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andré felipe de lima

UMA RELÍQUIA QUE MANTÉM VIVO O VERDADEIRO MARACANÃ

por André Felipe de Lima


Há uma bola de futebol em minha vida. Não aquelas convencionais, de couro ou mesmo as de meia, com as quais dei meus primeiros chutes no chão de terra e cimento da vila onde nasci e cresci. É uma bola de mármore. Um mármore muito especial no qual milhões um dia pisaram, pularam, vibraram, cantaram ou mesmo choraram. Aliás, o choro primevo está cravado nela, que tornou-se uma relíquia sem preço. Minha amada bola está marcada com lágrimas que, na dolorida tradução poética, assemelham-se às lanças com as quais imperadores romanos ceifaram cristãos em priscas eras. Só mesmo a fé celestial de gente como aquela para seguirmos adiante após o fatídico 16 de julho de 1950. Vejam, amigos, são 70 anos que esta bola permanece encharcada com lágrimas de milhões. Mas ela, teimosa, seguiu firme para presenciar reviravoltas de placares inimagináveis, no campo e na vida. Esta bola viu seleções extraordinárias conduzirem o Brasil ao pentacampeonato mundial. Viu, inicialmente, Zizinho e Ademir de Menezes. Viu também Barbosa e sua imagem mais marcante após o gol de Ghiggia naquela data medonha. Viu depois Didi, Nilton Santos, Dida, Evaristo, Garrincha, Dequinha, Bellini, Vavá, Almir, Quarentinha, Waldo, Telê… viu Pelé, a nossa majestade universal. Viu Gerson, Paulo Cezar Caju, Tostão, Rivellino e o nosso tricampeonato sendo construído nas gramas de seu septuagenário estádio. Viu Zico, Roberto Dinamite. Viu Romário. A minha bola de mármore viu isso tudo, mas não verá mais. Ela está aqui comigo, longe do chão onde um dia brilhava porque havia gente zelosa e especial a lustrá-la diariamente. Gente que, embora com nome, CPF e identidade, sempre passava despercebida aos olhos de torcedores e jornalistas. Hoje, setenta anos após aquele gol uruguaio que nos fez chorar sangue, a minha bola tem um novo e dedicado lustrador. Este cronista, no seu recanto, no Rio de Janeiro, no dia 16 de julho de 2020, sentindo muita saudade daquele estádio que já não existe mais. Daquele do qual restou somente a minha linda e brilhante bola de mármore.

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O ‘FILÓSOFO’ DO IRMÃO DUDU

por André Felipe de Lima


Por incrível que pareça o maior jogador da história do Palmeiras vestiu a camisa canarinho em apenas 11 ocasiões, e sem marcar um gol sequer.

Era grande a expectativa para a convocação de Ademir da Guia para a Copa de 1970. Quando Zagalo assumiu o lugar de João Saldanha no comando do escrete brasileiro, as chances de o ídolo palmeirense ir ao mundial ficaram ainda mais reduzidas. A imprensa, sobretudo a paulista, questionava: Qual, afinal, a diferença de Ademir para Rivelino, Gérson ou Dirceu Lopes? A resposta? Difícil encontrá-la. 

Um mês antes de a Copa começar, Ademir, em entrevista ao repórter Michel Laurence, tentava encontrar uma justificativa para a visível indiferença a que os técnicos da seleção o submetiam. “A convocação de um jogador para a seleção é mais uma questão de política. Por exemplo: o futebol carioca está mal e, no entanto, muitos de seus jogadores foram convocados. Eu teria mais oportunidade se o técnico da seleção fosse de São Paulo. O jogador que não estiver nos planos do técnico dificilmente é chamado. Saldanha só saía do Rio para observar Gérson ou Rivelino. Ele não ligava para os outros. O ruim é que na minha posição estão os maiores jogadores do Brasil. Um deles é Gérson, que hoje toca muito a bola para os lados. Isto é, faz exatamente o jogo que me fez tão criticado. Eu não posso dizer que seria útil à seleção Brasileira. Ninguém pode dizer isso antes de jogar. Eu só estive lá em 65 e agora é tarde para voltar. Na outra Copa estarei muito velho.”

Confiante no talento de Ademir e de sua importância para o sucesso na Copa de 74, o técnico Osvaldo Brandão declarou que o craque poderia fazer o mesmo papel de Tostão na seleção de 70, jogando com a camisa nove e correndo em todos os lugares do campo. O certo é que Ademir acreditava nunca ser lembrado: “Não vão me convocar e muito menos fazer de mim um centroavante.”

Quatro anos após a vitoriosa campanha do “tri”, “velho” ou não, Ademir da Guia acabaria convocado por Zagalo para a Copa a ser realizada na Alemanha. Seria o reserva de Rivelino. No jogo contra a Polônia, na disputa pelo terceiro lugar da competição, iniciaria a partida como titular. Mesmo assim muitos afirmariam sempre que só foi escalado porque o zagueiro Luís Pereira [ex-Palmeiras] estava suspenso por ter sido expulso no jogo anterior, contra a Holanda, e que Paulo Cezar Caju [ex-Botafogo] estava machucado. No segundo tempo do jogo contra a Polônia, Ademir não retornou ao campo. Quem despontou no túnel foi Mirandinha [ex-São Paulo].

