por Cláudio Lovato Filho
Era 1974, e o grande zagueiro central Atilio Genaro Ancheta usava a camiseta número 2. O lateral direito, Cláudio Radar, vestia a 4 (Everaldo jogou várias vezes na direita naquele ano, o último de sua carreira); o quarto-zagueiro, Beto Fuscão, a 3, e o lateral esquerdo, Jorge Tabajara, a 6. Naquele 1974, minha camisa era a 2, do Ancheta. Eram tempos em que o número era costurado na camisa,e o número da minha camisa tinha sido costurado de forma errada: o pé do 2 ficou torto, enviesado para baixo. Aquilo foi motivo de gozação por parte dos meus parceiros de bola na calçada, claro.
Quem costurou o número – uma pessoa muito querida, uma pessoa que estava em nossas vidas já havia muito tempo – não sabia ler nem escrever, nunca tivera a chance de se alfabetizar lá na periferia da cidade de interior (também minha cidade natal) na qual nascera e fora criada. Mas ela costurou o número, porque foi um pedido meu, porque percebeu o quanto aquilo era importante para mim. Tentou do seu jeito. Fez o que podia. E eu fiquei feliz, embora soubesse que, bom, o pé do 2poderia ter ficado mais reto.
Aquele foi o ano da minha primeira Copa do Mundo acompanhada de fio a pavio, o ano de conhecer Johan Cruyff, o ano de pelear mais uma vez com o propósito de voltar a levantar a taça do Campeonato Gaúcho. Era mais um ano de militares no poder e de ver cada vez mais muros no Bom Fim, no Centro e em todos os outros bairros da cidade pichados assim: “Abaixo a Ditadura”.
Eu tinha 9 anos e estudava no à época chamado “Grupo Escolar” Othelo Rosa, na Avenida Independência quase esquina com a Rua Fernandes Vieira, um pequeno colégio público com o retrato de Ernesto Geisel na parede dos corredores, o presidente-general admirado pela diretora, e as fotos estavam com certeza em lugares demais, como se nos vigiando, como se nos dizendo: “Estou de olho em ti”.
Morávamos na Fernandes Vieira, num prediozinhoverde de três andares na quadra entre a Henrique Dias e a Oswaldo Aranha. Era um edifício sem encantos, típica moradia da classe média residente na região central de Porto Alegre, mas havia na entrada um pátio murado, de piso de concreto, e quantas vezes aquele pequeno retângulo tão urbano, tão do Bom Fim, tão porto-alegrense, virou um campo de jogo, um estádio, o meu Olímpico particular. Quantos sonhos vividos ali.
Não foram tempos fáceis – nem em termos familiares nem nacionais -, mas o quanto isso realmente importava para um menino de 9 anos que andava pelas ruas do Bom Fim com a camisa 2, do Ancheta?
Pensando em retrospectiva, me lembrando daquele tempo, sou levado a crer que uma das poucas coisas que estavam certas, irretocavelmente certas, era aquele número 2, do Ancheta, costurado torto na minha camisa. Torto e sinuoso como é o caminho de cada um de nós, porque a vida não é exata. “Navegar é preciso, viver não é preciso”.