por Leandro Ginane
Conheci o universo das escolas de samba nos anos oitenta, creio que em 1987 quando eu tinha 8 anos. Meu pai, mangueirense roxo, junto com minha mãe nos levava aos domingos de carnaval para ver os carros alegóricos que iriam desfilar à noite na Sapucaí e ficavam enfileirados na Avenida Presidente Vargas perto do Balança mas não Cai esperando a hora da festa. Na verdade, o que ele mais queria é que a gente conhecesse a verde-rosa e foi uma forma criativa e gratuita que encontrou na época.
Naquele ano, a Mangueira foi campeã com um enredo sobre Carlos Drummond de Andrade. Este certamente foi o primeiro contato que tivemos com o poeta, que se tornou anos depois uma referência importante para o meu irmão. Os sambas-enredos aliás foram uma grande aula de história no decorrer da minha infância, foi por eles que conheci Zumbi dos Palmares, Chico Buarque, Dorival Caymmi e tantos outros personagens da cultura popular brasileira.
Além das histórias contadas pelos carros alegóricos, ampliadas pelo meu pai, o momento em que encontrávamos a águia da Portela também me marcava. Quando avistava de longe as asas imponentes no abre alas, meu coração disparava. Tudo parecia tão maior do que é.
Enquanto meu amor pela Mangueira vem do meu pai, o carinho pela Portela tem raízes na minha mãe. Sua irmã, uma amante inveterada do carnaval, na juventude foi madrinha de bateria de um tradicional bloco do subúrbio, o Batutas do Méier e seu sonho sempre foi desfilar na avenida vestida com o azul e branco de Madureira. Cresci no meio desse carnaval de cores e batucadas e a primeira vez que ouvi a Surdo Um tocar na quadra da verde-rosa, chorei.
Senti a mesma sensação ao ver a torcida do Flamengo no Maracanã. A relação entre o morro da Mangueira, o Maracanã e o Flamengo sempre foi muito estreita na minha cabeça e só mais tarde entendi que essa conexão ia além das fronteiras da minha imaginação e da proximidade geográfica entre o estádio e o morro. Ela dialoga com uma força popular e estética que só tive contato na quadra da verde-rosa e no antigo estádio de concreto com a torcida do Flamengo.
Era comum ouvir de forma pejorativa que em dia de jogo do rubro-negro no Maraca o morro da Mangueira descia, pude constatar que era verdade e me orgulhava disso. Para nós, aquela provocação era um elogio e tínhamos orgulho de ser reconhecidos pelos rivais como a torcida da favela e de ter o Maracanã como meio de inclusão social. Enquanto escrevo, sinto saudade dessa época.
O último ensaio na quadra da Mangueira antes do desfile no Sambódromo, trouxe a tona essas memórias e me encheu de esperança.
Pega a visão: o enredo deste ano tem uma potência incrível. Fala de um Jesus que retorna vindo do morro de Mangueira, onde Ele é homem, é mulher, é negro, é indígena e pode ter qualquer religião. É Jesus da Gente, nascido no morro. Um Cristo que é representado pelas diferenças e não apenas por um homem branco. Neste enredo, a Mangueira mantém sua posição em defesa das minorias e é vítima de ataques conservadores de todos os tipos, o que faz o canto de trechos do samba que tem como referência a resistência popular ser ainda mais forte e será assim domingo de carnaval, na avenida. Essa potência está presente também na bateria Surdo Um, que chama seu povo para cantar no sincopado dos tambores.
Ao fim do ensaio, a bateria desceu do palco que mais se parece com um altar e como numa procissão, todos seguiram atrás da verde-rosa até sair da quadra para tocar na rua ao raiar do sol, que iluminou pouco a pouco o mar de pessoas que vestiam verde-rosa-vermelho-preto.
Durante a batucada com o canto forte do samba pelo povo, as lágrimas escorreram novamente como na primeira vez.
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