por Sergio Pugliese
O primeiro mandamento do boleiro é jamais usar a pelada em álibis, afinal ela é sagrada, insubstituível. Mas tentações existem e alguns atletas inexperientes acabam sucumbindo ao canto da sereia. O problema é quando o tiro sai pela culatra e eles são obrigados a enfrentar a ira da Dona Encrenca. Rogerinho, centroavante matador, foi um desses…
Na volta do racha era certo Cristina reclamar daquela borrachinha preta sujando o banheiro. A borracha em questão é aquela usada para amaciar as quadras de grama sintética, realmente uma chatice porque entra na chuteira e gruda no corpo. De tanto as mulheres chiarem, a maioria dos craques dá uma geral no próprio campo e espanca o tênis no chão até sumirem todas. Rogerinho, não. Ele andava mal intencionado com Aninha, a estagiária do trabalho, e concluiu que as pretinhas poderiam ser suas aliadas. Um dia chegou ao campo com vários saquinhos plásticos, tipo sacolé, e encheu cada um deles com o pó de pneu. Alguns amigos estranharam, claro.
– Vai vender na feira como cocaína africana? – brincou Rômulo.
– Não! Lucas, meu filho, adora brincar com isso – disfarçou.
O assunto morreu, mas os melhores amigos sabiam dos bastidores. Uma relação em crise e o frescor da estagiária bastaram para as borrachinhas brotarem dia sim, e o outro também, no piso do banheiro. Ao invés da santa pelada ia namorar. Na volta, antes de entrar em casa, umedecia a camisa e o short na torneira da garagem para dar vida ao suor e, claro, enchia a chuteira com o resíduo. O problema foram as repetições e esse apetite voraz pela bola despertou a pulga há anos adormecida atrás da orelhinha de Cristina. E na festa de aniversário de Rogerinho, não teve jeito, o caldo entornou.
– Vamos cantar parabéns! – convocou Cristina.
Madrugada, caipirinha pulsando na mente e os peladeiros tortos, inclusive o desavisado Rômulo. No caminho para o salão, o goleiro resolveu elogiar o comportamento de Rogerinho para Cristina e arranjou um problemão.
– Rogerinho é mesmo um paizão, vai para o campo e fica enchendo saquinhos de borracha para dar ao filho.
Rogerinho vinha logo atrás com os cúmplices Stênio e Ribamar. Os três espantaram-se e tentaram frear a língua de Rômulo, mas era tarde.
– Como assim? – perguntou Cristina, desconfiadíssima.
– Ué, fica de quatro só enchendo saquinho…
Stênio puxou Rômulo pelo braço.
– Bebeu demais, maluco?
Rogerinho relembrou os tempos de Tablado e lançou no ar um olhar perplexo enquanto um “fud…” retumbava sua cabeça. Cristina sentiu o cheiro da traição e entrou no quarto. O parabéns foi suspenso. Quando o maridão ainda bolava uma saída, ela ressurgiu com Lucas, pijama de bolinhas, olhos fechados.
– Lucas, você gosta de brincar com borracha moída?
O menino cambaleava.
– Deixa ele dormir – apressou-se Rogerinho. E emendou: – Brincamos de pista de asfalto, rastilho de pólvora, chuva de carvão…
– Elementar, meu caro 171, já desconfiava, você espalha esse treco no tênis como se tivesse jogado!!! – desvendou a mãe, ao estilo Sherlock Holmes.
– O que é chuva de carvão? – perguntou Lucas.
– O menino tá zonzo, acha que é pesadelo. Amanhã tiramos isso a limpo – exigiu Rogerinho.
Cristina entrou e não voltou mais.
No silêncio da varanda, Ribamar provocou.
– A estagiária valia essa borrachada toda?
Quase teve briga.
Rogerinho não dormiu e cedinho acordou Lucas. Pegou os sacolés que ainda restavam no porta-luvas e começou a criar brincadeiras. O moleque não entendeu nada, mas divertiu-se com a companhia do pai. Cowboy na mão, Rogerinho falava: “Vamos Tom, encha esses barris de pólvora!”. Cristina passou pelo corredor e assistiu a cena, incrédula. De cara amarrada, esboçou um “cara de pau” e voltou a dormir.
Texto publicado originalmente na coluna a “A Pelada Como Ela É” no dia 02 de junho de 2012.