Domingos da Guia afirmara que a Copa de 74 revelaria Ademir como um novo Didi para a seleção brasileira, especialmente por conta da capacidade de o meia lançar bolas de longa distância, igualmente ao craque do “bi” mundial, em 58 e 62: “Nos 40 lançamentos que realiza por partida, acerta 39 e coloca seus companheiros na frente do goleiro”. Domingos estava, contudo, magoado com Gerson, que comentara com a imprensa que Ademir teria dificuldade para se adaptar ao esquema de Zagalo: “Gerson afirmou que Ademir não era jogador para a seleção. Eu o perdoo, porque quem fala demais sempre comete injustiças. Tenho pena do Gerson por causa de suas declarações infelizes. Meu filho, que é grande amigo dele, não merecia aquelas considerações. Gerson costuma esquecer facilmente os que lhe dedicam carinho e afeto.”

Ademir sempre declarou à imprensa nunca ter sentido mágoa de Zagalo ou de qualquer dirigente da seleção brasileira. Alguns creditam o ostracismo na seleção a uma perseguição velada. Ademir teria se atrasado, em 1968, para um voo que levaria a seleção a um jogo no exterior. O então chefe da delegação da antiga CBD [Confederação Brasileira de Desportos], Paulo Machado de Carvalho, teria se irritado com o atraso de Ademir. A história nunca foi confirmada.

Em 1977, quando estava prestes a abandonar os gramados, Domingos preferia levá-lo para o Vasco a vê-lo no banco de reservas e chegou a recomendar a Dudu, técnico do time, a não barrar Ademir. O craque, embora fosse um esmerado profissional e cuidadoso com a saúde, sofria há tempos de crises respiratórias. Chegou a submeter-se a duas cirurgias no nariz — suspeita de sinusite — para contornar o problema, de nada adiantou. Depois que abandonou o futebol profissional, ficou seis anos sem entrar em um gramado. Nem mesmo para uma descontraída pelada. Mas a quem lhe criticasse a resposta seria no gramado. 

Em abril de 1977, o Palmeiras derrotou a Portuguesa de Desportos pelo placar de 3 a 2. Ademir marcou dois gols e deu o passe para o de Jorge Mendonça. O pai, eufórico, dizia aos jornalistas: “Vim para São Paulo porque soube que o Ademir estava parando. Trouxe até uma proposta do Vasco da Gama para que ele encerre a carreira no Rio de Janeiro; mas, depois do que vi, como não sou imbecil, nem vou falar com os homens do Palmeiras. O time não é mais o mesmo de dois, três anos atrás. Mas o Ademir é.”

Nem mesmo propostas ditas milionárias o afastaram do Palmeiras, como a feita pelo empresário Juan Figger querendo levá-lo para o Monterrey [México] e o Dallas [Estados Unidos]. Ademir balançou: “Não vou mentir. A proposta inicial [a do Monterrey] me pareceu muito boa e chegou a me fazer pensar com euforia”. Mas o Divino decidiu preservar a família e não se arriscou na “aventura”.

Após o fatídico ano de 1977, Ademir recebeu um convite para dirigir o time infantil do Palmeiras. As palavras do velho Moacir Bueno [ex-Bangu], ditas a ele, na época em que começava a carreira na categoria infantil do Bangu, devem ter ecoado na memória do craque naquela ocasião. Mas o status de maior estrela da história do Palmeiras não lhe garantiu uma vida financeira estável. Trabalhou em vários empregos. Alguns nada tinham a ver com futebol, como o de auxiliar de juiz classista.

Apesar de aquele jogo contra o Corinthians, em 1977, ter sido o último da carreira do Divino, faltava a Ademir uma festa de despedida, o que só aconteceu em no dia 22 de janeiro de 1984, em um jogo realizado no estádio do Canindé, da Portuguesa, entre os amigos do Palmeiras e um combinado paulista, que contou até com a escalação de Rivelino.

O combinado derrotou o time de Ademir por 2 a 1, que jogou apenas 36 minutos e recebeu do Sindicato dos Atletas Profissionais a renda do jogo. Cerca de 12 milhões de cruzeiros e 10 milhões doados por Pelé. Naquele ano, já estava separado da chilena Ximena, mãe de Mirna e Namir, dois dos filhos de Ademir e vivia da renda dos imóveis que mantinha em São Paulo e no Rio de Janeiro e da venda de calções da fábrica de um amigo. “Eu achava que a idade ideal para parar de jogar seria 35 anos. Quando cheguei aos 35, passei a achar que melhor seria parar aos 36. Se tivesse chegado aos 36, ia pensar em parar aos 37…”

Ergueram no Parque Antártica uma estátua para Ademir da Guia no dia 1º de setembro de 1986. No campo da literatura, alguns jornalistas, poetas e escritores se lembraram de Ademir. O maestro e escritor Kleber Mazziero de Souza é um deles. Mazziero publicou, em 2001, uma rica biografia sobre o craque intitulada “Divino: A vida e a arte de Ademir da Guia”.

