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‘VAI SE CHAMAR HÉRCULES’. E ASSIM NASCEU O BRITO DE 70

9 / agosto / 2017

por André Felipe de Lima


O Flexeiras AC foi um time de peladas da Ilha do Governador, no Rio de Janeiro, que não existe mais. Mas o que pouco se comenta – inclusive no meio futebolístico – é que desse clube de peladeiros surgiram dois campeões mundiais. O primeiro foi Nilton Santos, a Enciclopédia; o segundo o zagueirão Hércules Brito Ruas, o cara que desbancou, num teste físico, o inglês Bobby Moore, o alemão Franz Beckenbauer e o italiano Gigi Riva e, com o reconhecimento oficial da Fifa, foi considerado o jogador com o melhor preparo físico da Copa do Mundo do México, em 1970.

O segredo para a estupenda forma física só revelaria muitos anos depois: uma garrafa de cerveja preta, um gema de ovo, uma colher de mel e outra de canela, tudo batido no liquidificador.

Brito despontou em 1955 e mostrava-se versátil. Quando a zaga era pouco para ele, arriscava-se no meio-campo. E foi Válter, funcionário da Aeronáutica e vascaíno fanático, quem levou Brito para São Januário. Fez um teste e foi aprovado como zagueiro.

De 1955 a 1958, o garoto cumpriu sua primeira passagem pelo Vasco da Gama. Mesmo tendo que disputar espaço com Bellini e Orlando Peçanha, donos indiscutíveis da zaga da Colina, fez parte dos elencos campeões cariocas em 1956 e em 1958.


O craque nasceu no dia 9 de agosto de 1939, na cidade do Rio de Janeiro. O carpinteiro Lenídio Ruas, pai de Brito, logo que viu o bebê pela primeira vez com incríveis cinco quilos, não pestanejou: “Vai se chamar Hércules”.

Brito foi um dos jogadores mais fortes, porém leal, do futebol brasileiro. Ao deixar o Vasco da Gama em 1958, com apenas 20 anos, seguiu para o Internacional, de Porto Alegre. Sequer encontrou tempo para vários chimarrões. Retornou ao Vasco da Gama em 1959 e por lá ficou até 1969.

E não é que Bellini esteve novamente em seu caminho? O maior zagueiro da história do Vasco da Gama e capitão da Seleção em 1958, na Suécia, estava de malas prontas para o São Paulo no início da década de 1960. Era o momento da afirmação de Brito no Vasco da Gama.

E foi o que realmente aconteceu, embora a década tenha sido um fardo para o time de São Januário, que não levantou troféu algum. Brito era, porém, o capitão do time, posto que também herdou de Bellini, e a torcida – por motivos óbvios – o chamava de “Cavalo”, apelido que marcou a sua carreira e manteve a fama de mau.

Em 1969, sem títulos na Colina, o zagueiro trocou São Januário pela Gávea, mas disputou poucos jogos pelo Flamengo. No ano seguinte, o Vasco da Gama conquistaria o Campeonato Estadual.


Teria Brito se dado mal? No único ano em que ficou no rubro-negro carioca, enfrentou a indignação dos vascaínos e, até, de torcedores do Flamengo. Deixou a Gávea em 1971, após uma áspera discussão com o então técnico Yustrich (ex-goleiro do Flamengo na década de 1930), cuja fama de destemperado era antiga.

O bate-boca começou porque Yustrich teria chamado os campeões de 1970 de “porcarias”. Mas há outras versões da insatisfação com Yustrich. Em julho, logo após o tri, Brito leu em um jornal, quando embarcara em um táxi rumo à Gávea para treinar, que perdera a posição de titular para o desconhecido Washington. “Tive de vencer muitos obstáculos para ser titular da Seleção. A imprensa, principalmente a de São Paulo, foi um. No mínimo, tive que ganhar do Djalma Dias, do Joel, do Fontana, do Scala, do Baldocchi e até mesmo do Piazza, para entrar no time. Aliás, de luta não fujo. Por isso, não culpo ninguém. O problema de escolher o titular é do Seu Yustrich. O meu, é apenas lutar por êsse lugar. E é o que estou fazendo”.

