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UMA GELADEIRA POR PELÉ

25 / fevereiro / 2024

por Rubens Lemos

O aprendiz de cronista é guardião das migalhas das histórias que para a maioria nada significam. A crônica é olhada com desprezo pelo novo jornalismo, mas é a sobra da sensibilidade oxigenando a vida e expulsando as toxinas do cotidiano movido pela ganância, o pisar no outro sem piedade para superá-lo pela deslealdade.

Natal é desmemoriada. Seus mortos viram borrões na semana do sepultamento e recolhidos na alma dos viúvos e filhos, quando muito. Natal é cruel. Foi-se à época – arrebatada num vento sudoeste, de uns oferecendo ombros aos outros em emoções fraturadas.

A cidade deletou, ou suas gerações até 50,60 anos de idade, sequer ouviram falar em Gutemberg Marinho, diretor das rádios Trairi e Nordeste, amigo de duas lendas potiguares: os políticos Djalma Maranhão e Teodorico Bezerra.

Gutemberg Marinho, homem bom e homem pobre, amava o rádio, era alucinado por futebol e soube que Pelé jogaria amistoso pelo Santos contra o Santa Cruz dia 19 de maio de 1959, menos de um ano depois o Menino-Rei se tornar aumentativo de futebol. Iria porque iria entrevistá-lo.

Obstinado, combustível dos sonhadores, fincou pé e decidiu ir a Recife. Sem um tostão, vendeu a geladeira de casa, suficiente para custear acomodações modestas e alimentação controlada e levar a sua mulher, de traços delicados e mediterrâneos. Dona Maria Sônia de Lucena Marinho.

Cumpriram as seis horas de viagem no tranco do ônibus caindo aos pedaços na estrada, à época, irregular. Enfrentaram – estavam injetados de perseverança, a multidão em frente ao charmoso Hotel São Domingos, o melhor de Recife, ancoradouro de artistas de todo o mundo.

Em transe, sentimentalista empedernido, repetiu a história da geladeira vendida depois de insistir em relatar seu sacrifício à delegação santista. Sou cético, mas o milagre da santa loucura de um repórter fez Pelé atender o apelo de Gutemberg Marinho.

Reparem na fotografia, o olhar predador de Pelé no início da conversa, para depois ir cedendo, cedendo e sendo “muito simpático”, segundo a memória de Dona Maria Sônia, hoje aos 86 anos.

Confúcio ensinou: transportai um pedaço de sonho e fará uma montanha, bom mantra para Gutemberg e Maria Sônia. Estupefatos, viram, no Estádio da Ilha do Retiro, o Santos massacrar o Santa Cruz por 5×1, três gols de Pelé em atuação redundantemente extraterrena, Coutinho e Doval com Humaitá descontando para os tricolores.

Quem seria outro Gutemberg capaz de desfalcar a parca mobília em nome de um devaneio? Ninguém, porque ele foi um típico personagem de palavras pescadas. Foi porque morreu do coração no Dia dos Pais de 1966, diante de Maria Sônia e três filhos pequenos.

Gutemberg era um coronariano literal. Visionário indomável. Alguém que o aprendiz de cronista admira no afeto transcendental. Pela coragem de ontem, pela eternidade da solidão dos bravos. Dos que jamais perdem por antecipação. Aí, já é a sina do aprendiz de cronista.

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1 Comentário

  1. Serginho

    Essa fotografia diz muita coisa: do o olhar predador de Pelé no início da conversa, para depois ir cedendo, cedendo e sendo “muito simpático” no final, da empolgação e felicidade do Gutemberg Marinho e do olhar angelical e de muito orgulho de Dona Maria Sônia, observando os dois: o Rei e o louco que vendeu a geladeira de casa, mas havia realizado uma façanha incrível para aquela época.

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