Ao ler a obra de Mazziero, constata-se que a vida do genial jogador é mesmo coisa de cinema. Não deu outra. Do cineasta Penna Filho, nasceu, em janeiro de 2006, o documentário de longa-metragem “Um craque chamado Divino”, com imagens do saudoso Canal 100, da Cinemateca Brasileira e das emissoras de televisão Bandeirantes e Cultura.

A vida de Ademir não pode ser dissociada da trajetória de sua família. Foi assim com seus avós paternos e com o seu pai, o incomparável Domingos da Guia. Uma das marcas mais singulares dos Da Guia foi o zelo familiar. Ademir manteve essa tradição, procurando sempre conciliar a atribulada carreira nos gramados com a vida em casa. E não foi fácil.

Feriados, por exemplo, eram raros. Quando disponíveis, priorizava-se o convívio exclusivamente familiar em sua confortável casa na Vila Madalena.

Em abril de 1977 aconteceu uma dessas escassas oportunidades. Ademir desfrutou alguns dias de folga com os filhos Mirna, então com oito anos, e Namir, com sete, e Ximena. Saíram à noite para comer uma pizza e curtirem o domingo de Páscoa juntos… mas sem Namir, que fora levado por um amigo de Ademir ao Parque Antarctica ver o Palmeiras jogar, sem o pai em campo. O garoto voltou para casa decepcionado com o empate do Verdão com o Palmeiras em 0 a 0. “Paiê! Não gostei do time sem você.”

Assim sempre foi Ademir, relevante em casa e não menos imprescindível em campo.

CASAMENTO OU CONCENTRAÇÃO

Em 1967, o Palmeiras jogaria, no Maracanã, o terceiro e decisivo jogo da final da Taça Brasil, que classificaria o campeão para a Taça Libertadores da América. O primeiro jogo, em Recife, terminou 3 a 1 para o Verdão. No segundo, em São Paulo, o inesperado: vitória de 2 a 1 do Náutico. 

Ademir da Guia foi barrado do jogo por Mário Travaglini, que reprovou a ida do jogador ao Chile para buscar a noiva Ximena, que conheceu em Santiago de Chile, durante uma excursão do Palmeiras. Ademir, que adiara o matrimônio duas vezes, se casaria no dia seguinte ao confronto entre os times paulista e pernambucano. Mesmo assim, faltando 15 minutos para o término do jogo, Ademir entrou em campo e marcou o gol do Alviverde. No tira-teima do Maracanã, o Divino jogou desde o início, fez um gol e o Palmeiras saiu de campo campeão, com o placar de 2 a 0, sendo de César “Maluco” Lemos, o segundo tento.

Valeu o esforço de Ademir pelo casamento. No dia 23 de janeiro de 1969, nasceu Mirna, e, no ano seguinte, a 16 de fevereiro, Namir, o casal de filhos do primeiro casamento, com Ximena.

Muitos anos depois, Ademir casou-se novamente, em 1984, com Sueli Botelho Chimelo. De seu segundo matrimônio nasceu Ademirzinho, o filho caçula, que despontou nas divisões de base do Palmeiras e almejou o mesmo sucesso do avô e do pai no futebol.

Apesar do gosto pela terra natal, o Rio de Janeiro, Ademir mora até hoje no bairro de Perdizes, zona oeste da capital paulista. Chegou a ter cinco empregos, um deles o de vendedor de uma fábrica de um amigo, em Araraquara, e a treinar garotos no São Caetano e no Esporte Clube Sírio, por volta de 1989.

Poderia arriscar-se como técnico de futebol, mas o Divino optou pela política. Antes, porém, foi convidado para comandar a escolinha de futebol mantida pela Secretaria estadual de Esportes e Turismo de São Paulo, em 1991.

Em 2004, foi eleito vereador de São Paulo, mas, no ano seguinte, passou por um constrangimento fartamente repercutido pela imprensa.

Em setembro de 2005, Ademir foi acusado de reter parte do salário de funcionários de seu gabinete. O episódio, negado com veemência por Ademir, provocou seu afastamento do PCdoB, partido com o qual se elegeu em 2004 e para o qual foi levado por Aldo Rebello, palmeirense convicto, que anos mais tarde seria ministro dos Esportes do governo de Dilma Rousseff. Após o imbróglio de 2005, Ademir ingressou no PR para tentar se reeleger em 2008. Não conseguiu. Em 2010, insistiu, mas como deputado estadual, e novamente perdeu nas urnas.

Em 2012, tentou reingressar na política, candidatando-se a um cargo de vereador pela capital paulista. Conseguiu apenas 14.345 votos. Muito pouco para quem um dia arrastou multidões aos estádios de futebol, tornando-se, até hoje, uma unanimidade quando o assunto em pauta é sobre ídolos do Palmeiras. 

Evidentemente que sua trajetória na política não se compara a das quatro linhas do gramado de futebol. Uma situação não pode servir de parâmetro para a outra.

