por Rubens Lemos
Maracanã das antigas, Maracanã das gerais. Maracanã dos humildes. Maracanã de Waldir Amaral narrando o jogo e João Saldanha nos comentários, Maracanã abocanhando desdentados aos milhares no formigueiro humano a desembocar dos trens da Central do Brasil. Maracanã, 180 mil pagantes. São 200 mil almas, incluída a comitiva de penetras penados.
É jogo de minha melhor seleção brasileira de todos os tempos contra um timaço estrangeiro, também escalado por mim, ao meu critério, do jeito que eu quero, afinal (ainda) tenho direitos. O direito de sonhar não me custa um centavo e é a mola da minha sustentação no dia 3 de março, 66º aniversário do melhor jogador que assisti ao vivo, Zico, meu Pelé consentido.
A partida vai começar e é atemporal. É uma comemoração onde se despreza o tempo. Relógios não entram e cada jogador está na idade de sua sagração, no auge de sua melhor criatividade e forma, todos estão perfeitos em homenagem a Zico.
O Brasil do técnico Rubens Lemos Filho vem com Taffarel; Djalma Santos, Carlos Alberto Torres (é o capitão), Orlando Peçanha e Nilton Santos; Gerson e Didi; Garrincha, Pelé, Zico e Romário. Nenhum volante, ninguém sem intimidade sensual com a bola. Marcação e pegada ficaram para os idiotas do 0x0 como mantra.
Do exterior, Yashin (Rússia), no gol, o feroz alemão Vogts na lateral-direita, o inglês Bobby Moore ao lado do soberano kaiser Franz Beckenbauer. Na lateral-esquerda, para correr atrás de Garrincha, poderia escalar o enlouquecido Kutsnetsov, do baile de 1958. Prefiro me vingar do italiano Cabrini, titular e um dos arquitetos da vitória da Azzurra sobre nossa constelação de 1982. Paul Breitner ficará no banco.
No meio, deslumbrante, Cruijff vai girar o campo inteiro ao lado de Maradona (liberado ao pó) e do baixinho Kopa, francês inventivo e ainda hoje inconformado com o show das semifinais da Copa da Suécia, Didi liderando o massacre de 5×2. Kopa era o Didi deles.
No ataque dos visitantes, um louco maravilhoso, driblador e entornado de uísque. O irlândes George Best, astro das fintas homéricas e principal jogador da Europa de 1968. O argentino Di Stéfano começa de titular sabendo que sairá no segundo tempo para o português Eusébio, a Pantera Negra. O húngaro Puskas, o Major Galopante, está na esquerda.
Para apitar o confronto, escalo, em distinção ao Rio Grande do Norte, o lendário Luiz Meireles, o “Cobra Preta”, senhoria de autoridade nas refregas empoeiradas do velho Juvenal Lamartine. Cobra Preta terá tradutor simultâneo na voz do locutor Zé Ary, da TVE potiguar, para saber o que os gringos estarão dizendo uns aos outros.
João Saldanha reclama a ausência de um protetor para o meio. Está enfurecido na cabine da Rádio Globo e me chama de irresponsável. “Com Zito ou Clodoaldo, mesmo o Piazza, esse time jogaria mais solto, imagina o Kopa liberado e o Maradona partindo para cima de Carlos Alberto.”
Cobra Preta convoca os capitães e o Brasil atacará para o gol do lado direito de quem via pela televisão. O Ex-Maracanã foi assassinado e o circo de arena posto em seu lugar, destroçado.
Carlos Alberto (usando cabelo curto, como em 1970), cumprimenta Beckenbauer, entrega-lhe uma flâmula, recebe outra. O Brasil joga de uniforme sem marca, sem patrocínio e calções de cadarço, em homenagem a Gerson, a quem é dado o direito de fumar, quando quiser, durante os 90 minutos ou enquanto durar o devaneio.
O primeiro ataque é estrangeiro. Cruijff gira sobre a bola, deixa-a sozinha e escapa, atraindo Didi. Maradona domina e lança Di Stéfano. Carlos Alberto toma-lhe na categoria e entrega a Gerson que imediatamente vê Pelé em diagonal, vislumbrando Garrincha. Sai o lançamento imediato e Mané puxa Cabrini para perto da massa geraldina.
Primeiro drible. Cabrini senta. Segunda finta, Cabrini deita, terceiro toque é uma caneta. Mané balança para a esquerda e sai pela direita. Cruza, Pelé mata no peito. A bola gruda e desce redonda como as cervejas lavando peritônios pelos bares populares.
O Imponderável Crioulo ameaça o chute e engana Bobby Moore no balanço do tórax. Dialoga com Romário (só em sonho), recebe de volta e vê Zico passando livre e perseguido por um atônito Vogts. Pelé acha o Galinho que toca de leve, por cima do boné de Yashin.
Comemora abraçado a Pelé e Romário. Garrincha põe a mão na cintura e balança a cabeça, em menosprezo ao sistema defensivo adversário. Diria, depois, que o Madureira daria muito mais trabalho. Com 1×0, o Brasil não descansa.
Didi recua. Faz lançamentos longos. O Príncipe Etíope de Rancho procura Di Stéfano, que o boicotara no Real Madrid para a vingança jamais consumada na vida real. Toca a bola entre as pernas do Hermano antipático e aplica-lhe um cavalheiresco drible da vaca. O povo explode e o presidente, que é Juscelino Kubitscheck, faz saudações emocionadas, naquele sorriso oriental.
Eusébio substitui Di Stéfano e Zidane ocupa o lugar do compatriota Kopa. Best é anulado por Nilton Santos e é trocado pelo alemão Littbarski, da geração de 1982, também posto no bolso imaginário da Enciclopédia do Futebol.
Eusébio e Puskas tabelam e o canhoto da Máquina Magiar de 1954, injustamente vice-campeã, desfere o bólido, no ângulo de Taffarel. O Maracanã – o velho Maracanã – silencia no 1×1, traumatizado pela virada uruguaia em 1950.
Sou vaiado quando ponho Barbosa, o goleiro negro humilhado pelo gol de Ghighia em lugar de Taffarel. Eusébio recebe de Maradona e devolve. Maradona passa por Djalma Santos e corta Carlos Alberto e Orlando Peçanha. Chuta da marca do pênalti. Barbosa encaixa, sem rebote e arremessa ao contra-ataque.
Depois de tragar seu sexto cigarro, Gerson enfia no capricho para Romário ziguezaguear entre Vogts, Beckenbauer e Cabrini. Derrubado. Pênalti. São 44 minutos. Pelé entrega a bola a Zico. “É tua Galo. É pelo aniversário e pelo jogo contra a França em 1986”.
Yashin cresce à frente de Zico, que veste a 9 porque a 10 é do Rei. Zico põe na marca frontal, toma distância e bate no canto direito, efeito, goleiro fora da foto. Vitória de Zico, 2×1. Em sonho, direito indestrutível de quem ama o futebol bailarino.
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