por André Felipe de Lima
Em novembro de 2014, eu e minha esposa Suellen Napoleão conversamos com o ex-goleiro Ubirajara Gonçalves Motta, o maior de toda a história do Bangu e o jogador que mais vezes vestiu a camisa do clube alvirrubro do subúrbio carioca. Foram 538 jogos com a camisa dos mulatinhos rosados, entre 1956 e 1969. É coisa à beça, meus caros. A entrevista foi concedida para o documentário “Simplesmente passarinho”, que narra a vida de Garrincha. A produção do filme está lamentavelmente parada por falta de apoio cultural (coisas do Brasil, conformo-me…), mas o nosso Bira está aí, firme e forte, morando na Tijuca, onde às vezes nos esbarramos, ora caminhando pela rua, ora no supermercado do Largo da Segunda-Feira. Um ídolo simples e inesquecível, que passa pelos mortais sem que estes o vejam. Sem que percebam que estão diante do Ubirajara, um gigante da história do futebol carioca. Mas não é o momento para essa digressão.
Naquela tarde em que batemos um longo papo, Ubirajara falou bastante sobre Garrincha, mas também contou muitos detalhes sobre a sua vida e carreira. Informações muito bacanas que estão na biografia que escrevi sobre ele e constará do volume com a letra “U”, da enciclopédia “Ídolos – Dicionário dos craques do futebol brasileiro, de 1900 aos nossos dias”, que um dia, quem sabe, lançarei.
Ubirajara viveu a infância e a juventude em Marechal Hermes, bairro próximo a Bangu. Ele recordou os tempos em que estudou no colégio Souza Marques, o momento em que conheceu a esposa e as primeiras conquistas com o time juvenil do Bangu, um elenco com cobras sensacionais, que levaria o clube a disputar quatro finais consecutivas (de 1964 a 1967) do Campeonato Carioca, conquistando em uma delas o título, em 1966, após a conturbada vitória sobre o Flamengo, um jogo que Almir Pernambuquinho bateu (e apanhou também!) para valer naquela que é até hoje considerada a maior pancadaria da história no gramado do Maracanã.
Ubirajara conta que o cartola Flávio Soares de Moura, do Flamengo, foi quem abordou Almir — devidamente expulso de campo — na boca do túnel e teria dito para o raivoso atacante: “Vai lá e tira o Ubirajara!”. Bira diz que Almir, que se preparava para descer as escadas rumo ao vestiário, voltou a campo intempestivamente, que nem um touro enlouquecido, dirigindo-se ao goleiro banguense: “Meu negócio é com você, para você ser expulso também. Se você não se defender, vou bater em você”. Teria dito ao goleiro. Bira recordou o diálogo: “Que isso, rapaz? Tá maluco?!… aí, o pau comeu”.
Bira contou que esteve com Almir dias após o jogo na TV Tupi. A emissora prestava uma homenagem ao Bangu pelo título de 66. Havia o temor de que Almir aprontasse no evento o mesmo que aprontou no dia da final, no gramado. Cabreiros, os banguenses assistiram ao irascível craque do Flamengo discursar. Almir elogiou o Bangu e começou a acusar os dirigentes do Flamengo de “safados”. Imediatamente cortaram o áudio de Almir, lembrou Ubirajara. Tentaram continuar o evento, mas Ubirajara disse que não dava mais. Almir tentara melar, pela segunda vez, a festa do Bangu.
Para quem não lembra ou jamais procurou conhecer detalhes, a final do Campeonato Carioca de 1966 foi uma das mais sensacionais da história do futebol carioca. O Bangu deu um verdadeiro passeio em campo. O placar estampava um insofismável 3 a 0 naquela inesquecível tarde de 18 de dezembro de 1966, com um Maracanã apinhado de gente, com mais de 140 mil. Mas, se dependesse de Almir Pernambuquinho, não haveria volta olímpica. Almir brigou com todos os jogadores do Bangu. Ubirajara, como dissemos, foi a principal “vítima” do Almir. O jogo não terminou aos 45 minutos da segunda etapa. Acabou bem antes disso, com o apito de um atônito juiz diante de alguns gatos pingados do Bangu e do Flamengo que “sobreviveram” em campo. Almir e Ubirajara, obviamente, integraram a numerosa lista de jogadores expulsos.
