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ZAMORA, O ÍDOLO QUE GANHOU A “VIDA” DE PRESENTE

21 / janeiro / 2020

por André Felipe de Lima


“Quando alguém é uma lenda, sua vida não é mais dele, mas é composta de fragmentos de vida que outros imaginavam, viam, sentiam. Quando alguém é chamado de “Mito”, como se fosse chamado de “Divino”, não é possível questionar a objetividade da história e, desse modo, realidade e ficção, versos meio cozidos, se juntam nas biografias até que se desenhe caricaturas onde havia apenas carne, pele e sangue”. Essa definição lírica assinada pelo escritor espanhol Marcos Pereda é a melhor que li sobre Ricardo Zamora, o maior e melhor goleiro espanhol de todos os tempos. Zamora faria 119 anos hoje. Foi tão extraordinário que o chamavam de “Divino”. Lendas e verdades — como bem definiu Pereda — caminharam juntas para narrar o que foi e o que jogou Zamora. Os mais velhos ou mesmo os que conhecem a história do futebol espanhol não têm dúvida em afirmar que foi o “Divino” o melhor arqueiro que já vestiu as camisas do Espanyol, do Barcelona e do Real Madrid. Sim, nenhum outro o superou até hoje embaixo das balizas nos três grandes clubes espanhóis. 

Rebelde para uns, mito para outros. Mas em comum para todos… excepcional. Zamora voava junto à bola. Seguro, firme, inabalável diziam os que o viram jogar. A rebeldia foi percebida mais no Zamora que escrevia. Zamora, sim, escreveu. Teve seu momento de periodista, e isso aconteceu logo no começo da Guerra Espanhola, em 1936, quando produziu alguns artigos para o jornal católico YA, que, embora conservador em seu começo, em 1935, mostrava-se contrário ao obscuro generalíssimo Franco, que já ansiava o poder. Embora os esquerdistas não vissem Zamora com bons olhos, ele — pelo menos naquele começo de conflito armado — estava do lado bom da luta fratricida em solo pátrio. Não coadunava com a república golpista instaurada. Um dos episódios que confirmam a rebeldia de Zamora contra a mobilização ditatorial franquista aconteceu durante um jantar oferecido aos campeões da Copa do Rei de 36. Um fotógrafo teria registrado o momento em que Zamora brindou a todos com um resistente discurso: “Viva Madrid! Viva a Espanha!”, em clara oposição a Franco. Mas um jornalista no local complementou: “E viva a república!”. Zamora silenciou. Todos silenciaram naquele instante como se obedecessem à “ordem” do “Divino”.


Zamora sentiu os efeitos do discurso e do que escrevera no YA. Teve de se esconder no primeiro ano da guerra civil. Várias vezes foi dado como morto por jornais da Espanha e até mesmo de outros países europeus. Ora escreviam que o corpo dele tinha sido visto crivado de balas em uma vala ora escreviam que um funeral acontecera em Vallodolid para os restos mortais do goleiro. Zamora “morria” todo dia naquela tragédia que abalara a nação. Mas estava vivo e preso. Tivera a sorte que muitos companheiros de cela não tiveram. Praticamente todos acabaram fuzilados. O mesmo destino teve o poeta Federico García Lorca, naquele mesmo ano sombrio de 1936. A sorte de Zamora foi ser simplesmente Zamora, ou seja, um ídolo. Mas os carcereiros cegos não o identificaram. Um escritor e poeta como Lorca sim. Chamava-se Pedro Luis de Gálvez. Foi ele quem impediu que o goleiro fosse baleado em Madri no início da guerra civil. Na prisão, Gálvez beija-o, abraça-o fortemente e grita desesperadamente: “Vejam, é Ricardo Zamora, o grande goleiro internacional. Ele é meu amigo e me alimentou. Então todos aqui não deixem que toquem um fio de cabelo sequer dele, eu os proíbo! É uma injustiça que esteja aqui!”

Zamora é solto em novembro de 36. Livre, autografa uma fotografia e a envia ao amigo prisioneiro com uma singela dedicatória: “Para o único homem que deixei me beijar na prisão”. No dia 20 de abril de 1940, Gálvez foi sentenciado ao balaço. Zamora depõem em favor ao amigo. Nada adianta a palavra do ídolo. A ditadura, seja ela qual for, não respeita ícones sociais e culturais. Não respeita nada. Nada mesmo. Nos últimos momentos de Gálvez, ele exibiu a todos a foto que recebera de Zamora. Dali para a morte, mas com uma honra indescritível e comovente. 

Zamora permaneceu escondido. Até mesmo a Embaixada da Argentina o acolheu e a sua esposa e filho. Começara a temer grupos mais exaltados dos contrários a Franco. Os dias na embaixada foram muito difíceis para Zamora e a família, que dividiam um cômodo com vários refugiados. A comida era escassa. O desespero era imenso, mas o goleiro acreditava que se saísse às ruas sua popularidade o salvaria. Dissuadiram-no da temerária ideia.

Protegido pelo governo argentino, Zamora seguiu para Nice, na França, e permaneceu em silêncio a ponto de acharem que havia morrido. Mas Zamora decidiu falar. Em 1937, defendia-se ao afirmar que não desejava fazer política; não era fascista e ansiava apenas voltar ao país e fazer o que mais amava: jogar futebol:


“Sempre fui um homem íntegro. Um espanhol cem por cento. Sempre servi meu país com amor e entusiasmo. Acreditava que, no final de uma carreira descrita como gloriosa, tinha o direito de respeitar meus compatriotas. Projetos para o futuro? Não levei um tiro, estou feliz. Sou jovem e forte. Amo meu esporte mais do que nunca e não pensei em abandoná-lo (…) Nos últimos meses, houve muita conversa sobre mim. Sempre lidei com esporte, meu esporte, e nunca intervi na política. Se fizesse política, estaria a serviço do povo. Minha popularidade sempre estará a serviço do povo. Digam na Espanha que não sou fascista e que meu único desejo é voltar para lá e trabalhar para minha terra natal com toda a segurança.”

A polêmica aconteceu, porém, quando regressou à Espanha e participou de um jogo em benefício dos soldados de Franco, em dezembro de 1938, no auge do conflito armado no país. Mas vários jogadores fizeram o mesmo, fossem eles adeptos ou não do regime ditatorial. Os dois lados do conflito o olhavam, no entanto, com desconfiança. Os franquistas se incomodaram com as declarações de Zamora na França e os militantes da resistência definiam o goleiro como um fugitivo da causa, que deveria fazer o mesmo que o ídolo basco do Athletic de Bilbao, o grande Guillermo Gorostiza, ou seja, ir para o front.

Zamora não foi ao campo de batalha. Ouviu críticas até o fim da vida por isso, mas jamais coadunou com Franco, mesmo após o fim da guerra. Recebeu condecorações. Mas pelo que fez como jogador e treinador para o futebol deveria recebê-las sem indagações. Como toda a Espanha, ele dolorosamente resignou-se com a vitória do horror franquista, que atrasou o país durante décadas. Nada podia ser feito contra o poderia bélico que Franco ostentava. Zamora ainda conseguiu ver a queda do regime com a morte de Franco, em 1975. Nunca se manifestou sobre isso, mas certamente estava feliz com a retomada da liberdade de ir e vir. A liberdade inclusive para falar. Viveu-a, enfim, até 1978, o ano derradeiro de sua história, de sua vida, uma vida que lhe fora presenteada em 1936, naquela fria prisão, pelo poeta Gálvez.

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