Foi dentro do gramado que o Divino levantou muitas taças e entrou para a história do futebol brasileiro como um de seus maiores ídolos. Foram cinco campeonatos paulistas [1963, 66, 72, 74 e 76]; dois brasileiros [1972 e 73]; dois torneios Roberto Gomes Pedrosa [1967 e 69]; uma Taça Brasil [1967]; um torneio Laudo Natel [1972]; o torneio Mar del Plata de 1972; três vezes o troféu Ramon de Carranza [1969, 74 e 75]; um torneio Rio-São Paulo [1965] e o torneio IV Centenário da Cidade do Rio de Janeiro, em 1965.

Dentre todas as reverências já feitas ao gênio Ademir da Guia, a mais simbólica foi escrita pelo poeta João Cabral de Melo Neto:

“Ademir impõe com seu jogo 

o ritmo do chumbo [e o peso], 

da lesma, da câmara lenta, 

do homem dentro do pesadelo. 

Ritmo líquido se infiltrando 

no adversário, grosso, de dentro, 

impondo-lhe o que ele deseja, 

mandando nele, apodrecendo-o 

Ritmo morno, de andar na areia, 

de água doente de alagados, 

entorpecendo e então atando 

o mais irrequieto adversário.”


Bravo, Divino! Bravo pela humildade que ostentou dentro e fora dos gramados. Bravo por — parafraseando o poeta Carlos Drummond de Andrade — rechaçar o “moderno” para transforma-se em “eterno”. Bravo, sim, por colocar o luxo em segundo plano. Não lhe saltava aos olhos carrões, seu sonho, disse uma vez a ex-esposa Ximena, era ter um simples fusca. “Há quem pague 400 mil cruzeiros por um Mercedes. Eu acho que é jogar dinheiro fora”, declarou o craque, que chegou a ter um Aero Willys 68 e um esporte SP-2, carro este que Ademir ganhou após um concurso entre os torcedores que o elegeram o craque palmeirense mais querido. Mas o Divino acabou mesmo, em 1989, mantendo um carro Gol 82.

Companheiro dentro de campo, Leivinha, que muitos gols marcou graças aos passes precisos do Divino, definiu-o bem: “Ele [Ademir] não é um jogador frio, nem um indiferente. É apenas um homem que guarda para si mesmo todas as emoções que sente.”

E assim, em suas irradiantes simplicidade e tranquilidade, construiu-se o maior ídolo de toda a história do Palmeiras: Ademir da Guia, o fleumático, o inabalável, o calmo, ou, simplesmente, o “filósofo” do time, como o chamava o grande amigo Dudu. 

Eis o Divino, que ao completar 70 anos, em abril de 2012, declarou ao saudoso e querido repórter Geneton Moraes Neto preferir a glória em vida a uma lembrança fosca no futuro: “Quero ser lembrado hoje, gosto muito do presente”.

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O DIVINO ADEMIR DA GUIA: LENTO… E DAÍ?

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por André Felipe de Lima


A crítica mais mordaz contra Ademir foi a de ser um jogador lento. Bobagem que foi insistentemente escrita e dita pela imprensa nos quase 20 anos de carreira do craque. Ademir não precisava correr muito porque suas passadas eram largas. Nada mais que isso. “Muita gente dizia que eu era lento. Até mesmo eu dizia. Em 1965, uma frase que eu havia dito transformou-se em manchete no caderno de esportes de um jornal: ‘Sou lento, mas não vou mudar.’

Ademir da Guia justificava o estilo por ser oriundo do Rio, onde se jogava um futebol mais cadenciado, mais compassado. Mas, para a imprensa paulista, a opinião de Ademir não convencia. “Durante muito tempo Ademir ficou no Parque Antártica aguardando uma oportunidade para surgir no conjunto esmeraldino. Houve inclusive quem esquecesse que Ademir pertencia ao Palmeiras. Todavia, quando a oportunidade chegou. Ademir não conseguiu aproveitá-la de acordo. Mostrou que é um craque na acepção da palavra, que sabe manobrar com a pelota. Entretanto, seus maiores inimigos foram exatamente os excessos de classe e lentidão. Com a bola nos pés, Ademir é um portento, porque sabe entregá-la com perfeição. Porém, sem ela, Ademir é figura decorativa no gramado, pois é lento demais e não é jogador que dê combate ao adversário para desarmá-lo […] É preciso considerar que há muita distinção entre o futebol jogado na Guanabara e o que se pratica em São Paulo. Lá, corre mais a bola que o jogador, pois é um futebol acadêmico, sem muito empenho individual. Aqui, as coisas são bem diferentes, pois é preciso garra, rapidez, entusiasmo, vibração. Estes argumentos destroem o garoto Ademir que, absolutamente, não conseguiu e tampouco conseguirá se adaptar ao futebol bandeirante.”

Ora, reconhecem-no “craque” e, mesmo assim, pediam que o devolvessem ao futebol carioca. O futuro tomaria conta da verdade sobre Ademir, provando aos seus críticos que ele, o “Divino”, estava fadado a ser o maior de todos os tempos no Palmeiras. O fundador legítimo da “Academia palmeirense”. Um estilo “acadêmico” de jogar bola que, como o próprio repórter despeitado escreveu, era genuinamente “guanabarino”.