Ubirajara chegou à Seleção Brasileira. Disputou apenas um jogo, contra o Peru. Levou apenas um gol, que os atacantes brasileiros recompensaram com outros três. O jogo valeu como preparação para a Copa do Mundo, na Inglaterra, em 1966. Ubirajara fazia parte do grupo de 44 jogadores experimentados para embarcar para Londres, uma das maiores barbeiragens administrativas de cartolas antes de um Mundial. Acabaram indo apenas 22 e o goleirão do Bangu ficou de fora. Jamais se conformou com o corte.
Manga, que foi o goleiro titular naquela Copa de 66, dizia sempre para o Ubirajara que o Feola deveria levá-lo para a Inglaterra. “Ele tem de levar eu e você. Gilmar não dá mais e o Valdir [de Morais, do Palmeiras] está com problema na clavícula”, reconheceu o arqueiro do Botafogo. Na véspera do embarque para a Copa, Manga se dirigiu ao Ubirajara e, consolando-o, disse o seguinte: “Pô, Bira, que treinador safado”. Pelé fez o mesmo e confessou ao Bira que os jogadores da seleção estavam “entrando numa fria” para a Copa de 66.
Ubirajara disse durante a entrevista que Feola ficava o tempo todo sentado durante os treinos e dormia quase que o tempo todo. “Todos os dias víamos um filme na concentração. Olhávamos para o Feola e ele estava sempre dormindo. Saía todo mundo e deixávamos ele sozinho”. Em seguida, Ubirajara conta da liberação da CBD (Confederação Brasileira de Desportos) – a pedido do Bangu – para que ele não permanecesse na Seleção para disputar o campeonato sul-americano, em 1963, na Bolívia. O “manager” do Bangu, o notório banqueiro do jogo do bicho Castor de Andrade, não abria mão do goleiro para uma excursão pela Europa. “Com Castor, a gente fazia qualquer negócio”, confessou Ubirajara.
Depois do time de Moça Bonita, o maior goleiro da história do Bangu defendeu Botafogo e Flamengo. Com o Alvinegro, foi novamente campeão estadual, em 1968, brigando pela posição com o então jovem Cao. Vestindo rubro-negro, levantou os canecos de 1972 e 74, disputando a posição com Renato e o xará Ubirajara Alcântara. Poderia ter conquistado mais um título estadual não fosse a miopia do árbitro José Marçal Filho, que, na finalíssima entre Bota e Fluminense, em partida realizada no dia 27 de junho de 1971, validou um gol para o time da rua Álvaro Chaves. Na jogada, o lateral-esquerdo tricolor, Marco Antônio, fez falta em Ubirajara, impedindo-o de defender a bola, que sobrou para o ponta Lula, autor do gol da vitória Tricolor. “Vamos todos para cima do juiz dar uma surra naquele safado”, lembrou Ubirajara. Alguém do Fluminense ouviu a queixa dos banguenses e teria avisado ao juiz. “Acabando o jogo, os tricolores disseram para o juiz: ‘Foge que eles vão te pegar’. Ele terminou o jogo na boca do túnel e desceu… safado, já não estava mais em campo. Já tinha fugido. Futebol tem essas coisas.”
Ubirajara “entregou” Marco Antônio. O lateral do Fluminense teria confirmado, no bastidor ter feito a falta nele. “Na reportagem, ele dizia que só esbarrou em mim, mas fora dela, confessava ter me empurrado. ‘Dei uma gravatinha nele por isso saiu o gol”. Ubirajara jamais perdoou o juiz. Nem poderia.
Carioca, Ubirajara nasceu no dia 4 de setembro de 1936 e vive até hoje na cidade do Rio de Janeiro, como aposentado da bola e da profissão de contador. Foi, inclusive, presidente da Fundação de Garantia do Atleta Profissional [Fugap] e investiu na carreira de treinador. Ainda tem muita história boa para contar sobre o mundo do futebol.
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