Não fui procurado por ninguém que me quisesse subornar. Nunca, em toda minha vida de jogador de futebol, estive envolvido em escândalos desta ordem. (…) alguns companheiros daquela época (Ademar Pimenta, Nariz, Domingos e o jornalista Tomaz Mazzoni) já vieram a público me defender. Outro injustiçado nas declarações do Niginho é o Domingos da Guia.”

Para Leônidas, que assistira ao jogo junto à baliza onde aconteceu a penalidade, não houve dúvida: Domingos sofreu um pontapé por trás do Piola e revidou. O juiz viu o lance e marcou pênalti, porém sem expulsar Domingos, que jamais negou ter dado um pontapé no adversário. “Esse foi meu erro. O juiz viu e marcou o pênalti.”

Depois da resposta publicada pela O Cruzeiro, Leônidas processou Niginho, e ganhou a causa.

João Saldanha assistiu ao jogo. O jornalista e também treinador confirmou, em depoimento ao Museu da Imagem e do Som, que a Itália mereceu a vitória (igualmente ao que aconteceu na Copa de 82). “Os italianos poderiam ter vencido de goleada. Eu estava sentado atrás do gol do Brasil e vi nosso goleiro defender até pensamento. Fomos bombardeados.”

Mas a suspeita de que houve suborno naquela Copa jamais foi esquecida. Muitas décadas depois o assunto sempre vinha à tona, sobretudo com opiniões de ex-jogadores daquele escrete. Luizinho foi um deles. 


O ídolo histórico do São Paulo e sua esposa, dona Murila, confirmaram ao jornal O Estado de S.Paulo, em reportagem do começo dos anos de 1980, que viram Leônidas da Silva, Domingos da Guia e Ademar Pimenta conversando com três dirigentes italianos em um canto do hotel e que após o papo entre eles Luizinho, intrigado, questionou ao Leônidas o que conversavam. “E ele me respondeu que os italianos estavam apenas querendo trocar as passagens para Paris. Continuei achando muito estranho. Afinal, tínhamos dirigentes para tratar um assunto desses.”

Esse breve e curtíssimo depoimento de Luizinho se perdeu no tempo e não foi explorado com mais profundidade nos anos seguintes. A história do “suborno” dos italianos ficou sem testemunhas e sob uma dúvida histórica se realmente existiu. A imprensa internacional sempre afirmou que Mussolini ganhou as duas Copas (34, na Itália, e 38, na França) para os italianos devido ao parrudo cofre que ostentava. Nada foi provado.

Polêmicas à parte, a verdade é que o Brasil perdeu dois jogos incríveis para a Itália, nas Copas de 38 e 82, em que a saquadra azzurra foi campeã. Em compensação, nós fomos tri (70) e tetra (94) em cima dos “fratelli”. Caso sirva de consolo, ganhamos dele (2 a 1) na disputa do terceiro lugar em 1978.

Mas (à vera!) o placar de campeões marca Brasil 2, Itália 2. Vamos torcer para que o épico “gol” de desempate aconteça na Copa de 22. E sem chororô, de preferência.

HIPNOSE… ATÉ O TEIMOSO TELÊ ‘VIAJOU’ COM ELA

por André Felipe de Lima


Há uns três anos ou quatro anos, presumo, jogadores mexicanos recorreram à hipnose para mudar o rumo de suas carreiras nos gramados. O primeiro deles a recorrer ao método do sono induzido foi o atacante francês André-Pierre Gignac, do Tigres. O cara não fazia gols de jeito nenhum. Estava convencido de que não nascera para jogar bola e pensara até em fazer outra coisa na vida. Treinava dia e noite, noite e dia, e nada. Nada de gols, que deveria ser seu ofício como o de qualquer atacante. Mas Gignac chegou a ficar dois meses sem marcar um gol sequer. A torcida do Tigres, obviamente, chiava, e com inteira razão. Foi aí que o jogador teve a ideia de procurar um terapeuta hipnotista profissional — o escolhido foi John Milton — antes de um jogo decisivo do campeonato mexicano de 2016 contra o Pumas. Algumas sessões e… Tigres 5 a 0, com três gols do francês.

