TINGA, UM BRASILEIRO
texto: Jihan Kazzaz | fotos: Bruno Senna
Os huancas são um povo nativo da selva amazônica que vive na região central do Peru. Fazem parte do grupo étnico Quechua, termo coletivo usado para denominar indígenas que vivem na região em torno do Vale do Mantaro, centro do país. Durante centenas de anos, os huancas sofreram com a dominação dos conquistadores, primeiro na formação do Império Inca, depois pelo espanhol Francisco Pizarro e, finalmente, com a guerra civil peruana, na segunda metade do século XX, tendo sido vítimas de constante perseguição étnica. Dentre os cerca de 400 mil habitantes da cidade de Huancayo, quarta maior do Peru, pelo menos a metade tem origem huanca. Os demais são, em geral, de sangue europeu ou asiático.
A história sangrenta de um povo que conhece a dor de ser dominado e subjugado por invasores não impediu que, séculos depois, alguns dos seus representantes protagonizassem uma das mais tristes e desrespeitosas manifestações de racismo em um estádio de futebol. A estreia do Cruzeiro na Copa Libertadores de 2014, contra o Real Garcilaso, no dia 12 de fevereiro, em Huancayo, no Peru, não será lembrada pelo resultado final do jogo, e sim pelas ofensas preconceituosas ao volante Paulo César Tinga.
O jogo poderia ter sido em Cuzco, mas o estádio do adversário na partida de abertura do grupo 5 da Libertadores estava em reformas e havia sido interditado. Poderia também ter acontecido em Espinar, porém a pequena cidade da província de Cuzco não possuía base aérea a 150 km de distância, como exige o regulamento da Conmebol. Assim, o duelo foi marcado para Huancayo, a 3.259 metros acima do nível do mar e a 700 km da “casa” do Real Garcilaso, onde as duas equipes tiveram que se digladiar em território desconhecido, mas continuariam tendo pela frente os efeitos da altitude como principal arma dos peruanos contra o time celeste.
Aos 20 minutos, com o placar desfavorável ao Cruzeiro, o volante Tinga, carreira internacional na Europa e Japão, duas Libertadores conquistadas, 36 anos, entrou em campo para tentar mudar a história da partida. A Raposa perdia por dois a um, resultado que se manteria até o final. O técnico peruano Freddy García fechara o time inteiro, com sete atletas na defesa, cinco zagueiros e dois volantes. Pelo lado do Cruzeiro, Marcelo Oliveira apostava na experiência, excelente passe e capacidade de infiltração de Tinga mesmo nas defesas mais impenetráveis. Assim, colocou o jogador no lugar de Ricardo Goulart.
Mas Tinga não imaginava que mudaria a história da partida sem mexer no placar. Logo percebeu que, a cada toque que dava na bola, a torcida huancaya grunhia, fazia guinchos, sons e gestos que tentavam intimidar o jogador, trazendo à partida um desfecho inesperado e sombrio. Pouco importava o resultado final. Todos sabiam que o futebol havia sido derrotado.
A Revista do Cruzeiro conversou com Tinga, em uma tarde quente de fevereiro nos jardins da Toca da Raposa II. Da história vencedora no futebol à discrição na exposição de suas atitudes, o volante celeste mostrou sua conhecida personalidade e muita firmeza nas opiniões e posições. A mesma seriedade demonstrada ao final do jogo contra o Real Garcilaso, quando fez uma declaração tão forte quanto verdadeira: “Se [eu] pudesse não ganhar nada e ganhar esse título contra o preconceito, trocaria todos os meus títulos pela igualdade em todos os lugares, todas as áreas e todas as classes”.
O que se passou com Tinga poderia ter ocorrido com qualquer jogador negro, brasileiro ou não. Craques internacionais como o camaronês Samuel Eto’o, do Chelsea, e o italiano Mario Balotelli, do Milan, já deixaram o gramado revoltados e até chorando após serem insultados por torcidas europeias. O que chama a atenção no episódio foi ter acontecido na América Latina, em um país onde há forte miscigenação racial e poucos registros de preconceito tão escancarados como o visto em Huancayo.
