por Marcelo Mendez
As minhas andanças de pijama até o quarto do Velho Gunther já era algo comum na rotina do Hospital Santo André.
Toda a hora que dava eu ia lá pra ver desenho, Globo Esporte e filmes de bang bang. Gunther, quando não resmungava de tudo, dormia e os dois grandões, Pedrão e Teodoro, viraram meus amigos e me falaram dele. Particularmente, porque ele ficava sempre sozinho naquele quarto enorme e chique.
O Velho Alemão não tinha uma boa relação com os filhos, com ninguém. Sempre cuidou dos seus negócios com mão de ferro e a vida que teve o fez se preocupar muito em ter as coisas todas, a ganhar tudo e de todos, se dedicou a isso e nunca teve muito para nada que não fosse o que por aí se chama de sucesso. Eles me contaram que a coisa piorou quando a mulher faleceu e agora a doença.
Gunther era um homem rico e solitário.
Como tal, tinha um pouco de medo quando alguém afrontava essa solidão. Foi o que aconteceu comigo, no começo, mas era o que não acontecia mais, desde o dia que bati na sua porta pra ver futebol
Liberado para receber afeto
Descobri no dia anterior que eu finalmente estava liberado para receber visitas.
A doença já estava saindo do meu corpo, a recuperação ótima e em breve eu teria alta para ir pra casa. Faltava pouco e agora ia poder ver as pessoas que pudessem me ver. No dia 18 de maio de 1981 eles poderiam vir me ver, mas isso tava me preocupando…
Naquele dia, o Brasil, que já havia vencido a Inglaterra por 1×0 e dado um baile de 3×1 na França, iria enfrentar a Alemanha, depois daquele 4×1 do mundialito, só que dessa vez na casa deles, em Stuttgart. O time alemão era forte e viria com tudo pra cima da gente. O jogo seria as 16h45 e o horário de visitas das 15h às 17h. Que coisa…
O Parque Novo Oratório é em todo lugar…
Às 15h em ponto, meu Pai, minha mãe e minha irmã entraram no quarto.
Depois de abraços, beijos, orações e glórias, me entregaram um pacote com bolacha, maçã, pêra. Eu estava liberado pra comer fora da dieta do hospital. Falamos um pouco quando meu pai falou da surpresa:
– Filho, eu vou lá embaixo buscar um pessoal que veio te ver!
– Quem, Pai?
– Você vai ver…
E enquanto eu falava com a mãe, eis que ouço um barulho, seguido de uma invasão no quarto:
– Aeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeeee!!!!!!
Era o time do Nacional. Todos os jogadores do time fizeram questão de vir me ver. Seu Cido, nosso diretor, arrumou uma Kombi, botou todo mundo dentro e trouxe a molecada toda.
– Espera, sai de cima, vai quebrar a cama!
Todos eles fizeram montinho em mim, comemoraram e uma zona foi feita no corredor do terceiro andar do hospital. Os assuntos eram vários:
– Marcelo, tamo classificado pra semifinal do campeonato de Santo André. Sem você, tá jogando o Edu! – me informou Baianinho, o zagueiro.
– E tá muito bem, viu? Cê pode seguir aqui mais uns dias…
– Vai se fuder, Carlão!
Todo mundo riu. As gargalhadas foram interrompidas pela pergunta do Tocão:
– Puta merda, num vamo poder ver o jogo. É daqui a pouco!
– Hum… Pode deixar, vou dar um jeito. Venham comigo!
– Marcelo, pra onde você tá levando eles?
– Pode ficar tranquila, Mãe. É aqui perto…
A arquibancada possível…
Acompanhado de mais 12 moleques eu cheguei até o quarto do Seu Gunther:
– Seu Gunther, tudo bem?
– Mas que diabo é isso? Arrastão?
– Não, Seu Gunther. Esses são meus amigos, lá do nosso time, o Nacional do Parque Novo Oratório, aquele que eu falei pro senhor…
– Sim, mas o que você quer aqui com essa turma?
– Seguinte, hoje é o ultimo jogo da excursão da Europa e contra a Alemanha do senhor. Daí trouxe os amigos pra gente ver o jogo aqui!
– Mas de novo esse futebol?
– Ô Seu Chucrute… Libera logo essa TV aí, que já vai começar.
– Do que você me chamou??!
– Cala a boca, Luciano! Seu Gunther, a gente num vai embora. Deixa a gente ver, vai…
Resoluto, Gunther deixou. E mesmo que não quisesse, entrou na nossa pilha e o quarto virou uma festa. Ele mandou que Teodoro comprasse um monte de salgadinhos da lanchonete do hospital, refrigerantes e até uma pipoca arrumou. Quando a Alemanha fez 1×0 com Fischer, ele gritou gol e tudo.
Porém, quando Toninho Cerezo empatou, a gente fez montinho nele e no segundo gol, de Júnior, quase derrubamos o andar do Hospital.
Tiveram ainda os pênaltis que Valdir Peres defendeu e, no final de tudo, o jogo acabou, o horário de visitas estourou e quando foram se dar conta, no quarto particular de Gunther tinha nós, os moleques, meu pai, os seguranças do Velho, os Enfermeiros, o médico de plantão e o pessoal da faxina.
Uma festa!
O Brasil saía invicto da Europa e o Velho Gunther, depois de muito tempo, voltou a sorrir.
A dor que o silêncio traz…
Os dias se passaram.
Chegou a vez de eu ter minha alta e eu corri lá pro quarto dele para dar a notícia, mas ele não estava mais lá. Dona Dora, a enfermeira, estava arrumando as coisas e foi ela quem me contou.
Gunther havia morrido naquela madrugada. Ninguém de sua família subiu para vê-lo, nenhuma pessoa ali para lamentar nada. Parei por um tempo ali.
Olhei para a TV, lembrei das tardes que passamos juntos e fiquei triste o bastante para não querer mais olhar para nada daquele lugar. De volta pelo corredor do Hospital Santo André, chorei sem entender o porquê.
Naquele Maio de 1981, aprendi que a vida, o futebol e a Copa de 1982 eram bem legais, mas que também podiam fazer chorar.
Essa foi uma lição que eu não aprendi para 1982…
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