No final das contas, a revista Placar publicou como capa de uma edição de agosto uma foto de Brito com a manchete “Vende-se, Hércules Brito Ruas, 30 anos, zagueiro de área, campeão do mundo”.

A mais pura e genuína verdade. Mas os motivos que levaram a diretoria a vender o passe de Brito é que não são louváveis. Por inapetência intelectual dos cartolas, Brito, um campeão mundial, deveria ser moeda de troca para pagar ao Atlético de Madrid e ao Barcelona, respectivamente, os passes do zagueiro paraguaio Reyes e do centroavante Silva e manter Yustrich na Gávea. E foi isso o que aconteceu. O Cruzeiro depositou 365 mil cruzeiros na Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e levou Brito para Minas Gerais.

Afastado do elenco do Flamengo, treinando sozinho, Brito arrumou mala e cuia e foi para Belo Horizonte, onde assinaria contrato com o Cruzeiro para jogar ao lado de Piazza, ex-companheiro de zaga no tri, de Dirceu Lopes e de Tostão, também ex-parceiro na jornada do México.

A rixa com Yustrich parecia interminável. Nem com Brito fora do Flamengo havia paz. Faltou pouco para ambos saírem no tapa. Após o fim de um jogo do Cruzeiro contra o Flamengo, no Mineirão, que terminou 3 a 1 para o time mineiro, Brito, ao sair do gramado, xingou o Yustrich e atirou a camisa azul na direção do treinador. “Se eles não me segurassem, eu teria feito qualquer absurdo. Isto se conseguisse chegar junto do Brito, porque ele está correndo como nunca. Sem eu conseguir sair do túnel, ele correu. Imagino se eu me desvencilhasse dos policiais. Ele é tão covarde que jogou a camisa longe, cerca de 10 metros, e ela caiu na pista. Nem no túnel ela chegou. Mas eu achei uma indignidade com o Flamengo, com a sua torcida – bem grande e que tomava parte das arquibancadas. Por isto, fiquei revoltado. Se eu entro em campo, não sei o que seria dele agora”. Brito sentira-se, contudo, vingado: “Era isso que eu precisava: humilhá-lo publicamente, como ele fez comigo. Pena que o jogo não tenha sido no Maracanã. Lá teria mais gente, a torcida do Flamengo é enorme.”

A estada em Minas, porém, também durou pouco. O Flamengo ainda era dono de seu passe, mas o presidente André Richer não o queria de volta pelo fato de Yustrich ainda ser o técnico do time. Brito, então, retornou ao Rio de Janeiro, mas agora para defender o Botafogo, mas já não era mais o zagueirão de outrora. E, a paciência também parecia ter ficado no passado.


Após agredir com um soco no estômago o árbitro José Aldo Pereira, que marcara um pênalti a favor do Vasco da Gama, em jogo realizado no dia 31 de outubro de 1971, Brito foi punido pela antiga Confederação Brasileira de Desportos (CBD), com um ano de suspensão, pena abrandada semanas depois para seis meses. O Vasco da Gama venceu de 1 a 0 e a imagem de Brito perante a opinião pública ficou manchada. Dizia que somente o então presidente Emílio Garrastazu Médici é quem poderia livrá-lo do problema com a Justiça. Pegou mal…

Cumpriu a pena e percebeu que não havia mais ambiente para ele no futebol carioca. Aliás, a derrota do Botafogo na final com o Fluminense ficara entalada em sua garganta.

Décadas depois, comentou o episódio que envolveu José Aldo Pereira motivo de sua condenação: “O pênalti foi uma vergonha. Olhei para ele, que me deu uma risada de deboche. Não aguentei e dei um gancho que pegou na barriga dele. Aí, gritei. ‘Isso é para você tomar vergonha na cara”.


Em agosto de 1974, já com 35 anos e poucos cabelos, recebeu do Corinthians uma proposta salarial de 11 mil cruzeiros mensais. Para a época, algo irrecusável. E lá foi Brito jogar ao lado de Rivellino para tentar tirar o Timão do amargo jejum de 20 anos sem títulos estaduais.