A imprensa paulista só se renderia à genialidade de Ademir em 1964: “Ademir ‘tapou a boca’ de muita gente”, escreveram. Não havia mais o que falar [mal] do craque “guanabarino”. Até da Itália choviam propostas milionárias. Tudo na casa dos 300 milhões de cruzeiros. Ninguém confirmava, nem mesmo Ademir ou os cartolas do Palmeiras, mas a especulação corria solta na imprensa. Ademir desconversava, dizia que só sairia do Brasil depois de 1966. Tinha esperanças de ser convocado para a seleção brasileira que iria a Copa do Mundo a ser realizada na Inglaterra. E os jornalistas paulistas comentavam: “Está no caminho certo de Londres”. Mas com ressalvas.

Para o jornalista Armando de Castro, Ademir melhorara, contudo precisava desvencilhar-se da timidez para seguir adiante com brilho na carreira. “Agora, Ademir, resta ir em frente. Deixar para lá esse excesso de humildade e retomar o lugar que, de direito, lhe cabe dentro do ‘Esquadrão de Ouro’. Afinal, um ‘divino’ não se pode misturar a simples mortais…”

Conclui-se, portanto, que a posição na qual o craque jogava traz, até os nossos dias, um atavismo. Jogador meia-armador é execrado num dia e no outro recebe glórias aos montes. O périplo de Ademir da Guia nos campos de futebol foi assim. Sua personalidade nunca fora abalada com as críticas ou elogios. Manteve-se sempre sereno, surpreendentemente para a pouca idade que ostentava nos primeiros tempos de Palmeiras. Arroubos juvenis não combinavam com seu estilo consciencioso, dentro e fora dos campos. Em 1966, um cronista francês declarou: “Os brasileiros encontraram em Ademir da Guia o substituto ideal do grande meia Didi, talvez melhor, pois seu futebol é exuberante, pleno de beleza.”


Jornalistas argentinos definiam-no como um dos dez mais do futebol mundial em 1966. Elogios desse porte não o deixavam com nenhum sinal de máscara. Nem na juventude e tampouco na fase mais madura de seu extraordinário futebol.

Em 1971, corria um boato no Palmeiras de que os “mais velhos” receberiam passe livre. O ano não tinha sido bom para o time e as reclamações vinham de todos os lados, sobretudo dos cartolas. Na mira da diretoria estariam Nelson, Dudu, Hector Silva, Dé e Ademir da Guia: “Eu sei o que reclamam. Não leio jornais, não escuto rádio, não vejo televisão, mas sei o que reclamam […] Reclamam que eu não lanço e que sou lento, como sempre. Acontece que, sem querer me defender, o time do Palmeiras sempre teve esse estilo”. Reclamaram tanto que Ademir, coberto de razão, liderou o time ao “bi” brasileiro, em 1972 e 73.

Quando a carreira de Ademir ia se aproximando do fim, em 1976, sobrou-lhe, contudo, tempo para mais uma conquista. Como fiel parceiro de meio-campo, Dudu, conquistou o campeonato paulista de 1976, derrotando, na decisão, o XV de Novembro de Piracicaba.

Após o título, o time foi desfigurado. Ademir acreditava ter mais alguns anos de carreira. Ledo engano. Em 1977, durante o campeonato paulista, o “Divino” queixava-se de uma insistente dor na garganta. Do campo para a mesa de cirurgia. Pouco adiantou. Restou ao craque deixar os gramados no dia 18 de setembro do mesmo ano, em uma partida contra o Corinthians, que venceu a peleja por 2 a 0. Ademir não aguentou até o final da partida e foi substituído por Picolé.

No Palmeiras, Ademir da Guia ficou de 1961 a 1977. Disputou 901 partidas com a camisa do Verdão. Um recorde que até hoje ninguém conseguiu quebrar. Venceu 509 vezes e empatou 234. Fez 153 gols. Mas como foi a presença de Ademir da Guia na seleção brasileira? A resposta é das mais inusitadas: não foi.

Amanhã, no quinto e último capítulo da série “O Divino Ademir da Guia” a decepção com a seleção brasileira e o fim da carreira do genial craque palmeirense.  Até lá.

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: ENFIM, O PALMEIRAS

por André Felipe de Lima


Chamar um jogador de bonde é, dependendo das circunstâncias, uma indelicadeza. Chamar um craque, um gênio  como Ademir da Guia de bonde é crime de lesa pátria. É pecado amoral, diria Nelson Rodrigues. E o cartola do Bangu Mauricio Cesar Buscácio cometeu este desatino, sem direito a sursis ou qualquer coisa que o valha. Depois do sucesso estrondoso de Ademir no torneio internacional de Nova Iorque conquistado pelo Bangu, em 1960, e na edição seguinte, em 1961, quando a imprensa divulgava que o Barcelona pagaria 16 mil dólares para tê-lo, o presidente do Bangu mandou redigir em ata ter “vendido um ‘bonde’ para o Palmeiras por três milhões e oitocentos mil cruzeiros”. 

