por Zé Roberto Padilha
O relógio do Mineirão marcava 44 minutos do segundo tempo, em uma época em que ainda se permitiam relógios nos estádios de futebol. Eles que ajudavam a torcida vitoriosa ficar berrando para o juiz acabar o jogo, e a que tivesse perdendo implorasse alguns minutos a mais. E o escanteio era a nosso favor. O placar apontava Cruzeiro 1×1 Fluminense, e o Campeonato Brasileiro de 75 se aproximava do fim.
Paulo César Caju, nosso camisa 8, foi batê-lo e ao notar mais homens de azul do que tricolores no interior da grande área, gritou para eu encostar e trocar passes na linha de fundo, junto à bandeirinha, até o tempo se esgotar. O empate fora de casa, a duas rodada do fim, já nos classificava. Esgotado por correr 89 minutos naquele gramado fofo, vigiando de perto os mísseis do arsenal do Nelinho, recusei o convite.
E me plantei na intermediária. A pressão do Cruzeiro era insuportável e certamente viria um contra-ataque após a cobrança do escanteio. Nosso centroavante, Manfrini, não era alto. E até o Edinho, nosso melhor cabeceador, não se arriscou a atravessar o campo.
Mas PC parecia não ter mais força sequer para alçar aquela bola. E continuou a berrar: “Encosta aqui ô juvenil!”. Mesmo começando a minha carreira e diante das ordens de uma velha raposa tricampeã do mundo, resisti. E devolvi o grito da linha do meio de campo. ” Joga essa po… lá pro abafa!”.
Contrariado, Paulo César bateu o corner direto. A bola fez uma curva incrível e enganou o goleiro Raul, que caiu dentro do gol enroscado com ela. E um gol inesquecível, olímpico, garantia de vez a nossa presença nas semifinais do Brasileiro junto ao Inter, Corinthians e o próprio Cruzeiro.
Como sonha todo mundo no país do futebol, eu era jogador de um grande time quase imbatível, cujo goleiro, Félix, era uma lenda tricampeã mundial. Nas laterais, dois modernos apoiadores: um mais forte, Toninho Baiano, que chegava rapidamente à linha de fundo, outro mais técnico, também tricampeão mundial, chamado Marco Antônio.
Na zaga, um jogador experiente, dono de um chute impressionante, chamado Silveira. Ao seu lado, um fenômeno de 19 anos, Edinho, se apresentava ao futebol. Zé Mário, um incansável e inteligente cabeça de área nos protegia, deixando espaço para o livre pensar de duas genialidades: Rivelino e Paulo César Caju. No ataque, a explosão e o oportunismo do Búfalo Gil, ao lado da inteligência natural de um Manfrini, decidiam tudo a nosso favor.
Nesse paraíso da bola rolando, eu, tricolor fanático desde criancinha, ganhara de presente a camisa 11. E percorria, com e sem a bola, os quatro cantos do Maracanã, do Mineirão, do Serra Dourada, onde quer que o Fluminense se apresentasse feliz toda vida. Vestia a camisa que era minha bandeira nas arquibancadas e trocava passes com meus ídolos. E ainda por cima era pago para isso.
E quando estava próximo de mais um título, depois de ganhar invicto a Taça Guanabara, o Campeonato Carioca e encantar o Torneio de Paris, o relógio tratou de me despertar.
Decepcionado, me levantei naquele dia de um sonho inesquecível e fui tomar meu café pra lá de mal- humorado. Porém, antes de sair para o trabalho, na Prefeitura de Três Rios, passei pela sala e me deparei com poster da Revista Placar. Para minha alegria, nele vi a minha foto em meio a todas aquelas feras. E aquela imagem me fez recordar uma passagem inesquecível de minha vida como atleta profissional de futebol.
Que bom saber que tudo aquillo fora realmente vivido e jogado. E que apesar de vir evitando maiores decepções ao recordar a dura realidade com a qual nós, ex-atletas, nos deparamos após nossa precoce retirada do cenário esportivo, fiquei feliz ao descobrir que poderia, e não me seria proibido. mesmo que dormindo, relembrar com orgulho cenas da minha vida esportiva sem o trauma que machuca a maioria dos meus colegas.
Aquelas feras que construíram a nossa admirável história, verdadeiros ídolos que, uma vez abandonados, se entregaram às lembranças nas mesas dos botequins. Sem a justa aposentadoria, estudos que poucos tiveram acesso, muitos ainda circulam entre o álcool, a jogatina e as drogas.
E levam retratinhos do time no bolso da camisa, como a provar que um dia foram importantes na vida esportiva de um país que vive a lhes virar as costas.
* texto do livro “Crônicas de um ex-jogador”, disponível como e-book na Amazon e Cultura.
0 comentários