Tudo parecia seguir um rumo certo. O time do Parque São Jorge conquistou o primeiro turno e garantiu vaga na decisão. Mas a carruagem viraria abóbora na tarde do dia 22 de dezembro de 1974 diante do Palmeiras, de Ademir da Guia, Dudu, Luis Pereira e Leivinha, e dos 120 mil torcedores que lotaram o estádio do Morumbi. Enquanto os craques palmeirenses vibravam no gramado, Brito, o velho herói de seu Lenídio, mostrou por que recebeu o nome de Hércules. Tinha vergonha na cara e foi chorar no chuveiro do Morumbi, uma das derrotas mais dolorosas para a história do futebol do Corinthians.

Após a perda do título, a diretoria do Corinthians decidiu que deveria priorizar os mais jovens do elenco. Nem precisa pensar muito para saber que Brito, já com 35 anos, estava fora dos planos do Timão; ademais, tinha passe-livre e sua contratação foi apenas para a disputa do Campeonato Paulista.

O período em que Brito esteve no Parque São Jorge foi gratificante. Fez amizade com funcionários, especialmente os mais humildes. Morou alguns dias com o amigo (lateral-direito) Zé Maria e até caçou passarinhos com Rivellino e o goleiro Ado. Cinco meses muito bem vividos no clube.

E a torcida reconheceu isso. Brito marcou gol contra, chorou e jogou com uma garra digna das palmas de cada corintiano que o assistia nos estádios. Brito é do tipo daquele jogador que toda torcida gosta de ver, sobretudo a do Corinthians. 

“A torcida, por exemplo, me aplaudiu e deu provas de um carinho que nunca tinha encontrado na minha vida. Nesse tempo de Corinthians, aprendi a amar a torcida e o clube, e até me adaptei a São Paulo, o que todo carioca acha impossível”. Para os jogadores, Brito era uma espécie de pai e conselheiro. Rivellino, por exemplo, com quem Brito foi parceiro de Seleção, na Copa do Mundo de 1970, dizia que o zagueiro era o único que podia gritar com todos em campo sem ser mal interpretado.

Os sambas que cantarolava no clube e na concentração fizeram falta. Era Brito quem, antes de cada jogo, acendia velas para São Cosme e São Damião. Sua fé nos santos também valia para proteger os companheiros. Rivellino, por exemplo, estava prestes a ser julgado pela justiça desportiva. Brito não se fez de rogado e fez promessa aos santos para que o amigo “Curió” fosse absolvido. “Sempre fui pobre, todos sabem disso. Nunca escondi que não preciso de dinheiro para viver como gosto. Nunca faço aquilo que não gosto de fazer. Eu sou assim mesmo”.

Brito jamais soube ao certo os motivos que levaram a diretoria a não renovar seu contrato. Especulava-se que o pessoal do departamento de futebol ficou indignado com o fato de Brito ter bebido uísque com Rivellino e Zé Maria até quatro da manhã, na casa de Riva, na noite em que ele foi absolvido pelo Tribunal de Justiça Desportiva da agressão ao bandeirinha Mário Molino. Mas havia gente que afirmava ser o treinador Pirillo o óbice para que Brito permanecesse no Corinthians. A trajetória do zagueiro campeão do mundo no Alvinegro foi marcada por apenas 29 jogos, 12 vitórias e sete empates, com um gol contra.

Brito já não era nenhum garoto. Com 40 anos, ainda tentou uma passagem pelo Atlético Paranaense, em 1975. No mesmo ano, esteve no Les Castors (de Montreal, Canadá) e no Deportivo Galicia (Venezuela). De 1976 a 1978, esteve no Democrata, de Governador Valaladares (MG), encerrando a carreira em 1979, no River AC, do Piauí.

Para a Seleção Brasileira, Brito foi convocado pela primeira vez como titular em 1964, na Taça das Nações. Até 1972, esteve sempre na lista de convocados. Durante as eliminatórias para a Copa do México de 1970, era uma das “feras” nas listas de João Saldanha. Zagallo assumiu o comando da seleção e manteve Brito, que havia deixado o Vasco da Gama poucos meses antes da Copa, na zaga tricampeã.