Mas a rusga do cartola não era, propriamente, com Ademir e sim com o pai do jovem craque. “O presidente do Bangu, naquela época, não me olhava com muito carinho. Outros dirigentes achavam que o Ademir não se firmaria na equipe principal. Eu tinha vontade de levá-lo para outro time”, confessou Domingos da Guia a Kleber Mazziero, biógrafo do filho. Até enterro simbólico do presidente do clube de Moça Bonita a torcida banguense fez na porta da sede do Bangu. Tudo em vão. Ademir iria mesmo embora.

Domingos deu a notícia ao filho: o destino é o Palmeiras. No dia 7 de agosto de 1961, Ademir assinara o contrato com o novo clube. Receberia um salário mensal de 35 mil cruzeiros. O pai, naturalmente, emendou alguns conselhos, o principal deles de que o futebol de Ademir era “de berço” e que, portanto, deveria se cuidar no campo, durante os contratos e na vida pessoal. “Nada de farras”. Ademir, ao longo de uma das mais brilhantes carreiras de um jogador de futebol, seguiu as recomendações do pai rigorosamente à risca.

Embora a animosidade entre os Da Guia e a diretoria do Bangu fosse explícita, o próprio Ademir reconheceu a ajuda financeira que o clube carioca ofereceu: “O Bangu me premiou com 300 mil cruzeiros, em sinal de gratidão pelos anos que o defendi, e o Palmeiras me deu, a título de luvas, um milhão e quinhentos e quarenta mil cruzeiros”. Há, contudo, uma contradição quanto ao valor das luvas. O jornal O Globo, em edição do dia 8 de agosto de 1961, afirma que Ademir recebeu de luvas 540 mil cruzeiros e não os mais de um milhão de cruzeiros, como afirma o próprio jogador, segundo informou a Gazeta Esportiva.

Levaria, no entanto, um tempo até Ademir se firmar no Palmeiras. Na posição de meia-atacante havia Chinesinho e na de centromédio, Zequinha. Ademais, um incômodo problema dentário atrapalhava sua performance e retardava sua estreia. “Além de não me encontrar em perfeitas condições físicas, estou fazendo um tratamento dentário que tem prejudicado sobremaneira minha recuperação.”

Em 1961, Ademir disputou apenas um jogo amistoso, contra a Associação Esportiva Promeca, em Jundiaí, no dia 10 de dezembro. Venceu por 2 a 0 sob o comando de Rubens Minelli. Como Chinesinho fora vendido para o futebol italiano, ficaria, em tese, mais fácil para Ademir da Guia assumir a vaga de titular, mas Hélio Burini, oriundo da Itália, também disputava a posição. A ascensão foi paulatina. Mas era flagrante que deixavam-no numa “salmoura” e a imprensa paulista já questionava se teria valido a pena pagar “milhões” pelo passe de um garoto que sequer era escaldo para amistosos. “Se algum outro clube o pretender, terá que pagar caro, embora a hipótese seja remotíssima. Afinal, quem vai se interessar por um craque que, até o momento, só se exibia nas colunas dos jornais?”

No dia 8 de abril de 1962, Ademir vestiu, enfim, a camisa 10 pela primeira vez na vitória de 4 a 2 sobre o Esporte Clube Paulista, em Santa Bárbara d’Oeste. A primeira partida oficial com o Verdão aconteceu, contudo, no dia 14 de julho, no Pacaembu, contra o Taubaté em jogo válido pelo campeonato paulista. Ademir jogou com a camisa seis e o Palmeiras venceu de 5 a 1.

Ademir, cujo primeiro apelido no clube era “Formigão”, por comer muito nas concentrações, teve de atuar em várias posições naqueles primeiros momentos em que vestiu a camisa do Palmeiras. Foi de centroavante a volante. E não foi somente no time de profissionais. Jogava também no time de aspirantes, tanto que conquistou o campeonato paulista da categoria em 1963. Naquele ano, a tão esperada chance aconteceu. O técnico Geninho o escalou como titular e a resposta viria com o título de campeão paulista para o “Palestra”. Uma conquista memorável que interrompeu a saga de títulos estaduais do Santos de Pelé e Coutinho, que “graças” ao Palmeiras de Ademir não se tornou tetracampeão.

Ademir sempre manteve um relacionamento profícuo com os treinadores que passaram pelo banco do Palmeiras. O “mago” Oswaldo Brandão foi um deles. Com o novo técnico, que chegou ao clube em 1972, o elenco foi reduzido e surgiu a segunda “Academia” palmeirense depois do sensacional esquadrão da década de 1960. 

Ademir esteve nas duas “Academias”. É o maior símbolo de ambas.

