por Eduardo Lamas
Capítulo 2
A música “Só se não for brasileiro nessa hora” (Galvão e Moraes Moreira) está acabando e João Sem Medo parece imerso naquela melodia e sua letra (“Só se não for brasileiro nessa hora…”), quando avista na porta do Além da Imaginação o seu grande amigo Ceguinho Torcedor, que entra auxiliado pelo Idiota da Objetividade e o Sobrenatural de Almeida.
João Sem Medo (de pé pra recebê-los): – Meus amigos, sejam muito bem-vindos! Hoje a resenha promete. Esses aqui saíram das crônicas do meu amigo Nelson Rodrigues especialmente pra esta resenha, Zé Ary. Este aqui é o Ceguinho Torcedor, ele não vai ver você, nem ninguém aqui direito, mas enxerga longe; Sobrenatural de Almeida, com todo respeito, este aqui apronta, e o Idiota da Objetividade, que veio aqui pra tirar um pouco da nossa fantasia. hahahaha Ele é o nosso copidésque!
Ceguinho Torcedor: – Que prazer, João! Garçom, traga-me um copo de leite, por favor. (a João) Meu amigo e irmão João Sem Medo, preciso tratar minha úlcera a pires de leite. Ela lambe como uma gata.
Agora é a vez de os músicos irem entrando aos poucos no restaurante-bar e arrumando seus instrumentos no palco. O bar neste momento já tinha muitas de suas mesas ocupadas.
João Sem Medo: – Amigos, o futebol brasileiro é uma coisa jogada com música. E a música aqui hoje também promete muito. Ceguinho, os músicos estão chegando.
Ceguinho Torcedor: – Que maravilha. O que vão tocar? Uma ópera, o “Rigoletto”?
Garçom: – Não, seu Ceguinho. Eles vão tocar música popular brasileira com grandes artistas, alguns já presentes aqui.
Sobrenatural de Almeida: – Artistas que são de outro mundo!
Garçom: – Isso, eles vão tocar músicas que falam de futebol. Do nosso futebol.
Ceguinho Torcedor: – Muito bem. Interessante.
João Sem Medo: – Pelo que o Zé Ary me contou, são músicas que todo torcedor de futebol deveria conhecer.
Ceguinho Torcedor: – O torcedor é cego de paixão pelo seu clube. Mas o pior cego é o que só vê a bola.
João Sem Medo: – O torcedor é na verdade um distorcedor de fatos…
Ceguinho Torcedor: – … Se os fatos o desmentem, pior pros fatos.
João Sem Medo: – … E é um grande saudosista. Principalmente quando seu time vai mal. E como nossa seleção vem muito mal das pernas já tem tempo, o melhor é falar do passado glorioso do nosso futebol, não acham? Recordar é viver! Isso dá samba, canção, marchinha, chorinho… Hum, chorinho de alegria, por favor, Zé Ary!
Com o grupo musical já a postos, um deles se levanta para se dirigir aos presentes.
Donga: – Saudações a todos! Nós, Os Oito Batutas, temos a honra de tocar aqui pra vocês novamente após tanto tempo. Estamos aqui em sete, então, pra completar o grupo, vamos chamar ao palco um ilustre integrante do nosso grupo que está lá no fundo. Vem pro palco, Pizindim!
Ceguinho Torcedor: – Os Oito Batutas aqui! Pixinguinha! Isso é fantástico.
Sobrenatural de Almeida: – Assombroso!
João Sem Medo: – Espetacular!
Pixinguinha se levanta de sua mesa no fundo do bar e se dirige ao palco sob fortes aplausos. Com o mestre na flauta, Os Oito Batutas tocam com maestria o clássico “Um a Zero”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda.
Todos aplaudem de pé.
Ceguinho Torcedor: – Ah, que bons tempos aqueles! Amigos, eis uma verdade eterna: o passado tem sempre razão. Por exemplo: o futebol antigo. Era, a meu ver, um fenômeno vital muito mais rico, complexo, intrincado. Hoje, os jogadores, os juízes e os bandeirinhas se parecem entre si como soldadinhos de chumbo. Não encontramos, em ninguém, uma dessemelhança forte, crespa, taxativa. Não há um craque, um árbitro ou um bandeirinha que se imponha como um símbolo humano definitivo.
Sobrenatural de Almeida: – Tá muito saudosista, Ceguinho.
