por Marcos Vinicius Cabral
Se o teatrólogo, jornalista, romancista, folhetinista, frasista e cronista esportivo Nélson Rodrigues soubesse a dimensão que a carreira de Zico tomaria, não teria dito a célebre frase: “TODA UNANIMIDADE É BURRA”.
Ou quem sabe, poderia ter tornado menos incisiva: “NEM TODA UNANIMIDADE É BURRA”.
Falecido numa manhã de domingo em 21 de dezembro de 1980 por complicações cardíacas – afinal de contas, viveu tantas emoções ao longo de seus 68 anos – e respiratórias – abusou do tabagismo e do sedentarismo por inconsequentes décadas – , um do mais influentes dramaturgos do século XX viu pouco do que o maior camisa 10 do Clube de Regatas do Flamengo produziu dentro de campo.
Viu, por exemplo, a imprensa esportiva mundial chamá-lo de “el fenómeno”, quando em sua estreia na seleção brasileira, marcou o gol da vitória nos triunfos sobre o Uruguai em Montevidéu e a Argentina em Buenos Aires, em partidas pela Copa do Atlântico, em fevereiro de 1976.
Um mês depois, viu outra grande atuação da jovem promessa rubro-negra em um amistoso no Maracanã para quase 88 mil pagantes, contra a poderosa “Máquina Tricolor”, que mesmo sem Rivellino, com febre, contava com Carlos Alberto Torres, Edinho, Carlos Alberto Pintinho, Doval e Paulo Cézar Caju.
No dia seguinte, sentou-se numa cadeira, acendeu um cigarro, colocou papel no rolo da sua inseparável máquina de escrever e sem interrupções e correções, datilografou com os indicadores o texto final do ÓBVIO “o melhor jogador do mundo”, artigo semanalmente para O Globo.
Em seguida, com olhos ULULANTES releu – o segredo para escrever bem não era ler, mas reler, segundo diziam seus amigos mais próximos – a brilhante manchete no Jornal dos Sports: “Zicovardia”, numa alusão à atuação do camisa 10 da Gávea, que marcou os quatro gols na goleada de 4 a 1 e tornou-se o primeiro – e até hoje único – jogador a marcar quatro vezes num Fla-Flu na “Era Maracanã”.
Se relia Dostoiévski e Machado de Assis – seus escritores prediletos – algumas vezes, teve a oportunidade de assistir aos dezesseis títulos conquistados de 1971 a 1979; a premiação com a Bola de Ouro da Revista Placar como melhor jogador do Campeonato Brasileiro de 1974; a artilharia do Campeonato Carioca de 1975, com expressivos 30 gols (marca que não era alcançada no Rio desde 1949), além é claro, das conquistas da Taça Guanabara, do Campeonato Brasileiro e do Torneio Ramón de Carranza, estes três últimos, no mesmo ano em que ascendeu da Terra.
Mas se o torcedor mais ilustre do tricolor das Laranjeiras viu pouco do jogador brilhante que foi dentro das quatro linhas, não viu o ser humano em que se transformou fora delas.
Nascido em 1912, o pernambucano de Recife não viu, por exemplo, Zico e a geração de ouro do Flamengo conquistarem a América e o Mundo, em 1981.
Há torcedores rivais que não consideram feitos tão importantes, já que dizem que a conquista da Libertadores foi roubada (referem-se aos cinco jogadores atleticanos expulsos pelo árbitro José Roberto Wright naquele Flamengo e Atlético Mineiro no Serra Dourada em Goiás) e o Mundial sem a participação de algum time argentino não ter o mesmo peso.
Que bom que TODA UNANIMIDADE É BURRA, como se tais considerações tirassem o brilho dessas conquistas, que por vezes, se misturaram ao suor no rosto de cada jogador.
O repórter policial do A Manhã não viu Zico na seleção brasileira de 1982 encantar o mundo em gramados espanhóis e ser sucumbido para a Itália de um Paolo Rossi devastador naquele 05 de julho, conhecido como “Tragédia do Sarriá”.
No entanto, o estádio que todo brasileiro não gosta de lembrar foi palco da última partida onde o argentino Di Stéfano jogou como profissional em 1965, vestindo a camisa do Espanyol, anos antes de ser demolido em 1997 – onde hoje é um belo conjunto residencial e um parque bem arborizado.
Graças a Deus que TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois dizem que União Soviética, Nova Zelândia, Escócia e Argentina de Fillol, Passarela, Kempes e Maradona eram fracas e que quando enfrentou uma seleção de verdade como a Itália comandada pelo estrategista Enzo Bearzot, perdeu.
O autor de “A mulher sem pecado” – sua primeira peça teatral – não viu Zico conquistar seu segundo título Brasileiro em 1982, contra o poderoso Grêmio de Ênio Andrade, que contava ainda com Leão, Paulo Roberto, De León, Batista, Paulo Isidoro, Renato Gaúcho e Baltazar, em pleno estádio Olímpico.
Ainda bem que TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois alguns ‘entendedores’ alegam que a equipe gaúcha foi prejudicada pelo árbitro Oscar Scolfaro aos 10 minutos do segundo tempo, no lance em que o cabeça de área Andrade tirou a bola em cima da linha do gol, defendido por Raul na decisão do título.
Passados 36 anos, volta e meia surge a discussão que aquele pênalti não assinalado mudaria a história do jogo e que a equipe carioca não se tornaria campeã.
O irmão de Mário Filho não viu Zico conquistar o terceiro título Brasileiro de sua história contra o Santos, em um Maracanã repleto de flamenguistas.