GOL E TÍTULO INESQUECÍVEIS


Escolher o gol mais bonito da carreira de Ademir da Guia é tarefa das mais complicadas. Foram muitos. Mas o craque acredita ser o mais genial o que assinalou em 1964, contra a Prudentina, no Parque Antarctica. O jogo terminou 4 a 1 para o Palmeiras. “O Ademar entrou pela direita e atrasou a bola para mim, na altura da intermediária do time deles. Matei a bola no peito e resolvi entrar sozinho. Tive sorte. Driblei o primeiro zagueiro e, em seguida, o zagueiro da sobra. O goleiro Glauco saiu e eu tive de driblá-lo com uma finta seca, que me fez perder o ângulo. Não me afobei e voltei uns passos. Quando tive um ângulo melhor, chutei no alto.” 

Em clássico contra os grandes paulistas, Ademir balançou a rede diversas vezes. Contra o São Paulo, apenas Evair o supera em gols pelo Palestra, com nove tentos. Ademir marcou oito. Contra o Santos e o Corinthians, fez sete e quatro, respectivamente.

Dos títulos com a camisa do Palmeiras, o mais vivo na memória de Ademir é o conquistado em 1974 numa das partidas mais difíceis do alviverde contra o Corinthians, que aguardava o título paulista há 20 anos. O time do parque São Jorge era o favorito porque lá estava o reizinho Rivelino. Se eles tinham um “rei”, o Palmeiras tinha o “Divino”. 

Na série de reportagens “Meu jogo inesquecível”, publicada pela revista Placar , Ademir conta sobre a inesquecível partida contra o Corinthians: “O nervosismo que tomava conta dos jogadores, no entanto, denunciava: a partida era muito especial. O Corinthians não ganhava um titulo desde de 1954. Por isso, entrou em campo como se partisse para uma guerra […] Subimos os degraus que dão acesso ao gramado do Morumbi e, quando concluímos a caminhada, avistamos a multidão. Eram 120 mil torcedores, 70% dos quais torciam pelo Corinthians. Pior, todos estavam enlouquecidos para ver o alvinegro voltar e ser campeão […] uma cobrança de falta violenta do Rivelino acertou a cabeça do Dudu, na barreira. Ele caiu desmaiado e saiu de campo. Poucos minutos depois, estava de volta […] O cruzamento do Jair Gonçalves encontrou Leivinha, que subiu mais do que toda a defesa e cabeceou. A bola caiu exatamente no pé direito do Ronaldo. O chute saiu forte, indefensável, no canto esquerdo de Buttice, goleiro argentino do Corinthians. […] Uma emoção incalculável. Prova disso é que vários atletas foram ao Parque Antártica comemorar junto com a torcida mais um título para o Palmeiras. Eu preferi ficar em casa. A noite ainda assisti o videoteipe da partida. Tudo funcionava como se eu acabasse de participar de apenas mais uma, entre as muitas partidas da minha vida. A vitória contra o Corinthians, a faixa de campeão e tudo o que se passou dentro do campo, no entanto, garantiam que aquele tinha sido o melhor de todos os jogos.”

Amanhã, no quarto e penúltimo capítulo da série “O Divino Ademir da Guia” você recordará os títulos inesquecíveis do maior ídolo do Palmeiras em todos os tempos. Até lá.

O DIVINO ADEMIR DA GUIA: O CAMISA DEZ GENIAL QUE BROTOU EM BANGU

por André Felipe de Lima


Quando Ademir da Guia começou no Bangu, ele era reserva de um jogador chamado Valter. Por enxergarem semelhanças com o pai Domingos da Guia, o escalaram como zagueiro. Mas o que Ademir fazia de melhor era armar jogadas na meia cancha.  Jogou pelo infantil do Bangu em 1957 e conquistou o terceiro lugar do campeonato estadual da categoria. No ano seguinte, o vice-campeonato estadual. Seus primeiros treinadores, Moacir Bueno e Elba de Pádua Lima, o Tim, foram essenciais para moldar o craque. “Tive muita ajuda e orientação do Moacir Bueno. Ele tinha jogado com meu pai no Bangu e foi meu primeiro treinador. Depois, no juvenil, o treinador era o Elba de Pádua Lima, o Tim. Também com ele tive um aprendizado muito grande, muito rico. Ele me ensinou muita coisa.” 

No início de 1959, Domingos da Guia decidiu levar o filho para jogar em São Paulo. Pretendia um teste para o menino no Corinthians, mas o desembarcar na capital paulista, mudou de ideia e o levou para o Santos. Ademir fez o teste e foi aprovado, mas por divergências salariais, Domingos optou retornar ao Rio com o jovem e decidir se aceitaria os nove mil cruzeiros oferecidos a Ademir. O prazo expiraria no carnaval, mas antes disso, da Guia, o pai, recebeu uma proposta para treinar o infantil do Bangu e Ademir, para integrar-se ao juvenil. O salário dos dois correspondia quase a metade do que o Santos desembolsaria para ter Ademir.

