por Claudio Lovato Filho
O menino está na garagem do prédio chutando contra o muro a bola de couro muito gasta.
Ainda sente no rosto a dor da agressão sofrida por ter desafiado a autoridade paterna. Na verdade, apenas fez uma pergunta, mas isso foi o bastante.
Não foi a primeira vez que apanhou, mas desta vez sentiu algo diferente na ação da qual foi vítima. Não percebeu irritação, brabeza, impaciência, esse tipo de coisa. Percebeu raiva.
Outro chute na bola, a bola contra o muro, a bola voltando rápida, o corpo desviando, a bola batendo na lixeira ao lado do elevador de serviço.
Então o portão da garagem começa a se abrir. Um carro vem entrando.
O menino para de chutar a bola, e o carro passa por ele, bem devagar. O motorista e o menino que está sentado no assento do carona estão rindo. Na verdade, o homem ri e o menino ao lado dele dá gargalhadas; está com o rosto vermelho de tanto rir.
O carro passa e o menino volta a chutar a bola contra a parede. O rosto já não tem mais as marcas do tapa, não lateja mais, mas isso não é suficiente para eliminar a tristeza e o ressentimento que insistem em permanecer dentro dele.
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Da beira da quadra de cimento, o homem diz:
“O pé de apoio tem que ficar mais perto da bola!”
“Mas eu estou botando!”, responde o menino.
“Mais perto! Bem do lado da bola. Você vai ver como o chute vai ser mais forte”.
“Eu sei! Você já me disse isso!”
“Então vai de novo! Mais perto da bola! Bem do lado!”
“Tá bom, tá bom!”
E o menino vai percebendo que, quanto mais perto da bola coloca o pé de apoio, mais forte e direcionado sai o chute.
“Isso. Tá melhorando”.
“Tô cansado!”
“Mais três. Só mais três”.
O menino chuta mais três vezes, estufando a rede do gol vazio.
Mais tarde, bem mais tarde, dali a alguns anos, quando já tiver se tornado o profissional que sonhava ser, o menino vai se lembrar muitas vezes desses finais de tarde na quadra de esportes perto de casa e dos ensinamentos do pai, e vai se convencer da importância daquilo para que absorvesse com profundidade um sentimento que iria acompanhá-lo por toda a vida: o sentimento se saber-se alguém que pode ser amado.
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No avião, indo para o sepultamento, ele agradece por estar em movimento contínuo desde que recebeu a notícia. Estava saindo de casa quando o telefone tocou. Ele viu o DDD e imediatamente compreendeu. Atendeu e não deu outra. Depois disso foi a compra da passagem, a arrumação da mala, os avisos para os mais próximos, tudo com a ajuda da esposa. A correria pode ser uma grande aliada nessas horas. Uma grande amiga.
Agora é a hora do avião. Sozinho com seus pensamentos, até o destino final (uma expressão que lhe pareceu irônica nesse momento). Sozinho com suas lembranças.
“É a festa ou o futebol. Tem que escolher. Os dois, não dá”, o velho tinha lhe dito mais de uma vez. Bem mais de uma vez. Ele escolheu o futebol.
Depois, quando estava sendo promovido da base para os profissionais:
“Nada de bancar o espertalhão. Humildade no trato e seriedade no trabalho. É assim que se conquista respeito”.
Tantos ensinamentos, tantos conselhos.
“Amigos vão ser poucos. Mas isso é assim mesmo. No futebol são companheiros de clube. Colegas de profissão. Alguns vão se tornar seus amigos. Poucos”.
O velho falava pouco, mas dizia muito.
“Guarda o seu dinheiro”.
O avião aterrissa. Ele tenta antecipar tudo o que vai encontrar, mas não consegue e para de tentar. Deixa que os acontecimentos se sucedam, segue o fluxo.
No carro, a caminho do cemitério, ele recorda o dia em que entregou a camisa ao pai, a camisa do jogo em que marcou seu primeiro gol como profissional, e lembra do sorriso no rosto do pai e do brilho nos olhos do pai e do abraço que o pai lhe deu. E então ele, dentro do carro que trafega pela via expressa com asfalto ainda molhado pela chuva recente, a caminho de tudo aquilo que sabe que muito em breve terá que enfrentar, finalmente chora.
Muito bom! Mas fiquei curioso em saber quem são os três meninos?