Quem mais recentemente no Brasil recorreu à hipnose foi a Portuguesa de Desportos para tentar escapar do rebaixamento à série C do campeonato Brasileiro, em outubro de 2014. A missão coube ao ex-goleiro Olimar Tesser, que teve experiências com hipnotismo em vários clubes, dentre os quais o Guarani, a Ponte Preta, o Náutico e o Bahia. Mas foi vã a tentativa de Tesser na Lusa. O trabalho do especialista durou menos de um mês. Foram quatro jogos com derrota em todos. O time não conseguiu sair da lanterna e não somente caiu para série C como intensificou a amarga uma crise que perdura até hoje, em 2020, ano de seu centenário.

Mas o sucesso da hipnose no esporte tem um viés vitorioso. A extinta União Soviética sempre a usou com seus atletas olímpicos. Fazia o mesmo com soldados durante as duas grandes guerras mundiais no século passado. O que ganharam de medalhas não está no gibi. Aí a prova de que hipnose — quando bem aplicada — dá certo.

No futebol brasileiro, a terapia vem de longe. Do final dos anos de 1950. O primeiro a se empolgar com ela por aqui foi o polêmico médico Paes Barreto, o mesmo que citamos em nossa crônica anterior publicada no Museu da Pelada. Só para reforçar a memória, Barreto, quando esteve no Flamengo, foi acusado de dopar jogadores na campanha do tricampeonato carioca do rubro-negro em 1942, 43 e 44. Fato que ganhou os jornais e foi muito especulado ao longo dos anos, mas sem que houvesse prova contra o médico, que, por sua vez, nunca negou ter passado “bolinhas” aos jogadores de que cuidava.

Mas vamos à hipnose do Barreto, que a imprensa definia — cercada de obviedades por se tratar do polêmico médico — como “doping da alma”. “Conseguimos um tricampeonato para o Flamengo alicerçados nessa base”, disse Barreto ao repórter Ronaldo Boscoli. “Embora digam que dopei jogadores, continuo afirmando que a sugestão foi minha arma. Cativei meus comandados e estudei caracteres. Senti que a saída de Domingos da Guia lhes minaria o moral e a confiança. Usei a psicologia como arma. Muitas conversas, muitas confidências, e finalmente as pastilhas ‘mágicas’, o ‘doping’, ou o quer que seja, fê-los vencer um campeonato (nota do cronista: popularmente conhecidas no futebol como ‘bolinhas’)”, completou o médico, que alegara ter se inspirado na experiência de um time do Rio Grande Sul cujos jogadores “jogavam hipnotizados” e “venceram” muitos jogos.


Ídolo daquele Flamengo tricampeão, campeão com o Botafogo em 1948 e depois um treinador bem-sucedido, Pirilo foi o primeiro “paciente” do Paes Barreto, que declarou ter “levado o técnico até sua casa e o fez “ver” e “abraçar” sua mãe. O hipnotizado Pirilo — garantia peremptoriamente o médico — verteu “grossas lágrimas”. 

Barreto, que na época estava no Fluminense, justificava o uso da hipnose como um meio para deixar o jogador em “ordem psíquica” e até “física” para os times. 

No Tricolor, arriscou a técnica em alguns jogadores. Notoriamente com fama de “durão” e “teimoso”, Telê Santana submeteu-se a duas sessões com o médico, que afirmou ter sido uma hipnose de “ordem particular” e não destinada ao futebol. O “tratamento” no Telê foi registrado pelo fotógrafo Carlos Kerr, que acompanhava Boscoli na reportagem da Manchete Esportiva, também se submeteu ao teste. Fez tudo o que Barreto determinara, escrevera o jornalista. Os jogadores Robson e Jair Marinho, que morreu recentemente, também passaram pelas mãos do Barreto. O primeiro foi apenas “magnetizado”. Nada falou demais; o segundo, ao recobrar a consciência, confessou sentir-se sonolento, apenas. E quanto ao saudoso mestre Telê? Este “viajou” mesmo. De olhos fechados, ele “foi” à Minas Gerais, sua terra natal, sob o comando do médico. Até então incrédulos, como todos nós jornalistas até o último fio da alma, Boscoli e Kerr testemunharam tudo imersos em um mar de interrogações existenciais. 

Para Barreto, tudo era muito simples e sem chance às dúvidas: “Um homem hipnotizado não mente jamais”. Se a moda pegar…