Pois TODA UNANIMIDADE É BURRA, como diziam que o Galinho de Quintino era jogador de Maracanã (é sim como méritos, artilheiro do estádio com 333 gols), sem saber que aquela partida seria sua última com a camisa do Flamengo, pois já estava vendido ao Udinese da Itália.
O editor do suplemento O Globo Juvenil não viu Zico marcar 19 gols logo na sua primeira temporada italiana, ficando apenas um atrás de Michel Platini, artilheiro do campeonato e da campeã Juventus, que jogou seis partidas a mais.
Certamente TODA UNANIMIDADE É BURRA, diriam os sensacionalistas de plantão (como manchete de um famoso jornal carioca), fazendo questão de dizer que nos dois anos que jogou na Itália, o máximo que o jogador conseguiu foi uma condenação a oito meses de prisão e a pagar uma multa de 830 mil dólares por ter fraudado o fisco.
O autor de “Meu destino é pecar”, que assinou o pseudônimo “Suzana Flag” para não ser reconhecido em seu primeiro folhetim para O Jornal, veículo de propriedade de Assis Chateaubriand, não viu Zico ser alvo de botinadas e pontapés desleais, como as do lateral esquerdo Márcio Nunes, quando Flamengo e Bangu se enfrentaram pelo Campeonato Carioca em 1985.
Sem dúvidas, TODA UNANIMIDADE É BURRA, já que alguns preferiram que no lance ocorrido em 29 de agosto, entre o camisa 10 rubro-negro e o camisa 6 alvirrubro, o Galinho foi intencionalmente com o pé por cima da bola na dividida.
O contista que começou a escrever no Última Hora “A vida como ela é”, seu maior sucesso jornalístico, não viu Zico fazer um sacrifício enorme para jogar no México, sua terceira Copa do Mundo.
Porém, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois até hoje em discussões sobre o insucesso da equipe comandada pelo mestre Telê Santana, impropérios são ditos como se o pênalti que Zico perdeu aos 29 minutos do segundo tempo, fosse o causador daquela derrota para a França.
O maior frasista do país não viu a abertura do Campeonato Carioca de 1986, quando Zico pisou o gramado ao lado de Sócrates – inclusive único Fla-Flu que a dupla jogou juntos – no Maracanã e ouviu os grito de “Bichado! Bichado! Bichado!”, vindo da torcida adversária, que se aboletara do lado direito às cabines de rádio.
Mesmo assim, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois se tem um clube que sofreu horrores com esse “bichado”, ele atende pelo nome de Fluminense Football Club.
O participante do programa Grande Resenha Esportiva, primeira “mesa redonda” da TV brasileira, não viu Zico, aos 34 anos, comandar o Flamengo na conquista do Campeonato Brasileiro de 1987, após dois jogos épicos contra o Atlético Mineiro na semifinal e dois contra o Internacional na final.
Lamentavelmente, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois até hoje quem é considerado campeão é o Sport, pois o Flamengo, – assim como a equipe gaúcha – se negou a jogar contra o vencedor do outro módulo da competição.
O criador de Vestido de Noiva, peça teatral de estrondoso sucesso no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, não viu dois anos depois, o ex-camisa 10 da Udinese ter seu recurso julgado às instâncias superiores, e ser absolvido, como o jornal italiano “La Repubblica” publicou em 29 de setembro de 1989: “ZICO NON EVASE IL FISCO” (ZICO NÃO FRAUDOU O FISCO).
Enquanto isso, TODA UNANIMIDADE É BURRA, pois Nélson Rodrigues, se envergonharia da notinha no rodapé de um famoso jornal carioca ao falar da absolvição do craque.
O escritor que publicou suas memórias no Correio da Manhã, onde Mário Rodrigues, seu pai, trabalhou cinquenta anos antes, não viu Zico jogar profissionalmente sua última partida em 02 de dezembro de 1989, no estádio municipal Radialista Mário Helênio em Juiz de Fora (MG) e golear por 5 a 0 o Fluminense.
Todavia, TODA UNANIMIDADE É BURRA, diriam os que sempre acharam o Galinho acabado para o futebol e criticaram o goleiro tricolor Ricardo Pinto, fazendo-o cair em desgraça, por ter declarado feliz em tomar o último gol do “Deus” rubro-negro, em mais uma magistral cobrança de falta.
O autor de “Toda nudez será castigada” não viu O Galinho de Quintino desembarcar nos idos dos anos 1990 na Terra do sol nascente e ser endeusado, desde então, pelos japoneses quando jogou no Kashima Antlers e é, até hoje, carinhosamente chamado de “Jico”.
E não é que TODA UNANIMIDADE É BURRA, enquanto uns dizem que foi um grande jogador e outros o considerem apenas bom, numa discussão que perdura há 24 anos desde sua aposentadoria em 1994.
No entanto, em 21 de dezembro do ano passado, completou-se o 38° ano de morte de Nélson Falcão Rodrigues e no dia 27, o 15° ano do Jogo das Estrelas, evento beneficente promovido por Zico.
Enquanto Nélson foi – e continua sendo – referência para todo (a) estudante que sonha escrever bem, Zico foi – e continua sendo – referência para todo (a) garoto (a) que sonha ser jogador (a) de futebol.
Ah!, Nélson, que prazer é ler o que escreves…ah!, Zico, como é bom ver seus lances e gols quando jogavas!
Se um escreveu o que o outro jogou, a recíproca é verdadeira: o que jogou inspirou para o outro escrever.
Ambos, foram whorkaholics em suas profissões.
Foram gigantes.
E porque não dizer: fazem falta no jornalismo das fake news e nos campos de futebol com excesso de vontade mas carente de arte.
Ainda bem que li Nélson Rodrigues e vi Zico jogar.
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