Além do “caneco”, Brito conquistou um título particular. Foi considerado o jogador com o melhor porte físico da Copa por uma junta médica. A faceta rendeu-lhe um mimo do então presidente da República, o general Emílio Garrastazu Médici, o título de comendador… Comendador Hércules Brito Ruas, ou, simplesmente, o “Zagueiro Saúde”, para a torcida.

E teve mais conquista em 1970. Brito ganhou a Bola de Prata da revista Placar. O craque disputou 60 jogos com a Amarelinha. Venceu 45 e empatou 10 e só assumiu a vaga de titular em 1970, porque João Saldanha foi dispensado pela CBD, caso contrário Djalma Dias seria o titular.

O zagueiro fez fama também pelo seu bom humor. Na concentração, era insuperável. Entre mitos e histórias reais, Brito telefonava da concentração no México para o seu cachorro que, do outro lado da linha, respondia em latidos intermitentes. Impossível não cair na gargalhada.

Além da gracinha canina, Brito também era um contador de piadas. Para ele, uma boa cachacinha e samba (preferencialmente da querida União da Ilha do Governador, Mangueira ou Imperatriz Leopoldinense) o deixavam feliz. 

O zagueirão também quase deixa uma bola importante passar por ele. Perdeu a hora do casamento. Se foi capaz de esquecer o matrimônio, não esqueceria um grande amigo: Garrincha.

Por Mané, Brito intercedeu para que o ponta, que já estava em estado avançado do alcoolismo, treinasse no Vasco da Gama. Gentil Cardoso que, curiosamente, foi o primeiro treinador da carreira de Garrincha, dirigia o Vasco da Gama naquela ocasião. E foi franco com o craque ao dizer-lhe que não havia como aproveitá-lo no time principal. Mas, talvez por gratidão e reconhecimento, ofereceu-lhe uma vaga em um time misto do Vasco da Gama que jogaria em Cardoso, interior de São Paulo. Nada mais.


Até com pouco mais de 50 anos, sempre manteve a forma com diárias corridas de oito quilômetros, todas as manhãs. Quando era jogador, usava coletes de chumbo e roupão. Perguntavam se estava louco, mas o fato é que Brito corria mais que qualquer outro em campo.

Brito deixou o futebol e fez cursos para treinamento de times de futebol na Federação Canadense. Dirigiu, entre outros clubes, o Bonsucesso, o Ceilândia e o Sampaio Corrêa. Também esteve na Arábia Saudita, onde dirigiu o Riad Club até o início da guerra do Golfo Pérsico, em agosto de 1990.

Mas o ápice foi mesmo em 1982, quando comandou o Cruzeiro. Trabalhou algum tempo no projeto do já falecido empresário Arthur Sendas, o Sendas Esporte Clube, para crianças carentes, que existiu até 2011.

Brito jamais abandonou a Ilha do Governador, onde vive até hoje, fazendo o que mais gosta depois do futebol: pescar. Melhor ainda se for bem cedo, às cinco da manhã, e na companhia dos netos. Pescar, aliás, sempre foi o melhor “calmante” do craque. “Quando os caras estão nervosos, lembro o ditado: ‘Tá (sic) nervoso, vai pescar’. Eu mesmo quando pesco penso na vida, reflito. Tenho muito medo de morrer. Deus me livre, a vida é muito boa, né!”.

Palavras do eterno e imortal “Comendador da Zaga” e tricampeão mundial.

***

O texto acima integra a “Letra B” (segundo volume) da enciclopédia Ídolos – Dicionário dos Craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias, cujo lançamento será ainda neste semestre pela Livros de Futebol.com.

2 Comentários

  1. Sebastião de Macedo Reis

    Sensacional. Sou vascaíno é desde os 7 anos de idade, vibrava com as vitórias do meu clube do coração. Naquela época os jogadores jogavam por amor. Hoje, já não e mesma coisa. As únicas excessões para mais recentes foram Roberto Dinamite e Edmundo. Dá-lhe Vascão! Obrigado.

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  2. Saulo Cesar Dutra Lima Ferreira

    sensacional

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