Tinga não esconde que ficou muito incomodado e surpreso com a atitude da torcida peruana. “Tenho muita fé em Deus e sei que não foi por acaso o que aconteceu”, garante. “Estou preparado para responder a todos sobre isso, pois sempre tive opinião formada sobre todos os assuntos”, explica o experiente jogador, ciente de que se as ofensas tivessem sido dirigidas a um garoto iniciante no futebol, o resultado poderia ter sido devastador.
Impactante também foi a repercussão do episódio. Tinga diz que ficou impressionado com a quantidade de manifestações de apoio que recebeu, de vários jogadores, como Ronaldo Fenômeno e Neymar, e de personalidades como Joseph Blatter e Dilma Rousseff. Até o presidente peruano Ollanta Humala condenou a atitude da torcida: “Um país tão diverso como o nosso e que fortalece sua identidade, com todas suas culturas, não deve admitir reações racistas de nenhum tipo”, declarou o presidente, pelo Twitter. Também pelas redes sociais, cruzeirenses e torcedores de outros times demonstraram apoio ao volante. A hashtag #FechadoComOTinga chegou a ser a líder dos termos mais discutidos no Twitter.
Exemplo para a família
Mas a emoção toma conta de verdade quando Tinga se lembra da família, em especial de um dos filhos, Davids, de 11 anos, que chegou a faltar à escola no dia seguinte ao jogo e perguntou ao pai porque ele havia sido comparado a um macaco. “Este foi o momento mais difícil, em que achei importante explicar para ele que o preconceito pode ser aplicado a vários tipos de situação, contra gordos e deficientes, por exemplo, e que ele nunca fizesse isso contra alguém, pois a pessoa se sentiria como eu me senti”.
Orgulhoso da inteligência do filho, que estudou na Alemanha e tem esse nome em homenagem ao ex-meio-campista holandês Edgar Davids, Tinga é casado com a gaúcha Milene Nascimento, loira, de origem italiana, e lembra que sempre sofreu com o preconceito, inclusive no Brasil. “Muitos acham que um negro só pode ser casado com uma loira por ser jogador de futebol e não sabem que estamos juntos há 19 anos, antes de me tornar atleta profissional”.
Se o futebol trouxe tristezas para Tinga, as alegrias foram muito maiores. “Não tive a oportunidade de continuar estudando, terminei só o primeiro grau. Fui educado, alfabetizado, me tornei homem e cidadão através do futebol, pois aproveitei as oportunidades que a carreira me deu”. Aos 21 anos, Tinga saiu do país pela primeira vez, para o Japão, quando não sabia falar nenhuma língua estrangeira. Jogou também na Alemanha, pelo Borussia Dortmund, e em Portugal, pelo Sporting. “Aprendi muito como cidadão. O futebol me levou a conhecer pessoas, lugares, culturas e hoje consigo conversar sobre qualquer assunto”.
Tinga lembra a infância difícil, principalmente após a separação dos pais, quando tinha somente sete anos. “Vi minha mãe tomando conta de um banheiro de um clube, vivendo com dificuldades, enquanto meu pai tinha uma vida mais confortável com outra família”. O maior exemplo, lembra Tinga, foi dado pela própria mãe, 20 anos depois de ter sido deixada pelo pai, que acolheu o antigo companheiro, com sérios problemas psicológicos, em sua casa, para que Tinga pudesse continuar jogando futebol, quando já atuava no Grêmio. “Essa foi uma lição muito importante para a minha vida e fez com que eu tentasse sempre ensinar aos meus filhos sobre o que é o amor e o perdão”, ensina o craque da vida, Paulo César Tinga.
texto originalmente publicado na
Revista Oficial do Cruzeiro Ed. 123, março de 2014
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