Foi em 1959 — e no Bangu mesmo — que começou a ser desenhada a brilhante carreira do último remanescente da dinastia “Da Guia”. Com Ademir a frente do Bangu, os grandes clubes ficaram a ver navios. O time da zona oeste se sagraria campeão carioca de juvenis. Como prêmio pelo extraordinário feito, a diretoria integrou quatro juvenis ao time de profissionais que embarcou, em junho de 1960, para os Estados Unidos, onde o Bangu surpreenderia times como Sampdoria, Sporting de Lisboa, Rapid Viena e Estrela Vermelha, de Belgrado, sagrando-se campeão do I Torneio de Nova Iorque. Além de Ademir, viajaram Helinho, Durval — aquele mesmo, o amigo das primeiras peladas — e Zé Maria.

“Fomos para o Galeão, Super Constellation, aquele aviãozão (sic) grandão. Andamos (sic) 24 horas de avião para chegar à Nova York, aí a gente dormia, acordava, não chegava nunca [risos], o avião estava parado lá, o pessoal: ‘Ademir, pode abrir a janelinha!’ [risos] e eu ficava quietinho ali. Aí chegamos em Nova York, aquela cidade lá espetacular, a gente treinava no campo de, acho que era polo, porque não tinha campo de futebol, fizeram uma adaptação. E lá tinha o Sampdoria, tinha o Sporting, tinha time da Escócia, da Suécia, tinha vários times, e a gente não sabia falar também, a gente aprendia algumas palavrinhas, How much, Coca-Cola a gente pedia toda hora [risos]. Mas foi uma coisa sensacional, nós ficamos um mês em Nova York, na rua 42, toda hora a gente estava na rua 42, e foi uma coisa, assim, sensacional, porque a gente sair de Bangu, parar em Nova York, ver toda uma cidade espetacular, nem Gávea, nem Flamengo, nem Botafogo eu conhecia [risos]. A gente ia lá jogar contra o Fluminense, nas Laranjeiras, jogamos contra o Flamengo, na Gávea, contra o Vasco, lá em São Januário, mas não tinha assim, não conhecia direito o Rio. Ai se vê lá em Nova York, sendo campeão, e eu fui escolhido o melhor jogador do torneio, aí, na hora lá, me deram um envelope cheio de dólares, eu guardei, pensei comigo: ‘Deve ter bastante dólar!’ [risos]. Quando cheguei lá no quarto do hotel e tal, ‘o melhor jogador do torneio’, aí, quando eu fui abrir, eu vi que tinha um dólar só [risos]. Eu fiquei decepcionado, podiam ser dois mil dólares, estava pronto para comprar um monte de coisas. Mas aí fomos campeões, pegamos um jato, nove horas estávamos descendo no Galeão […] A gente levou 24 horas de Super Constellation para chegar lá, e a gente já começou a perceber que ser campeão era importante.” 

O filho do ex-zagueiro Domingos da Guia entrou no time titular profissional do Bangu e lá ficou até o Palmeiras entrar em sua vida.


Um ano antes de chegar a São Paulo, o futebol de Ademir da Guia era motivo de reportagens na imprensa paulista que especulavam a possibilidade de o jovem craque do Bangu jogar ao lado do também jovem Pelé. Sendo filho de quem é o intenso holofote era mais que natural. Domingos da Guia apostava no sucesso do rapaz: “O pai não tem queixas do que ganhou com o futebol. Entretanto o filho tem tudo para brilhar e ganhar muito. Ganhar para viver, quando deixar o futebol. Tem futebol para isso. Cumpre a risca as determinações de seu técnico, bem como os conselhos dados pelo pai. Não poderia ser melhor. É um legítimo herdeiro do futebol praticado pela família.”

Ademir de Menezes, amigo dos Da Guia, também previa o sucesso do menino: “Grande futebol tem o garoto. Posso assegurar que será um dos integrantes da seleção brasileira nos jogos do Campeonato Mundial de 62. Sabe dominar com facilidade o meia da cancha. Entrega a bola com máxima perfeição. Em suma, é um jogador extraordinário. Está de parabéns o futebol brasileiro, contando com outro valor positivo. Se ouvir bem os conselhos do papai, não tenho a menos dúvida, irá longe. Seu técnico, meu amigo Tim, saberá elevar mais o seu futebol.” 

O ingresso de Ademir no Palmeiras teve um responsável. Um, definitivamente não. Eram dois. O primeiro foi o então técnico do Guarani Armando Renganeschi. Ao vê-lo jogar pelo Bangu em uma partida contra o time de Campinas, não titubeou. Sugeriu aos dirigentes do Guarani que contratassem Ademir. Pedido recusado, o garoto permaneceria no Bangu e somente em 1961 uma nova investida de Renganeschi para ter Ademir seria bem-sucedida. O felizardo? O Palmeiras, onde o ex-técnico do Guarani passou a dar as cartas no futebol. O presidente do clube alviverde, Delfino Facchina, e o diretor de futebol, Arnaldo Tirone, acataram a “ordem” do técnico e pagaram três milhões e oitocentos mil cruzeiros ao Bangu para ter o russinho no Palestra. Quantia considerada na época muito abaixo do que realmente valia Ademir.

Amanhã, você saberá como Ademir da Guia foi recebido pelo Palmeiras. Uma das jornadas mais belas de um jogador de futebol com o clube que o fez gigante. Até lá.