Ceguinho Torcedor: – Nada mais antigo que o passado recente, meu amigo. Esta música que tocaram há pouco me lembra o Garrincha driblando, mas ela foi feita muito antes de o Mané nascer, vocês todos sabem muito bem disso.
Pixinguinha (antes de deixar o palco): – Essa música se chama “Um a Zero” e é uma homenagem à primeira grande conquista do futebol brasileiro, o Campeonato Sul-Americano de 1919. Muito obrigado.
Pixinguinha é mais uma vez aplaudidíssimo e se dirige novamente ao fundo do restaurante, agora acompanhado dos outros sete batutas.
João Sem Medo: – Ganhamos de 1 a 0 do Uruguai, no estádio das Laranjeiras, que tinha sido construído praquela competição, a terceira entre seleções da América do Sul.
Ceguinho Torcedor: – Um jogo épico, senhores! Um jogo épico decidido pelos pés de Arthur Friedenreich.
Sobrenatural de Almeida: – Com a minha intervenção, é claro.
João Sem Medo: – Tá bom, Almeida.
Ceguinho Torcedor: – Foi uma partida dramática, assistida por 25 mil torcedores no estádio do Fluminense e mais uns 10 mil nos barrancos próximos.
Idiota da Objetividade: – Brasil e Uruguai haviam terminado o torneio empatados em pontos e foi necessária a disputa de uma final.
João Sem Medo: – Os uruguaios foram pro jogo ainda abalados pela morte de seu goleiro Roberto Chery, que se chocou violentamente com um atacante chileno durante a competição.
Ceguinho Torcedor: – É isso mesmo. Eu estava lá, na arquibancada das Laranjeiras. Eu, meu amigo Gravatinha… Ainda éramos crianças, mas me recordo bem. Ninguém se continha de tanta expectativa e apreensão. Jogamos demais, demais.
Idiota da Objetividade: – Demais mesmo, o jogo terminou sem gols no tempo normal. Passou a prorrogação de 30 minutos e nada, apesar das muitas chances pros dois lados.
Ceguinho Torcedor: – Eu estava lá, eu estava lá. Gravatinha não pôde vir hoje pra atestar o que estou falando, mas podem confiar. Foi um grande jogo, meu coração não mente.
Zé Ary se dirige ao velho rádio em cima de uma estante, sintoniza na estação certa e todos podem ouvir a narração do gol de Friedenreich vinda do além de qualquer imaginação, pois o rádio só começou a transmitir jogos de futebol na década de 30, e – pasmem! – com imagens da partida projetadas num telão.
Transcrição da narração fictícia do gol: “Brasil no ataque. Neco invade o território uruguaio pelo lado direito, Foglino está em seu encalço. Neco leva na linha de fundo, cruza, Heitor bate firme, Saporiti defende, larga, o balão de couro sobra pra Friedenreich, é gol. Gooooooooool do Brasil, Friedenreich, Friedenreich, aos três minutos da segunda prorrogação! Nooooooooo placaaaaaaaaaaarrrrrr: Brasil uuuuuuuuuuum, Uruguai zerooooo”.
Todos no restaurante fazem uma festança com o gol, como se tivesse ocorrido naquele instante.
Sobrenatural de Almeida: – Que coisa linda! Que coisa linda eu fiz.
Idiota da Objetividade: – Ainda foram jogados mais 27 minutos, mas o placar ficou mesmo no 1 a 0 pro Brasil, que se tornaria assim, pela primeira vez, campeão sul-americano de futebol.
Sobrenatural de Almeida: – Eu desviei levemente a bola chutada pelo Heitor, por isso o Saporiti não conseguiu segurar. Já não aguentava mais aquele jogo sem gols.
Idiota da Objetividade: – Esta conquista ajudou muito a popularizar o futebol no Brasil.
Se você não acompanhou, confira o capítulo anterior da série:
Caríssimo Edu, excelente essa edição de “Uma coisa jogada com música”!! Adorei!!
A propósito, estou lendo “Footballmania”, um livro que fala da aurora do futebol no Rio, e um capítulo é justamente dedicado ao jogo histórico da final do campeonato sul-americano de 1919, entre Brasil e Uruguai.
Você sabia que o Rio “parou” naquele dia (29/05)?
Ponto facultativo nas repartições públicas, bancos e comércio fechados, enfim, a cidade inteira à espera de testemunhar (e comemorar) o primeiro título da seleção brasileira.
Certamente, uma tarde memorável!!
Muito obrigado, meu amigo Ecio! E valeu também pela dica do livro. Volte sempre. Abração.